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Romance inédito

     

       Primavera dos mortos

                                                 Jorge Fernando dos Santos

                                            Quarta Parte

                                 Capítulo 35 - Siá Zizinha

EU NÃO QUIS dizer muita coisa ao delegado. Vê lá se ia me rebaixar a falar da minha vida com aquele anticristo! Mas, pouco antes da tragédia, Leôncio andava muito esquisito. Sem mais nem menos, parou de conversar comigo e com Gláucia Maria. Quando ela se queixou pela primeira vez, achei que fosse coisa lá dos dois. Com o tempo, percebi que ele estava mesmo mudado e muito estranho.

Era como se algo tivesse se quebrado dentro dele, modificando seu jeito de ser e  de agir. Mesmo casados há tantos anos, a gente quase não se falava. Não que houvesse rancor entre nós, pelo contrário. Acho até que ele tinha um pouco de gratidão. Mas, ultimamente, ele sequer me cumprimentava. Tampouco dava atenção ao nosso filho, que às vezes ria pra ele sem conseguir nenhum afago de volta, o pobrezinho.

Acho que o Leôncio enlouqueceu, disse Gláucia Maria na varanda de seu quarto, num fim de tarde ensolarado. Ele tem bebido cachaça, já não diz coisa com coisa e às vezes o vejo falando sozinho. Quando dou atenção ao Hilário, então, ele me olha de um jeito muito estranho.

De que jeito?, perguntei.

Sei lá, parece que fica com os olhos vidrados, feito cachorro zangado. Lembra daquele cão policial que o nosso pai teve que sacrificar por conta da raiva?

O Rex, respondi.

Pois é. É daquele jeito que ele me olha.

Eu disse a ela pra tomar tenência e não ficar tão aflita. Leôncio não chegava a ser um cavalheiro, pois havia passado metade da vida entre burros e peões, mas também não era tão rude assim.

Ele tinha sensibilidade e alguma educação. Apenas devia estar enfrentando um momento difícil, coisa de gente que já começa a virar a serra. Se depois de certa idade as mulheres perdem as regras e já não podem ter filhos, vai ver que algo semelhante acontece com os homens.

Ouvi dizer que alguns perdem o interesse por mulheres, disse Gláucia Maria. Lembra do nosso pai? Depois que mamãe ficou entrevada, ele disse que mulher já não lhe fazia tanta falta, pois estava ficando velho.

Pode ser, concordei, mas me recordo que uma das empregadas avisou nossa mãe que ele havia sido visto na rua das raparigas, em São Roque. Deus que me perdoe!

E assim passamos a tarde sentadas na varanda, conversando e ouvindo o canto triste das cigarras enquanto o Sol se escondia atrás do morro que deu nome à cidade.

Um rádio ligado na vizinhança tocou a Ângelus e o sino do Rosário bateu seis vezes. Confessei à minha irmã que, desde menina, nunca me senti atraída pelos homens. Eu os enxergava como seres grotescos, de rosto e peito peludos, mãos grossas e olhares famintos.

Durante a gravidez, pensei que pudesse estar errada na minha maneira de ver as coisas. Quando o Hilário nasceu, cheguei mesmo a acreditar que a felicidade pudesse estar ao meu alcance. Mas tão logo o médico de São Roque informou que ele jamais seria uma pessoa normal, percebi o quanto havia me enganado.

O livro santo nos ensina que a felicidade não é deste mundo. E nem era mesmo pra ser. Se quanto mais velhos mais gordos ficamos, é que o nosso corpo é alimento dos vermes.

O mundo é um vale de lágrimas, minha irmã, e cada qual é infeliz à sua maneira, suspirei. O consolo do cristão é acreditar em Deus e na eternidade da alma.

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