Volta para a capa
Grandes entrevistas

               Almeida Faria

Entrevista conduzida por Marcello Sacco, publicada no site http://alfarrabio.di.uminho.pt (12/10/2012)

P.: Para começar, pondo de lado a ordem cronológica e o seu primeiro romance, parece-me importante reconstruir a génese da Tetralogia Lusitana. Como, e quando, surgiu a ideia de A Paixão? E como, e quando, surgiu a ideia de escrever um ciclo de vários romances?

R.: De facto, a ideia de um ciclo e de A Paixão são simultâneas, mas o projecto inicial era uma trilogia: Sexta-feira santa, Sábado de Aleluia e Domingo de Páscoa. Foi assim que comecei A Paixão, mas tive de esperar pela Aleluia, que demorou mais do que eu pensava. Respeitei o projecto inicial ainda em Cortes, apesar da distância cronológica, e em Lusitânia. Até que chegou enfim o 25 de Abril e alterou as condições de possibilidade de escrever em Portugal, de ficcionar, de usar não só outras
palavras mas também de ter outras ideias e projectos mais abertos. De entre estes livros, Cortes foi o mais problemático e o mais difícil: os portugueses em geral não gostam dele, excepto o Herberto Hélder, que o elogiou.


P.: É mais difícil para o leitor ou foi mais difícil escrevê-lo?


R.: Não creio que fosse difícil escrevê-lo, mas foi mais demorado. Entretanto já eu tinha vivido nos Estados Unidos e na Alemanha, já tinha outro conceito de literatura. Estava então muito ligado à dialéctica hegeliano-marxista e queria que Cortes fosse a anti-Paixão: o estilo tinha que ser diferente porque o olhar por trás do estilo era diferente, menos romântico e mais crítico. Apetecia-me ser feroz em relação à realidade do país, agora que tinha a liberdade de expressar tudo isso. Se digo que os portugueses gostam pouco deste livro é porque muitos portugueses preferem o romantismo sentimental, o obscurantismo mental (certas passagens d’A Paixão que são pouco claras). Cortes é mais crítico, mais claro, e o olhar crítico ou irónico não costuma agradar em Portugal.

P.: Então, se Cortes era a antítese, Lusitânia seria a síntese.


R.: Esta era a idéia, aliás ingénua.


P.: Mas a síntese, o tal Aleluia que demorou a chegar, tinha também a ver com a solução da situação política portuguesa?


R.: Nem eu sabia exactamente que género de síntese seria. Acho que um dos lados mais interessantes da criação literária é nenhum autor saber, à partida, onde é que vai chegar. Suponho que eu pretendia uma síntese também estética. Algo que ligasse o lado apaixonado de A Paixão ao lado crítico de Cortes. Talvez tenha conseguido a síntese, sem dar por isso, só em Cavaleiro Andante, um livro com aspectos muito mais emotivos do que eu próprio esperava. Já contei noutras ocasiões que uma das tradutoras francesas destes quatro romances, ao fazer leituras públicas comigo, por duas vezes escolheu o capítulo de Cavaleiro Andante onde se narra a morte de André, e, ao lê-lo, desatou a chorar em público. Por duas vezes! O que prova, pelo menos, que o livro tem esse lado fortemente emocional (mas não afirmo que boa literatura seja aquela que faz chorar).

P.: Outra novidade que não pertence ao projecto inicial é a ideia de escrever na forma do romance epistolar, para além da ideia de inserir o 25 de Abril na narração.


R.: O 25 de Abril não é apenas ”inserido”, é a alma, a condição sine qua non do livro (a infra-estrutura, como dizia nessa altura a linguagem marxista), e portanto tudo gira em volta do 25 de Abril já a partir de Cortes.


P.: Um dos pontos mais interessantes e, se quisermos, misteriosos, é a redacção deste romance, Cortes. Entre a publicação de A Paixão e a de Cortes passam cerca de uma dúzia de anos. A redacção deste romance pertence mais à época anterior ou posterior ao 25 de Abril?

R.: Pertence mais à época anterior…


P.: Mas há páginas, detalhes, que parecem impublicáveis em tempo de censura.


