Primavera dos mortos
Jorge Fernando dos Santos
Parte 1
Capítulo 6 - Padre Wenceslau
REZEI PELOS mortos na missa das oito e, sem querer, oficializei o boato que já havia se espalhado. Após a celebração, os fiéis saíram da igreja e foram direto ao cemitério.
Mein Gott! Homens, mulheres e crianças queriam ver de perto os estragos provocados pela chuva da noite anterior.
Num lugar onde quase nada acontecia, qualquer fato, por menor que fosse, era suficiente para quebrar a rotina e deixar o povo agitado feito uma correção de saúvas.
Na manhã daquele sábado, os moradores de Morro do Calvário pareciam ser movidos por uma curiosidade mórbida, como se não vissem a hora de conferir os restos mortais de seus parentes e amigos.
Nem mesmo seu Ascânio e Siá Zizinha, pessoas mais esclarecidas que os demais moradores, desejavam perder o espetáculo. No entanto, já não havia muita coisa para se ver. Enquanto a missa era celebrada, os funcionários municipais, comandados por seu Vicente, adiantaram o serviço e reenterraram boa parte dos esqueletos que a chuva arrancara dos túmulos.
Sobrou uma ou outra ossada à flor da terra e o encarregado do cemitério informou a seu Ascânio que alguns ossos tinham desaparecidos durante a tempestade.
Provavelmente, foram levados pela enxurrada, morro abaixo, a exemplo da caveira branca encontrada de manhãzinha na porta dos Mouras, disse o negro.
Não demorou muito, um boato infundado começou a circular entre os presentes, dando conta de que a tal caveira pertencia justamente ao finado Leôncio Duarte, que estaria desejoso de voltar para a mulher e o filho. Seu esqueleto teria sido desenterrado e estaria fora da sepultura, e ainda sem cabeça.
Tanta horripilação me fez recordar os tempos da guerra na Europa, quando a vida humana não valia um tostão furado.
Nesse momento, chegou ao cemitério o delegado do distrito, Dr. Galeno Valadares. Era um homem alto, de queixo quadrado, metido num terno escuro. A boca parecia um corte horizontal, quase sem lábios e pouca dada a risos. Lemboru-me mesmo um oficial prussiano.
Chegou acompanhado de dois soldados numa viatura do pequno destacamento do município. Saltou do jipe se desculpando pelo atraso. Havia ido a Belo Horizonte visitar a mulher e o filho, e o temporal atrasou-lhe o retorno.
Sua presença nem era necessária, disse seu Ascânio, sistemático, já que tudo não passara de um incidente sem vítimas, causado por força da natureza.
O que ninguém esperava, no entanto, é que o tal seu Vicente guardasse uma informação importante, que quebraria de vez a rotina de vida da comunidade.
Os senhores vão ficar tão surpresos quanto eu, disse ele, a coçar a carapinha esbranquiçada. Vejam esse esqueleto que ainda se encontra fora da sepultura, apontou.
Na lápide de cimento, que fora trincada e removida pela força da enxurrrada, lia-se o nome de Gláucia Maria de Moura. Não é possível, suspirou Siá Zizinha numa espressão que misturava espanto e apreensão.
E o senhores não sabem da maior, prosseguiu seu Vicente. O crânio tem um furo redondo do lado direito, da espessura do meu dedo mindinho.
Ao dizer isso, ficou de cócoras com a caveira enlameada na palma da mão. Hamlet sertanejo na hora do ser ou não ser, ele enfiou o mínimo esquerdo no pequeno orifício sob o olhar perplexo dos presentes.
Um burburinho desviou as atenções. Agarrada ao braço do filho Hilário, Siá Zizinha havia desmaiado.
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