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Romance inédito

 

Primavera dos mortos

Jorge Fernando dos Santos

Parte 1

Capítulo 8 - Arlindo de Moura

 

NA MANHÃ seguinte à sua chegada a Morro do Calvário, Leôncio vendeu boa parte do carregamento que trouxera no lombo das mulas. A amizade que fizera comigo com certeza facilitou-lhe os negócios.


Nosso povo sempre foi de natureza desconfiada, estando pouco habituado à presença de tropeiros, mascates ou cometas. Se a maioria andava de cabeça baixa, isso nada tinha a ver com humildade ou modéstia. Pelo contrário. Herdamos aquele hábito dos antigos garimpeiros, sempre de olho no chão à procura de pepitas e pedras preciosas.


Os poucos comerciantes do município mandavam pessoas de sua confiança buscar mercadorias no distrito de São Roque ou na capital. Isso quando não iam pessoalmente cuidar das compras para renovar o estoque de seus empórios, armarinhos e botequins.

Até mesmo Juscelino Baptista, dono da única farmácia da cidade, preferia partir ao encontro dos representantes de laboratórios em vez de fazer encomendas pelo correio. Isso lhe dava a oportunidade de ir a Belo Horizonte vez ou outra, de onde voltava carregado de livros, revistas e muitas novidades.


Depois de encerrar as vendas, Leôncio aceitou o convite que lhe fizera na noite anterior para almoçar em minha casa. Eram quase 11 horas quando ouvimos suas palmas lá fora.


Dessa vez foi a Zizinha que, a meu pedido, atendeu ao portão e convidou o visitante para entrar. E foi também ela quem se sentou ao lado dele durante o almoço, no qual foi servido frango ao molho pardo regado a boas doses da cachaça produzida em minha fazenda.


Sentei-me à cabeceira da mesa, como de costume. Helena foi trazida do quarto na cadeira de rodas empurrada por uma negrinha dos seus 12 anos, filha da cozinheira.


Mesmo estando entrevada da cintura para baixo e aparentando mais idade, Helena pronunciava claramente as palavras e foi quem mais fez perguntas ao tropeiro. Queria saber de suas origens e posses, se era casado ou se havia deixado alguma donzela à sua espera no lugar de onde viera.


Permaneço solteiro, sim senhora, e moro com o meu pai, em Itabira do Mato Dentro. Minha mãe morreu já faz um ano, respondeu Leôncio um pouco inibido devido à precisão do interrogatório.


Enquanto isso, eu comia em silêncio, lambuzando os beiços e mastigando a carne de frango com angu e arroz branco temperado com pitadas de açafrão.


Se dependesse só de mim, minhas filhas seriam freiras, fuzilou Helena com a precisão de um caçador. Mas, mesmo sendo rezadeiras, sei que nenhuma das duas leva jeito para o convento, acrescentou. Espero em Deus que elas encontrem bons maridos e me dêem netos, enquanto ainda estou viva.

Amém, resmunguei e limpei a garganta para dizer que o moço parecia ser um bom partido.


Na verdade, Helena queria descontrair o tropeiro, mas ele, ao contrário, ficou ainda mais acanhado e com as faces vermelhas sob aquela barba ruiva que Deus lhe deu.


Gláucia Maria, que espiava a conversa com um rabo de olho, sorriu e abaixou a cabeça. Zizinha permanecia no seu canto, comendo em silêncio feita uma bugra.


É gentileza do senhor, respondeu Leôncio, pegando o cálice que lhe estendi com a matuaba, nome pelo qual os negros do lugar chamavam a nossa cachaça.


Não é não, seu moço. Gostei do seu jeito, comentei. Comparado aos rapazes daqui, o senhor me parece acima da média e, se quer saber, muito me agradaria tê-lo como nosso genro.


O tropeiro engasgou com a aguardente. Tossiu, careteou e limpou a boca no guardanapo. Ficou com as faces vermelhas e sem palavras para retrucar.


Que é isso, pai?, Zizinha reclamou.


Assim o moço fica sem graça e vai ver que ele nem pensa em se casar tão cedo, emendou a Helena.


Pelo contrário, disse ele, finalmente recuperando o fôlego e olhando Gláucia Maria do mesmo jeito que fizera no dia anterior, quando a viu pela primeira vez. Seu olhar vermelho era de boi no matadouro.


Desde a morte de minha mãe que eu procuro moça donzela e de boa família, explicou. Pretendo me casar e ter filhos, muitos filhos, reforçou...

Depois do almoço, as empregadas serviram goiabada e ambrosia. Leôncio, pelo jeito, não gostava de doces, pois só beliscou uma fatia de queijo. E aí se encheu de coragem para tratar do assunto que de fato o levara à nossa casa.


Se os senhores não me levam a mal, gostaria de retomar a conversa do almoço, disse ele um pouco ansioso.


Pois muito me agradou o tema da nossa prosa, respondi com a caneca de café na mão. Vá em frente que somos ouvidos, não é mesmo?


Quando aqui cheguei com a minha tropa, fazia dias que cavalgava no ermo do sertão sem ver viva alma, disse o visitante. Mulher, então, era igual agulha no palheiro. Mais de uma vez ouvi falar de Morro do Calvário e fiquei pensando que lugar seria esse, cujo nome lembrava a dor do Cristo na cruz. Mas foi só entrar no lugarejo pra descobrir que o nome não traduzia a verdade. Ao ver a vossa filha debruçada na janela, olhando a tropa com admiração quase infantil, também me admirei. Por um instante pensei ter chegado ao céu, pois um anjo me espiava daquele portal azul.


Leôncio terminou o fraseado com os olhos grudados na nossa caçula, que timidamente corou as faces e abaixou a cabeça sobre o pratinho de goiabada.


Zizinha ficou tão acabrunhada que saiu da sala discretamente, sem tocar na sobremesa. Helena foi quem percebeu, mas preferiu não dizer nada na hora, deixando o comentário para mais tarde.

Perguntei aonde o amigo queria chegar. Não me levem a mal, o senhor e a senhora, disse ele. Queria mesmo era pedir em casamento a vossa filha Gláucia Maria. E apontou-a com um gesto de cabeça.


As duas empregadas que ouviam a conversa num canto da sala trocaram risinhos e Helena perguntou se elas não tinham mais o que fazer na cozinha. Ambas pararam de rir e se retiraram prontamente.


Sabe, seu moço, disse a Helena depois de tomar fôlego, primeiro a gente queria era casar a Zizinha. Já passa da hora dela arranjar marido, mas nunca namorou ninguém... A coitada é tímida igual uma coruja, não sabe? Mas se for do seu agrado e do gosto de Gláucia Maria, os dois certamente terão o nosso consentimento, com as bênçãos de Deus e da Santa Madre Igreja.

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