R.: O livro estava já escrito em grande parte, mas a possibilidade de dizer certas coisas, como usar palavrões ou mencionar o uso de drogas (marijuana), tudo isso era impensável antes do 25 de Abril. De qualquer modo eu reli e revi tudo. E também cortei muito. Realmente o título Cortes
tem vários sentidos. O livro era maior, inicialmente, e eu tornei-o, até, um pouco esquemático, tanto que alguns leitores ficaram irritados por os capítulos serem todos do mesmo tamanho. A minha ideia da literatura era talvez demasiado rigorosa, tentava aproximar a prosa de um tipo de poesia com medidas previamente definidas (o soneto, por exemplo). Talvez tenha exagerado. É um livro problemático, nem sequer é dos meus preferidos, mas agrada-me por outro lado o seu ser, de certo modo, anti-português.


P.: E quando começou a pensar deixar entrar os ventos da História nesse espaço fechado que era Montemínimo? Ou seja, quando ganhou forma o romance Lusitânia assim como o conhecemos?

R.: Acho que logo a seguir ao 25 de Abril, ou pelo menos ainda na década de 70, quando a revolução provocou profundas alterações também nas famílias e seus conflitos, nas lutas ideológicas, lutas até a nível da libertação sexual. Recordo-me que, quanto mais católicas eram as famílias, mais o choque e as mudanças eram fortes. A liberdade ultrapassava as expectativas e a própria imaginação das pessoas. Era a fase em que Portugal se definia como manicómio em autogestão, em que tudo parecia possível. Pura ilusão, mas capaz de grandes mudanças na vida das pessoas, e isso talvez se reflicta no estilo. Quanto ao género epistolar, não me lembro como apareceu, só sei que queria dar à literatura portuguesa o século XVIII que ela não teve. Como em Portugal o séc. XVIII, do ponto de vista literário, foi uma desgraça, com censura e polícia política bastante eficazes, na literatura portuguesa faltou ou falhou o que na Europa livre havia: romances epistolares e libertinos. Lusitânia e, depois, Cavaleiro Andante, foram uma reivindicação libertária com dois séculos de atraso.

P.: No fundo, é já uma primeira ideia de praticar uma literatura libertina.


R.: Isso mesmo, dar à literatura portuguesa esse lado libertino que ela quase desconhece. Tivemos poesia de escárnio e maldizer, aliás bastante forte, e aqueles textos do Bocage (ou a ele atribuídos) que circulavam quase clandestinos. Procurei por isso um libertação e mesmo uma libertinagem a que os portugueses reagem geralmente de modo reticente. A literatura portuguesa é bastante puritana, não teve um Aretino, quase nunca teve a liberdade que outros países, mesmo católicos, tiveram.

P.: Apesar do risco de cair logo na bisbilhotice, gostaria de saber se a família retratada n’A Paixão tinha algum vago modelo na vida real nos arredores de Montemor-o-Novo.

R.: Tinha vários modelos, podia ser várias famílias. A ficção é fruto da observação das pessoas à nossa volta. Neste caso específico, houve logo a tendência para identificar os meus irmãos com alguns dos irmãos no romance, até que um deles disse: ”Vocês ainda não perceberam que todas as personagens são ele”. O que em parte é verdade, em todas há alguma coisa de mim; até nas personagens femininas, talvez porque sempre senti grande empatia pelas mulheres. Naquela sociedade semifeudal eram elas as mais silenciadas e exploradas, sobretudo as então chamadas ”criadas”.

P.: Talvez mesmo por causa desta condição feudal, essa terra tão pequena e ”esquecida” serviu de incubadora para duas obras literárias fundamentais na história da literatura portuguesa contemporânea: a Tetralogia de Almeida Faria e Levantado do Chão de Saramago.

R.: A situação no Alentejo era tão explosiva, a injustiça era tão monstruosa, que estava mesmo a pedir um romance ou uma peça de teatro (mas quase não temos teatro). Uma situação tão dramática era óbvio que estimularia os ficcionistas a escrever sobre ela, como aconteceu com a literatura russa do século XIX. Quanto ao nome de Montemínimo, só apareceu mais tarde…

P.: …É verdade, só aparece a partir de Cortes.


