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Grandes entrevistas

       

Alceu Amoroso Lima


Entrevista conduzida por Pedro Bloch, publicada na revista Manchete em 1963 e republicada no livro: Pedro Bloch entrevista. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1989, de onde foi extraída

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"Catolicão (já definiu alguém) é aquele católico que, ao morrer, chegando ao céu tem a enorme surpresa de verificar... que Deus existe!" E com imenso humor que Tristão de Athayde cita esta frase, antes de me mostrar as raízes de sua fé:

Cheguei à fé pela idéia da totalidade. Nunca me satisfiz com as coisas unilaterais, parciais. Sempre procurei pelo que está por trás das aparências. Durante anos experimentei muitos caminhos, mas a indiferença e a negação da busca da verdade não poderiam satisfazer-me. A verdade não pode estar na pura interrogação ou na negação. Nem a estética, nem a criação literária, nem a viagem, nem a cultura pura e simples, nem a vida fácil, nem a justiça social me bastavam. Tudo isto são partes de alguma coisa. Se eu quero a beleza, se eu quero o bem é porque acima de mim ou fora de mim há alguma coisa que deve conter a fonte da beleza, a fonte da justiça, a fonte do bem. A força unitiva que constitui a harmonia universal.

Alceu Amoroso Lima (pseudônimo: Tristão de Athayde) completa, agora, setenta anos. O catedrático se aposenta por força da lei. ("A aposentadoria se explica, me diz ele, porque muitos velhos são infensos à renovação, mas cada caso deveria ser estudado em si.") Inúmeros convites, porém, já lhe estão surgindo de toda parte, pleiteando a sua cultura lúcida, sua fé de raízes fundas e belas, suas constantes lições de grandeza humana. ("Eu me sinto mais jovem que nunca!") Filho de Manuel Amoroso Lima (carioca) e de D. Camila Silva Amoroso Lima (do Porto), nasceu a 11 de dezembro de 1893, no Cosme Velho, no Rio, na Casa Azul. A mãe lhe ensinou a ler, pelo método das imagens de João Kopke, que mais tarde seria seu mestre. Este seria o grande precursor da Escola Moderna, no Brasil. Ensinava passeando na rua e na chácara. A Casa Azul deixaria marcas fundas no menino que, mais tarde, iria sofrer muito, ao se ver "engaiolado" no Pedro II.

Todas as infâncias, no fundo, se parecem, como se assemelham todas as saudades. Era uma velha casa azul acolhedora e simples. Não são apenas nossos atos que nos seguem. São, também, as coisas que tocamos, os gostos que prezamos, é tudo que feriu um dia nossos sentidos, que neles fica gravado para sempre. E basta um toque ligeiro de chamada, uma música ao longe, uma palavra no escuro, um nada, para que tudo volte de atropelo, como se tivéssemos, há minutos apenas, tocado a flor de há quarenta anos ou perdido de novo os olhos em outros olhos, como naquela esquina da adolescência. A saudade é uma terceira natureza.

Morava Machado de Assis poucas casas adiante da velha Casa Azul. Como freqüentássemos o gradil da frente, brincando de condutor de bonde, também ele brincava conosco de passagem, e por vezes nos dava versinhos humorísticos, que minha irmã mais velha recitava. Aquele homem tímido e sem filhos que passava à tarde na calçada, de braço dado com D. Carolina, e sabia usar da glória com tanta discrição, era para nós um vizinho como os outros.

Foi à sombra dos sapotizeiros da chácara de meu padrinho que Afonso Arinos povoou a nossa infância de um sonho sertanejo cheio de bravura e poesia. Foi à sombra de suas mangueiras que vi, também, pela primeira vez, um velhinho branco e curvo, de fraque claro, que olhava as plantas com imenso carinho e já me ensinavam também a venerar: Rui Barbosa.

Assistimos, em nossos filhos, à nossa infância. Para as crianças o tempo não existe. Um dia levei meus filhos pequeninos (deixamos aquela casa em 1900) a uma excursão de despedida à Casa Azul. A menina vendo a ciscar um punhado de pintos chamou o irmão. "Vem ver, Paulo, os pintinhos com que papai brincava."

