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Romance inédito

                                                                      

            Primavera dos mortos

                                                                        Jorge Fernando dos Santos

                                             

                                               Parte 1

                          Capítulo 9 - Padre Wenceslau

NO DIA DA tragédia, Siá Zizinha chegou à casa paroquial tarde da noite, em plena tempestade.

Eu já estava quase cochilando quando ela esmurrou a porta da sala. Pulei da cama, vesti a batina sobre a camisola de dormir e convidei-a para entrar.

Ela estava com o vestido encharcado e tremia de frio e nervosismo. Mal conseguia explicar o que havia acontecido. Dei a ela um cálice de vinho do Porto, para que se aquecesse e recuperasse o fôlego.

Um pouco mais calma, ela contou que o marido e a irmã haviam sido arrastados pelo Ribeirão das Mortes. As águas lamacentas, engordadas pelo temporal, já estavam no  quintal e por pouco não levaram também o barracão onde Gláucia Maria morava, disse, em meio a um soluço.

Mein Gott!, exclamei diante da má notícia, e nesse exato momento um relâmpago seguido de forte trovão iluminou a sala, provocando um forte estalo.

Eu e Leôncio fomos até lá para convencê-la a vir para a nossa casa, pois com enchente não se brinca, prosseguiu Siá Zizinha. Foi justamente na hora em que lá estávamos que a desgraça aconteceu. Gláucia Maria foi até à varandinha do seu quarto pra pegar no para-peito umas roupas que havia pendurado pouco antes da chuva começar. De repente, escorregou no piso molhado, perdeu o equilíbrio e caiu lá embaixo, sendo puxada pela forte enxurrada pra dentro do ribeirão.

Leôncio tentou salvá-la e também se afogou. Os dois foram tragados pela corredeira, padre. Hilário e eu ficamos desesperados, sem saber o que fazer. O pobrezinho ficou lá em casa, em estado de choque, acrescentou.

Acordei Djalma, o sacristão, e ordenei a ele que fosse depressa à casa de seu Ascânio para avisá-lo do ocorrido.

O prefeito, por sua vez, mandou comunicar o fato ao delegado que, não demorou muito, chegou à residência paroquial para se inteirar da tragédia.

Quando a chuva parou, a notícia já havia se espalhado. Siá Zizinha voltou para casa por volta da meia-noite, acompanhada por seu Ascânio e eu.

O lugar estava cheio de gente, inclusive soldados que para lá se dirigiram em companhia do anticristo.

As águas haviam carregado também a ponte de madeira, que levava ao bairro dos negros, na parte baixa do lugarejo.

As buscas começaram na manhã seguinte. Delegado e prefeito pediram ajuda ao Corpo de Bombeiros, na capital. Durante toda a semana, a lancha vermelha subiu e desceu várias vezes o leito do Ribeirão das Mortes, em cujas águas homens-rãs mergulharam repetidamente sem nada encontrar.

Só no oitavo dia é que os dois corpos foram achados por pescadores, ambos agarrados a rochas redondas que beiram o São Francisco. Estavam comidos de peixe e em adiantado estado de decomposição.

O enterro teve que ser feito às pressas, depois do curto velório de urnas fechadas, onde despejaram essência de rosas para disfarçar o mal-cheiro.

Seu Ascânio usou de toda a influência política junto ao governador para construir outra ponte. Afinal, Morro do Calvário ficara dividida ao meio, restando apenas uma pinguela para a travessia dos pedestres.

A nova ponte foi feita em concreto armado e inaugurada com pompa e circunstância oito meses depois. Na falta de uma primeira dama, o prefeito pediu a Siá Zizinha que cortasse a fita inaugural.

Quem se desgastou foi seu Juscelino da farmácia, líder da oposição na Câmara Municipal. Mesmo denunciando o superfaturamento da obra sem nada conseguir provar, ele não se reelegeria vereador.  

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