R.: Justamente como resultado de minha atitude crítica, do meu gosto pela antítese. Montemor passou a Montemínimo de forma provocatória, mas as pessoas de lá ou não leram ou não levaram a mal, creio eu. O nome queria sobretudo dar essa sensação de estreiteza e mesquinhez.

P.: E o que aconteceu nestes doze anos de silêncio, entre A Paixão e Cortes, para além do silencioso trabalho da escrita? As suas notas biográficas falam de bolsas de estudo e experiências criativas em várias cidades do mundo.


R.: Nesses anos estudei. Quando A Paixão foi publicada estava eu já em Filosofia, talvez, ou na passagem de Direito (experiência nada feliz) para Filosofia. Além disso, fui estudante-trabalhador, trabalhei como correspondente estrangeiro em francês e inglês, e investiguei muito para
uma tese que não entreguei porque deixou de ser necessária à licenciatura. Uma tese sobre Hölderlin, então meu poeta preferido, até pela sua ligação à filosofia, uma filosofia poética ou uma poesia filosófica. Era um tema fascinante que tive pena de não concluir. Mas entretanto apareceram as tais bolsas, primeiro para os Estados Unidos e depois para Alemanha, duas estadias que me alargaram horizontes e alteraram o meu estilo ao alterarem a minha visão do mundo. Foi uma longa ausência, em parte justificada pela espera do fim da censura e da ditadura, mas que correspondia também à minha desconfiança em relação à ficção, actividade que eu achava pouco séria. Escrevi alguma prosa de ideias e alguns poemas até reconhecer que a ficção me dava mais prazer, e que para versos não tenho grande jeito.


P.: E como interagem a criatividade literária e a formação filosófico-estética? Para alguns, um excesso de auto-consciência estética choca com a inspiração. E no seu trabalho, depois de dois livros muito famosos publicados em menos de três anos, nota-se um espaçamento cada vez maior entre um livro e outro.


R.: No meu caso a filosofia inibiu a poesia − falo em poesia no sentido grego da palavra, o de criação literária − por dar demasiada predominância ao conceito, ao pensamento abstracto, de que a arte não precisa.


P.: Mas também existem poetas que demonstram o contrário, ou seja poesia e filosofia juntas funcionam. Aliás, os primeiros filósofos gregos escreviam em verso.


R.: Versejar não é poetar. Parménides escreveu o seu famoso tratado em verso e já Aristóteles dizia que, lá por ter escrito em verso, Parménides não era poeta! Heraclito, pelo contrário, escreveu prosa, e é o mais poético dos filósofos. Dele só chegaram até nós cento e tal frases fragmentárias, mas a sua visão metafórica e a sua dicção elevada, oracular, estão mais próximas da poesia, de poetas como Ésquilo. No tempo deles não havia uma distinção nítida entre pensar e poetar. Com Sócrates e os seus discípulos a razão começou a dominar, a oprimir aquela bela espontaneidade pré-socrática, a ponto de, muitos século depois, no Nascimento da Tragédia, Nietzsche dizer que quem matou a tragédia foram Sócrates e Eurípides, seu discípulo. Não há uma regra geral, mas no meu caso a filosofia foi mais nefasta que propícia, perdi muitos anos a estudar para dar boas aulas.

P.: Travou um pouco a inspiração?

R.: Travou. Quando estudo filosofia não sinto a necessidade de ficcionar.

P.: Falemos dos encontros importantes que aconteceram nesses anos de viagens e estadias prolongadas no estrangeiro. Por exemplo Beckett…

R.: Foi em Berlim, em 1978. Eu já gostava de Beckett, que era uma espécie de Deus para mim, e é ainda uma das pessoas que mais admiro. Assisti durante uma semana aos seus ensaios dirigindo, por amizade, a Companhia Teatral de San Quentin, constituída por antigos presos dessa penitenciária de alta segurança, na Califórnia. Tinham saído da prisão precisamente graças ao Beckett, porque no ginásio da prisão começaram a representar em 1958 À Espera de Godot, a surpresa foi enorme e o público começou a ir de fora. Graças a esse sucesso, os actores-presidiários fora sendo indultados e, depois de saírem todos, foram a Paris para conhecerem Beckett, a quem deviam a liberdade. Ele ajudou-os muito, encenando ele próprio o Godot, A Última Gravação (1977) e enfim Endgame (1978). Como encenador, Beckett era uma lição de modéstia, honestidade e dignidade. Completamente alheio a qualquer tipo de mundanismo, não fazia nada para épater, era naturalmente original, não estava interessado em impressionar.