O menino de outrora chegaria a pensador celebrado, a catedrático da Faculdade Nacional de Filosofia e da PUC, a presidente da Editora Agir e autor de tão vasta obra de pensamento e tão valiosa que, ao divisar-lhe a grandeza, Afrânio Coutinho, encarregado de reuni-la para publicação num só volume de Aguilar, exclamou: "A minha dificuldade é conseguir botar o Amazonas numa garrafa." Casou Alceu, em 1918, com D. Maria Teresa Faria, irmã de Otávio de Faria. Tem sete filhos e quinze netos.

Minha obra-prima é a minha filha religiosa Maria Teresa, a quem escrevo, todos os dias, uma média de dez páginas, desde 1951, quando entrou para o convento. Todos os dias vou à missa (Igreja da Santíssima Trindade). A segunda coisa que faço é escrever para Maria Teresa.

A ternura o envolve e os olhos se iluminam. Diante de Alceu se tem o verdadeiro gabarito da palavra cultura.

O radical kult (do sânscrito) dá as três atitudes fundamentais do homem: a atitude econômica (ligada à terra; a agricultura), a atitude religiosa (para com Deus, oculto) e a intelectual. O homem com a terra, o homem com Deus e o homem consigo mesmo e com os outros homens. A cultura representa a plenitude do homem, na sua condição de ser físico, de ser moral, de ser intelectual e espiritual. E social, porque a cultura, também, pode ser social ou coletiva.

Alceu, em todos os seus escritos, se vem sistematicamente apresentando como adversário de todo nacionalismo cultural e de todo continentalismo cultural, e, pelo contrário, partidário de um amplo universalismo, em que cada nacionalidade e cada continente manifeste o seu espírito próprio e contribua com o seu gênio peculiar para a formação de uma civilização humana, no verdadeiro sentido da palavra, isto é, ao mesmo tempo pessoal, nacional, continental e universal.

A cultura implica nas dimensões material, intelectual, espiritual e social do homem. A plenitude da cultura é a humildade diante do saber, o saber que se transforma em amor. Conhece-te a ti mesmo e ama ao próximo. O homem verdadeiramente culto é o homem verdadeiramente humilde, o que se dá muito bem com os homens incultos, os que possuem a cultura primitiva, a cultura da terra. O ser culto é o que sabe reconhecer os limites de sua ignorância e reconhecer no alfabeto a cultura nativa. Cultura é o que fica daquilo que se esqueceu. O homem culto cita pouco. O que ele sabe passou a ser uma terceira natureza, sendo a primeira a que Deus lhe deu e a segunda a que adquiriu com os hábitos correntes.

Estamos vivendo a gestação de um mundo futuro: o fim de uma civilização e início de outra. Estamos vivendo o final de uma curva de colonização que começou no século XVI: a irradiação pelo mundo da civilização ocidental, da cor branca e da civilização cristã. O cristianismo nasceu há dois milênios entre o Ocidente e o Oriente, se fixou na Europa, mas só no começo do século XVI começou a se espraiar pelo mundo, simultaneamente com o desenvolvimento da civilização branca colonizadora do branco que criou a máquina e começou a levar a civilização ao mundo, baseando-se no princípio da nacionalidade e no do predomínio da raça branca. O homem branco ligou a realização da máquina ao cristianismo, com o desenvolvimento do capitalismo, numa organização individualista e com a colonização dos povos. Durante esses séculos, o cristianismo, que era a plenitude da civilização judaica (os judeus, por sua vez, receberam a revelação do monoteísmo), sofreu uma incorporação falsa da espiritualidade, subordinando-se ao princípio da arianização e ao princípio do nacionalismo, quando por natureza deveria ser universal, autônomo, e criador, portanto, de uma civilização autenticamente fraterna, humanista e comunitária. Surgiu uma civilização individualista, imperialista e mecanicista. Agora, no fim do século XX, estamos vendo que os povos e as classes dominadas por todo esse complexo, continuando a solapar a civilização capitalista, através da luta de classe iniciada no século passado, realizam a vingança dos espoliados contra a usurpação da técnica que deveria estar a serviço de todos.

As formas de luta, entretanto, são primitivas. Só nas reformas realmente profundas poderão realizar o verdadeiro futuro da sociedade. Estamos assistindo ao tremendo fenômeno da revolução dos espoliados e à rebelião dos homens de cor (Africa e China... ).

