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Romance inédito

                                              

 

        Primavera dos mortos  

                                           

                                                 Jorge Fernando dos Santos

                                     Quarta parte  

                           Capítulo 34 - Galeno Valadares

 

DE POSSE DOS laudos de necropsia e da suposta arma do crime, iniciei a fase dos depoimentos, ouvindo testemunhas e possíveis suspeitos. A primeira pessoa a ser convocada foi Siá Zizinha, que relutou em ir à delegacia.

Na tentativa de evitar maiores constrangimentos, pois eu poderia facilmente convocá-la mediante uma ordem judicial expedida na comarca de São Roque, o prefeito Ascânio Benevides conseguiu convencê-la a atender o meu convite. Ambos se apresentaram na manhã de uma terça-feira calorenta.

Onde é que a senhora estava na noite de 9 de outubro de 1972?

Diante da primeira pergunta, Sinhá Zizinha pigarreou para depois contar que estava em casa, tecendo uma manta de tricô na qual vinha trabalhando há vários meses.

Sabe como é, a gente desfaz de dia o que fiou à noite e, na falta de ter mais o que fazer, começa tudo de novo, disse ela como a aranha que desliza na teia para evitar o ferrão do marimbondo.

Ordenei ao escrivão que não registrasse nenhuma palavra e, em seguida, pedi a ela mais objetividade nas respostas.

Mas estou sendo objetiva, pois estava fazendo tricô naquela noite.

Tá bem, Siá Zizinha, mas o que mais aconteceu naquela noite?

O tempo fechou de repente e começou a trovejar. O Hilário até veio do seu quarto com medo, pois desde pequeno o coitado tem pavor de tempestades. Eu disse a ele que não carecia, pois Santa Bárbara haveria de nos proteger.

Afrouxei a gravata e comecei a andar de um lado para o outro. Quanto mais ela notava minha impaciência, mais se desviava do assunto.

Quando foi que a senhora ouviu o tiro?, perguntei, sem fazer rodeios.

Que tiro?, ela retrucou.

Esfreguei as mãos e pedi calma a mim mesmo.

Siá Zizinha, quanto mais a senhora for direto ao assunto, mais depressa será liberada.

Liberada?, a velha exclamou. O senhor tá querendo dizer que estou presa?

Claro que não, minha senhora, mas todo mundo aqui tem mais o que fazer do que ficar ouvindo suas evasivas, respondi abruptamente.

Nessa hora, o prefeito, que estava sentado ao lado dela, ambos em frente à minha mesa, pediu que eu me acalmasse. Mais que isso, declarou que era bacharel em direito e que estava ali na condição de advogado da testemunha.

Então diga a sua cliente que obstruir a Justiça constitui crime, ameacei, enxugando o suor da testa com o lenço.

Siá Zizinha sentiu-se ofendida e disse que não tinha mais nada a declarar. Sentei-me atrás da mesa, acendi um cigarro e enchi os pulmões de fumaça tentando esfriar a cabeça. Ela ficou de pé, como se fosse sair, mas avisei que se fizesse isso eu seria forçado a detê-la.

O senhor não tem poderes para fazer uma coisa dessas, disse o prefeito.

O senhor sabe que eu tenho, retruquei no mesmo tom.

Ele então pensou melhor e aconselhou-a a se sentar novamente, o que ela fez com alguma relutância.

Vamos começar do começo, avisei. O que foi que aconteceu naquela noite?

Ele respirou fundo, deixando claro que estava pronta para falar. Acenei para o escrivão-de-polícia com um gesto de cabeça. Seu Palmério ajeitou no rosto os óculos de fundo de garrafa e ficou a postos, com as mãos pousadas sobre o teclado da velha Remington.

Siá Zizinha disse que, na noite da tragédia, encontrava-se na sala de sua casa, assistindo à telenovela Selva de Pedra, quando a chuva começou a cair. Houve queda de energia devido aos relâmpagos e Hilário, amedrontado, veio do quarto e tropeçou no escuro.

O rapaz tinha medo de chuva e ela convidou-o para rezar o terço. Era assim que o acalmava quando ele entrava em pânico.

Perguntei onde estava seu Leôncio naquele exato momento e ela disse que o marido já havia se recolhido, pois chegara exausto da fazenda.

Um pensamento maldoso levou-me a imaginar que, provavelmente, ele estava em companhia da cunhada, no barracão dos fundos. Seja lá qual fosse a verdade, Siá Zizinha disse que o Ribeirão das Mortes começou a fazer um barulho fora do comum, pois chovera muito forte na cabeceira e as águas subiram rapidamente.

Ela correu até a janela que dava para o quintal e, graças aos clarões provocados pelos relâmpagos, pôde ver que a enchente já havia alcançado os alicerces do barracão onde estava sua irmã. Leôncio acordou devido aos trovões e veio até à sala, explicou. Eu disse a ele que tínhamos que avisar a Gláucia, pois ela estava correndo perigo.

Ambos teriam corrido até o barracão, esmurrado a porta e Gláucia Maria, descalça e de camisola, veio atender.

Você precisa sair imediatamente daqui, Leôncio avisou. O ribeirão encheu depressa e a chuva está muito forte, disse Siá Zizinha.

Antes de atendê-los, Gláucia Maria foi até à varandinha do quarto para pegar uma peça de roupa qualquer e, nessa hora, como se o destino atravessasse seu caminho, escorregou no piso molhado, perdeu o equilíbrio e caiu por cima do parapeito, que era relativamente baixo.

Enquanto Siá Zizinha contava sua versão da história, o escrivão improvisado espancava os teclados da máquina, usando apenas os indicadores. O plim-plim do carro ritmava o fundo musical para a narrativa.

Ao vê-la desabar na água, prosseguiu a testemunha, Leôncio se apavorou e, antes que eu dissesse alguma coisa, pulou no ribeirão na tentativa de salvá-la. E foi assim que nós os perdemos para sempre...

Verdade ou mentira, Siá Zizinha estava com a voz embargada de emoção e até pensei que fosse chorar.

Enchi um copo com água da bilha que ficava sobre a minha mesa e dei a ela para que recuperasse o fôlego. Esperei que tomasse dois goles e perguntei se havia alguma coisa a acrescentar.

O resto o senhor já sabe, soluçou.

Ordenei a seu Palmério que datasse o depoimento e finalizasse com o nome completo da testemunha. Fui até ele, peguei as laudas e passeia-as a seu Ascânio para que conferisse o que estava escrito e, em seguida, pedisse sua cliente para assinar.

O prefeito, agora no papel de rábula, correu os olhos no documento, tirou do bolso do paletó uma Parker esferográfica e entregou a ela, que assinou sem pestanejar.

Mais uma coisa, perguntei, seu Leôncio por acaso tinha um revólver?

Revólver?, disse ela, devolvendo a pergunta.

Sim, uma arma de fogo. Poderia ser uma garrucha ou uma pistola, quem sabe.

Sim, ele tinha um revólver que o meu sogro lhe deixou quando morreu, disse ela como se lembrasse de repente.

Qual era a marca e o calibre, a senhora saberia dizer?

Claro que não, ela respondeu.

O revólver ainda está em sua casa, isto é, a senhora sabe onde é que seu Leôncio o teria deixado?

Não faço a mínima idéia, respondeu secamente.

Por hoje é só, avisei. Mas a senhora deve permanecer na cidade até o término das investigações.

Só para não perder o costume, Siá Zizinha disse que achava tudo aquilo um absurdo e deixou a delegacia resmungando impropérios, acompanhada do prefeito, seu fiel escudeiro.    

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