P.: Tem alguma recordação sobre as indicações que dava ou sobre a sua maneira de trabalhar a palavra dos actores?

R.: Rigor absoluto em relação ao texto (há quem diga que os textos de Beckett não precisam de encenador porque está lá tudo escrito), sem qualquer palavreado. Espantou-me, por exemplo, observar o espanto do
autor perante as possibilidades de dizer o seu texto. Uma vez, o fundador
do grupo e actor principal, Cluchey, disse certa deixa e ele pediu-lhe: “Please, say it again, it was so funny”. Fora da peça, nas breves conversas que tive com Beckett, perguntei-lhe se tinha lido Pessoa e ele respondeu: “Yes, with great pleasure”. As frases dele eram assim: curtas, lacónicas, precisas.

P.: Mas há outro encontro literário de que eu queria falar: com Giorgio Manganelli.

R.: Com Manganelli só falei duas vezes. Da primeira, a Luciana Stegagno Picchio, o Antonio Tabucchi e eu fomos a casa dele. No fundo, ele representava o oposto de Beckett, até fisicamente. Era um conversador de uma cultura e invenção verbal espantosas, como na sua prosa. Era tímido e vivia sozinho numa casa que mais parecia um armazém de livros. Falámos uma tarde inteira de literatura mas, ao contrário de Beckett, o brilho do que dizia desfazia-se como as “lágrimas” vistosas de um fogo de artifício. Nesse e noutros aspectos era o oposto de Beckett.

P.: Nos seus livros há uma transformação que vai desde uma complexidade, estrutural e filosófica, inicial a uma atitude lúdica que não se parece exactamente com a escrita de Manganelli porque, de facto, era complexa e extraordinariamente barroca, mas corresponde a uma certa ideia de ”literatura como mentira”, como jogo, que Manganelli defendia nos escritos teóricos.

R.: Talvez Manganelli tenha tido influência n’O Conquistador, onde não por acaso há uma epígrafe dele. Eu queria fazer um livro lúdico (o lúdico pode ser muito sério) e Manganelli seria um bom modelo se eu não me desviasse de um autor assim que sinto a tentação de o imitar.


P.: A propósito de leituras importantes e de tentativas de imitação, podemos dizer que uma das leituras fundamentais da adolescência, e portanto da fase de composição dos primeiros romances, foi Faulkner?

R.: Sem dúvida. Foi importante ”no princípio, agora e sempre”, e ainda tenho grande respeito por Faulkner. Em ‘68 fiz questão de ir visitar Oxford, Mississipi, a terra dele, e fui até à sua casa senhorial, fora do centro da cidade, onde aliás não se podia entrar. Queria ver de perto os seus locais e perceber melhor aquele Sul. A nível do imaginário, associava
muito aquele Sul, ainda antes de o conhecer, ao Sul de Portugal, com a sua injustiça e desigualdade. No Alentejo não havia escravos negros, mas havia assalariados cuja situação material não era muito diferente.


P.: Será uma espécie de imprinting, o efeito das primeiras leituras?

R.: Acho que sim.

P.: Quais foram os livros lidos?

R.: O Som e a Fúria, numa péssima tradução portuguesa e só mais tarde em inglês; Palmeiras Bravas, traduzido por Jorge de Sena, um livro extraordinário; O Homem e o Rio, na tradução de Luís de Sousa Rebelo. Os
seus monólogos interiores mantêm para mim o mesmo fascínio.

P.: E a poesia? Rumor Branco foi considerado, por alguns, um livro de poesia: trechos deste romance foram incluídos numa antologia da poesia universitária e o próprio Alexandre Pinheiro Torres, que criticava o livro, via nele uma espécie de filiação com a poesia portuguesa contemporânea, o que era uma justa intuição, talvez.