Só vejo a solução na reespiritualização e na racionalização do fenômeno máquina, relações de classes e nacionalismo; no desaparecimento do racismo; na reformulação em que todos os homens se possam entender na base do homem. Não tenhamos dúvidas: se amanhã houver uma ditadura proletária será tão tremenda quanto a ditadura aristocrática ou a ditadura burguesa. O Papa João XXIII viu a aproximação entre todos os homens de todas as raças. Precisamos sentir aquilo que está no Sermão da Montanha e na tradição mosaica, que é o homem viver amando a Deus, portanto amando o bem acima de tudo, amando ao próximo, fazendo do amor a base da civilização, fazendo com que os princípios fundamentais do homem para com o homem, do homem para consigo mesmo e do homem para com Deus marquem a primazia dos valores espirituais autênticos sobre os valores temporais. E uma revolução lenta e profunda, que visa à paz e à justiça e que cada qual deve realizar dentro de si mesmo, dentro de sua família, dentro de sua profissão. Não se deve considerar máquina em si como um mal, não se deve olhar a revolução comunista como algo de demoníaco, mas analisar os fenômenos e verificar por que a civilização não realizou aquilo que dela seria lícito esperar. Não podemos conter o raio com a mão, mas podemos fazer com que a nossa vida quotidiana tenha a direção daquilo que desejamos. Estamos diante de forças desencadeadas pela própria alucinação da humanidade. O homem desenvolveu sua técnica, seu poder sobre o mundo e está como "aprendiz de feiticeiro" substituindo-se a Deus, senhor da palavra que desencadeia os fenômenos mas sem conhecer o que os faz cessar. Um dominicano, quando da explosão da primeira bomba atômica, perguntou-me em pânico: "Mas, Dr. Alceu, que fazer diante disso?" Respondi: "Viver. Procurar viver em estado de graça." Vivemos hoje em dia com a ameaça da morte contínua. Essa presença da morte é uma dimensão do século XX. Nunca houve, até hoje, a possibilidade de desencadeamento, de uma hora para outra, de forças telúricas tão demoníacas. Lembre-se de Mon Faust, de Valéry, quando diz: "Eles redescobriram o caos." Só o amor pode recompor este mundo, só a sabedoria do coração. Nenhum de nós, isoladamente, pode salvar o mundo, mas sem nós o mundo também não se salva.

O Papa João XXIII era um exemplo patente do que representam as forças espirituais para a realização da nova humanidade. Sua simplicidade camponesa era a sua própria grandeza. Foi eleito, velho e sem forças, como um Papa de transição. Transformou-se, porém, na grande surpresa do mundo, escândalo para todos aqueles que queriam a Igreja anquilosada, fechada, isolada. Ele veio abrir a Igreja através da mensagem de Cristo, do amor e da compreensão. Deixou duas encíclicas extraordinárias, como obras de ciência e sabedoria. O Concílio foi obra sua também. Tinha tal consciência de, sua função de missionário que, numa audiência concedida às delegações, demorou-se mais tempo com um negro africano, um pagão e um representante de país comunista. Paulo VI, de temperamento diferente, continua, pela primazia da inteligência, a obra de primazia do coração de João XXIII. Paulo VI emprega muito a palavra diálogo. Disse: "O Concílio vem lançar uma ponte para o mundo moderno.

Perguntaram um dia ao neto de Alceu como o avô era tratado em casa: de Alceu ou Tristão? O menino coçou a cabeça e respondeu: "Eu chamo ele mesmo... é de vovô." Quero saber a origem do pseudônimo Tristão de Athayde. Mestre Alceu esclarece:

Eu ia ocupar a direção da fábrica de meu pai, depois de ter deixado a diplomacia. Ao mesmo tempo Renato Lopes me convida para escrever uma seção literária em O jornal. Pensei num pseudônimo, porque naquele tempo letras e comércio não combinavam muito. Eu havia enviado um soneto meu que fora recusado por uma revista literária, firmando-o com o pseudônimo de "Vasco Athayde" (português dos descobrimentos). Não podia usá-lo porque acabariam por indagar "com que autoridade vem ele fazer crítica?" Inventei então o Tristão de Athayde. Vem agora a parte surpreendente: mais tarde, lendo as Décadas, de João de Barros, venho a descobrir que, no século XVI, existiu realmente um Tristão de Athayde, muito sem-vergonha e muito explorador, com quem não quero parecer de jeito nenhum.

