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Romance inédito

 

        Primavera dos mortos

                                                 Jorge Fernando dos Santos

 

                                      Quarta Parte

                         Capítulo 39 - Padre Wenceslau

AO CONTRÁRIO do que o delegado ou qualquer outra pessoa pudesse imaginar, não servi por muito tempo em campos de extermínio. Depois de ter trabalhado em Lisboa para o governo alemão, a negociar a compra de matéria-prima para nossa indústria bélica, passei apenas dois meses em Auschwitz, trabalhando no almoxarifado. Então, fui promovido a capitão e transferido para o front com a missão de supervisionar oficiais regulares, aqueles que não eram filiados ao Partido Nazista.

A campanha já estava quase no fim e o alto-comando enviava soldados cada vez mais jovens para enfrentar os inimigos do Reich. A Gestapo e a SS estavam mais vigilantes do que nunca, na tentativa de adiar a derrocada final.

Algumas vezes tive que atirar em desertores, mas não fazia isso com prazer. Era o meu trabalho. Eu apenas obedecia a ordens superiores. Se não o fizesse, alguém o faria em meu lugar e talvez eu mesmo fosse fuzilado como traidor. Era assim que funcionava o mecanismo de controle do estado-maior nazista.

Contei ao delegado o episódio no qual um soldado brasileiro salvou-me a vida, no Norte da Itália. Se não fosse Hilário de Moura, eu teria morrido congelado naquela vala cheia de neve.

O praça cuidou do ferimento em minha perna, deu-me um cigarro Iolanda e uma barra de chocolate americano. Na manhã seguinte, foi metralhado pelas costas por um dos nossos homens.

Ao contemplar seus olhos castanhos arregalados em face da morte, com todo aquele sangue a tingir de vermelho a neve e a se confundir com a aurora, compreendi o significado da inocência. Bastou revirar-lhe os bolsos para descobrir seu nome e sua procedência.

Quando a guerra acabou, nenhum lugar da Europa parecia seguro para um ex-oficial da SS. O alto-comando estava esfacelado. Quem não teve coragem de se matar, como o próprio Fürher, acabou preso ou executado.

Tomei conhecimento de um programa de fugas montado por simpatizantes do partido, que negociavam informações com oficiais do serviço secreto das forças aliadas. Muitos dos nossos já se encontravam na Argentina e no Uruguai.

Meus pais estavam enterrados em Baden e mais de uma vez eu havia sonhado com o soldado brasileiro que me salvara a vida. Resolvi, então, conhecer seus familiares. Talvez fosse uma forma de saldar a minha dívida para com eles.

Comprei uma falsa certidão de nascimento e consegui um passaporte do Vaticano. Atravessei o Atlântico a bordo de um navio de carga e desembarquei no porto de Santos. Procurei saber onde ficava Morro do Calvário e três dias depois aqui cheguei. Fui recebido como se fosse o novo vigário que deveria substituir padre Herculano.

 

Antes de me filiar à Juventude Hitlerista, havia estudado em colégio católico e ainda me lembrava dos rituais da Igreja. Nossa paróquia raramente recebe a visita do bispo de São Roque e isso facilitou o meu desempenho. Tornei-me amigo dos Mouras, mas nunca revelei a ninguém os verdadeiros motivos de minha vinda para o Brasil.

Não foi difícil alimentar a expectativa dos fiéis. Passei a ser chamado de padre Wenceslau, corruptela de Vseslav. Celebrei casamentos, batizei recém-nascidos e encomendei muitas almas. Eu, que no confessionário havia perdoado os pecados de tanta gente, também me dera ao luxo de perdoar a mim mesmo.

Dr. Galeno cruzou meu caminho quando as lembranças da guerra pareciam ter sido apagadas pela esponja do esquecimento. Naquela manhã de sexta-feira, ao me defrontar com ele na casa paroquial, senti-me fragilizado. Estava velho demais para pagar pelos erros de um jovem militar que já não existia.

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