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Como escrevo?
Amadeu de Queiroz

“Vou dar uma idéia. Logo que imagino um romance, crio os seus personagens e, antes do mais, faço uma relação de todos eles, com os nomes e as características de cada qual. Assim os personagens começam a existir desde logo. Vão adquirindo personalidade... e não me deixam mais um instante sequer. Como na vida, os personagens de um romance devem existir antes da ação. Devem ser uns tipos comuníssimos, mesmo porque não é possível inventar as figuras de uma obra de ficção. Devem existir, dissimulados em toda gente: devem ter os olhos de um, o talento e o nariz de outro, a astúcia e a feiúra de muitos, a maldade de quase todos... O que sai de minha pena existe por aí, senão na realidade, com certeza na imaginação de muita gente. Quer saber de uma coisa? Quando escrevo, procuro imitar o incrustador que, aos pedacinhos, faz o admirável conjunto de sua obra... Aplico o mesmo processo aos homens, à paisagem, às paixões, a tudo que possa gerar emoções. A emoção não se transmite. O escritor não deve apresentar a sua obra integralmente realizada, nem dar um sentido definitivo às suas palavras, mas incitar, com a sua arte, a arte dissimulada dos leitores, realizada só por eles, conforme a cultura e a sensibilidade de cada um. Sejam o que forem, os escritores, talentosos ou geniais, só conseguirão, com a sua arte, despertar emoções dormentes. O livro é fonte de emoções sempre novas. Passem as gerações e os leitores continuarão criando os seus mundos, inspirados no mesmo livro, no livro que não morre nem envelhece. Mas também há os leitores pretensiosos... Esses querem a toda força encontrar em nossos escritos intenções que jamais tivemos... Acontece, às vezes, que me vem à lembrança uma palavra qualquer, que me parece expressiva ou interessante. Sinto um desejo enorme de utilizá-la. Então componho uma frase em que ela fica em bastante destaque. Feita a frase, corrijo-a, deixo-a bem apurada e aplico-a a um sentimento, a uma paisagem, a um tipo. Depois, acomodo-a a uma história... O leitor não conhece essas ginásticas de trampolineiro. Supõe a criação enorme, descendo para a exigüidade da palavra. Portanto, já então, eu saí do meu rumo para cair no do leitor. E, assim, quanto mais incompreensível que me apresento, mais engenhoso ele se torna para interpretar-me. E chega ao ponto de descobrir intenções que não tive, símbolos de que não me servi, argúcias filosóficas de que nunca dispus...”

 

Fonte: PEIXOTO, José Benedito Silveira. Falam os escritores. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1971-1976.

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