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Romance inédito

 

        Primavera dos mortos

                                                 Jorge Fernando dos Santos

                                              Quarta parte

                            Capítulo 36 - Ascânio Benevides

NO SEGUNDO dia após o depoimento de Siá Zizinha, chegou a minha vez de ser ouvido, compreende? Dr. Galeno disse que poderia me interrogar em meu gabinete, na prefeitura, se assim eu desejasse.

Dispensei os privilégios e prerrogativas. Fiz questão de ir pessoalmente até ele, na delegacia, para evitar maiores problemas. Não tenho nada a esconder e menos ainda a declarar sobre esse caso, fui logo avisando, antes que começasse com as perguntas.

A primeira delas foi a mesma que ele havia feito a Siá Zizinha, compreende? Minha resposta foi objetiva: naquela noite, eu estava em casa, lendo um livro, quando Djalma, o sacristão, veio me chamar para ir até à residência dos Mouras.

Que livro o senhor estava lendo?

Estava lendo... Dom Casmurro, respondi.

Acha que Bentinho foi traído por Capitu?, disse o delegado como se mudasse o rumo da conversa.

Talvez, respondi confuso para depois perguntar se aquilo era mesmo um interrogatório ou apenas um colóquio literário.

Dr. Galeno acendeu um cigarro calmamente, compreende? Soprou a fumaça e confessou que também gostava de ler, mas que em Morro do Calvário era difícil encontrar alguém para discutir literatura.

Este é um lugar inacabado, comentei. Basta ver as casas construídas nos últimos anos. A maioria nem chegou a ser rebocada. Enquanto isso, velhas construções carecem de reforma, retorcidas que foram pelo tempo, compreende? Falta ânimo e dinheiro aos moradores, Dr. Galeno.

Com a ruína da lavoura de café, passamos a plantar braqueara para alimentar o gado. Esse capim é uma praga. Onde ele nasce, nada mais prospera. O que acontece é que um lugar inacabado só pode ser habitado por almas inacabadas. O senhor não esperava encontrar doutores em literatura num fim de mundo como este, não é?

O quadro que o senhor acaba de pintar tem a ver com a política dos coronéis e generais, disse o homem da lei, e existem muitos lugares como este no resto do País.

Pelo contrário, discordei. Morro do Calvário sempre foi um lugar parado no tempo. É como se o bom Deus tivesse interrompido sua obra na manhã do sétimo dia, pouco antes do merecido descanso, compreende?

Dr. Galeno ficou em silêncio e se pôs a andar de um lado para o outro, atrás da mesa. Depois, olhou-me fixamente e perguntou se em algum momento eu cheguei a cogitar que Siá Zizinha pudesse ter matado o marido e a irmã durante uma briga ou numa crise de ciúmes.

Minha resposta foi negativa. Por muitos anos convivi com os Mouras e jamais tive razão para acreditar que algum deles cultivasse ciúme, ódio ou rancor, compreende? Pelo contrário. Não eram dados a grandes demonstrações de afeto, é verdade, mas nunca presenciei uma discussão naquela casa. No entanto, que alma humana não tem lá seus senões?

Dona Maria das Dores chegou a comentar com o senhor o que se passava entre a irmã e o marido?, perguntou o delegado.

Mais uma vez minha resposta foi evasiva, compreende?, sendo prontamente registrada à máquina pelo escrivão Palmério.

Siá Zizinha é uma grande colaboradora do meu partido, ressaltei. Mais que isso, sempre foi minha amiga e jamais se queixou de Leôncio ou de Gláucia Maria.

O delegado se sentou na cadeira giratória, esmagou o cigarro no cinzeiro de pedra sabão e disse que eu haveria de convir que existia um caso amoroso entre aqueles dois, embora quase ninguém quisesse falar no assunto. Afinal, Leôncio havia pedido a mão da caçula e seu Arlindo havia lhe empurrado a filha mais velha.

Pelo contrário, comentei. Tem muita gente falando mal da vida alheia por aí, mas com certeza eu não sou uma dessas pessoas, compreende? Se em algum momento existiu um relacionamento entre o marido e a irmã de Siá Zizinha, não sou eu quem vai lhe dizer, Dr. Galeno.

Mais uma vez ele ficou de pé e andou de um lado para o outro.

Parece que o senhor não está entendendo, disse logo em seguida. Aconteceu na cidade um crime hediondo e é preciso desvendá-lo. Esse é o meu trabalho e por isso eu me vejo forçado a fazer perguntas desagradáveis. Seja lá quem matou aqueles dois, cabe a mim, como delegado, colocá-lo na cadeia. E é isso o que pretendo fazer, com ou sem a ajuda do prefeito. No entanto, se souber que usou do cargo ou de sua influência política para atrapalhar as investigações, sou capaz de processá-lo por obstrução da Justiça.

O senhor está me ameaçando?, perguntei à queima roupa. O homem parou de andar, compreende?, sentou-se novamente e acendeu outro cigarro.

Sabe de uma coisa?, exclamou, este é um tempo obscuro e pessoas inteligentes como o senhor bem poderiam colaborar para que as coisas melhorassem.

Diante disso, argumentei que já havia colaborado muito para que as coisas não piorassem de vez. Se não fosse por pessoas como Siá Zizinha, padre Wenceslau e eu, provavelmente a revolução militar teria fracassado e os comunistas estariam no poder.

Aquilo não foi uma revolução... Mas, ao contrário do que dizem por aí, eu não sou comunista, desabafou o delegado. Tampouco estou interessado na Guerra Fria ou em qualquer justificativa para a ditadura que governa o País. Sei das suas ligações com o secretário de Segurança e não ligo a mínima se Siá Zizinha é culpada ou inocente. O que me interessa, neste caso, é a verdade. Nada mais que a verdade. Eu apenas cumpro a lei. Fazer justiça compete aos juízes.

 

Homem interessante o delegado que nos mandaram da capital! Era fácil perceber os conflitos vivenciados por ele, compreende? Ainda que sua carreira tenha sido prejudicada por ingerência do regime militar, ele não era nem um pouco negligente no cumprimento do dever.

Mesmo estando politicamente do lado oposto, eu aprendi a admirá-lo até certo ponto. O ponto exato em que suas investigações colocavam em risco minha reputação e meus interesses, compreende? No entanto, eu ainda guardava uma carta na manga, para o caso de a sorte se virar contra mim.

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