Olho para aquele jovem de setenta anos, vibrante e iluminado. Em 28, se converteu ao catolicismo, dedicando-se aos estudos sociais e filosóficos e ao cristianismo militante. O jornal, Diário de Notícias, jornal do Brasil, La Prensa e a revista A Ordem são algumas das publicações em que colabora ou colaborou. Presidiu por muito tempo a “Ação Católica”. Já em 22 foi decisivo o seu apoio à revolução modernista, influindo em seus resultados. Foi diretor do Departamento Cultural da Únião Pan-Americana, em Washington; reprsentante da OEA na UNESCO; deu cursos na Sorbonne e na New York University. E membro da Academia Brasileira de Letras e do Conselho Nacional de Educação. Dele disse Afrânio Coutinho: "Ninguém desafiou com maior bravura moral e intelectual a carapaça de indiferença e de má vontade, até mesmo as resistências ao ridículo e à incompreensão. Também, por isso, precisamente, será difícil apontar influência maior que a sua no Brasil, influência que não é apenas literária, mas cultural, espiritual, envolvendo todo o país."

O que penso da juventude de hoje? Muito superior à de meu tempo. Muita gente a critica dizendo que está politizando mas, em todo o transcurso da História do Brasil, a juventude esteve sempre adiante de seu tempo. Ela participa, entre nós, do Conselho Universitárto, coisa que nem os EUA, nem a Inglaterra, nem a Rússia permitiriam jamais. Acho que a juventude pode, usando corretamente sua força, realizar algo de novo, grande e pioneiro. Para isso deve ter consciência plena de suas responsabilidades. Uma civilização do trabalho é intrinsecamente superior a uma civilização do capital, com a condição de reconhecer e tomar efetiva para o homem trabalhador e para toda a comunidade humana - a sua dimensão de pessoa livre.

Quero reafirmar, partindo de um poeta (Claudel), e de um poeta que amou e exprimiu a vida toda, o natural e o sobrenatural, a minha crença, cada vez mais profunda, de que a vida vale a pena ser vivida. Não há modelos definitivos em matéria de estética, e a multiplicidade de formas estéticas, sucessivas ou simultâneas, corresponde a uma procura nunca satisfeita e tão arraigada no homem quanto a busca de Deus. O homem é a única criatura que fala. Mas também é a única que sabe dar ao silêncio o seu sentido profundo. Não basta ter universidade no papel ou na lei nem títulos nem cerimônias universitários, para termos autênticas universidades. E conhecida a famosa anedota de um americano que na Avenida dos Campos Elísios, em Paris, perguntava a um francês quanto custara a construção daquela artéria. O francês respondeu: "Mil anos de civilização."

Uma vida norteada pela lealdade, pela submissão dos princípios morais, pela linha reta de uma convicção generosa e nobre. Uma obra que já se coloca entre as mais importantes de nossa literatura, pelo seu valor intrínseco, pela sua significação, pela sua influência, pela sua autoridade. Foram muitos os jovens que aprenderam a pensar e a fazer literatura através de seus livros e artigos. Sentimos, em tudo que escreve, a qualidade dessa natureza, a sua sensibilidade poética, a sua bondade, a sua visão material do mundo.

Diante de Alceu Amoroso Lima se tem a visão nítida da fé justa, profunda, equilibrada. Do homem que sondou sua alma e dela extraiu valores eternos. Nesta época de crise de autenticidade de fé, nesta astronáutica em que o homem julga dominar o cosmos e se perde dentro de si mesmo, é confortador o espetáculo de um homem que sente o que diz e diz o que sente, que sabe o que diz e diz o que sabe. Setenta anos de cultura, no sentido mais amplo desta palavra, nos deram um homem tão nosso e tão universal, capaz de tudo compreender, de tudo perdoar, de sintonizar com a vida, com o mundo e com Deus, antípoda, em sua grandeza, daquele catolicão, satirizado por Agripino Grieco, que tirava o chapéu... toda vez que passava pela porta do Banco do Brasil.
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