R.: Rumor Branco está muito ligado ao grupo da Poesia 61, uma poética radical, antidiscursiva e antilírica. Uma poética típica dos anos 60 (em Itália havia o Gruppo 63) de que me sentia próximo até na sua dimensão política. Aquele meu romance a a Poesia 61 têm em comum a sua austeridade, o serem cortes com a tradição patética e sentimental da lírica portuguesa. Eu estou mais perto de uma estética mais austera.

P.: …Mais concentrada na língua, no significante.

R.: Sim, às vezes até de mais, quando o excesso de concentração no significante dificulta ou impede a emoção poética. Mas interessa-me a ligação dessa poesia ”antipoética” à música mais radical, como aconteceu em Itália com os textos de Calvino ou Sanguineti e a música de Berio, um dos meus compositores preferidos. Sempre desejei aproximar a música e a palavra. O título Rumor Branco vem aliás da música electrónica, é um termo utilizado por Stockhausen.

P.: Uma vez, numa ocasião pública, falou de um impulso literário como sublimação de um impulso homicida, ou seja, escreveu um livro por não poder matar Salazar. É verdade?

R.: Não sei se falei em sublimação, mas é verdade que, na minha adolescência, matar Salazar tornou-se uma obsessão, uma fantasia irracional e impossível.

P.: E o impulso de matar Salazar não terá sido, por sua vez, uma sublimação de um forte complexo edípico? Hoje alguns críticos, ao escrever sobre a sua obra, enquadram-na dentro de conceitos como ”crise da autoridade”, tanto política (a autoridade do Estado) como mais geral (por exemplo a autoridade paterna). E os seus romances, mesmo quando falam de política, parecem retratar sempre aquilo que Freud chamava ”romance familiar”.


R.: A figura de Francisco, o pai da Tetralogia (morto em Cortes), será um transfer de Salazar, mas não me compete analisar-me. Em todo o caso o meu pai não era autoritário, era democrata, anti-salazarista, e teve problemas por causa disso. Eu é que sou violentamente anti-autoritário, qualquer autoritarismo me provoca reacções quase alérgicas, instintivas. E vejo manifestações autoritárias onde outros parecem não ver nada. Toda a sociedade portuguesa sofre ainda de um autoritarismo em parte inconsciente, e isto a vários níveis, desde as forças militarizadas até à medicina e à justiça.


P.: Existem hierarquias muito fortes.

R.: É uma sociedade bastante feudal, onde o cidadão propriamente dito não existe. Isto talvez me afecte mais porque, aos quinze anos, vivi o período da candidatura presidencial de Humberto Delgado num clima de terror, no Alentejo e em minha casa. O meu pai teve que sair de casa paranão ser preso, e eu passei a dormir de espingarda à cabeceira, convencido de que seria preso em vez dele.


P.: E o que é que a política oferecia a um jovem nesses anos?


R.: Nada, no Alentejo havia só raiva e revolta. Quando vim para Lisboa é que andei metido tanto em conspirações que levaram à crise académica de ’62 como no Grupo Cénico de Direito que tentou levar à cena a peça de Ingmar Bergman apartir da qual ele fez A Fonte da Virgem e que foi proibida, talvez pelo tema da ”violação” ou por algum inocente termo mais vernáculo. A Censura não precisava de justificar nada…


P.: Falámos há pouco de encontros importantes, mas não falámos de Mário Botas.

R.: O encontro com ele deu-se mais tarde. Julgo que o conheci só em 1980 e ele morreu três anos depois. Foi porém um encontro intenso, descobrimos entre outras afinidades uma grande atracção pelo mundo onírico. Na nossa aproximação, foi ele quem deu o primeiro passo ilustrando a então Trilogia Lusitana e, mais tarde, desenhando a capa do Cavaleiro Andante. Um desenho dramático, porque a caveira aparece colorida com as cores da bandeira portuguesa, como se representasse também algo da morte do país. Ainda fiz O Conquistador sobre desenhos a partir de conversas que tivemos e a partir de um romance erótico, A História do Olho, de Bataille, feitos para um projecto que falhou. Tudo isso
se passou no seu último ano de vida, ele deu-me os desenhos e pediu-me que os incluísse no romance que viria a ser O Conquistador. Foi uma retribuição semelhante à que eu fizera já em Os Passeios do Sonhador Solitário, onde inventei situações baseando-me num desenho dele. O facto de eu não ter publicado novas narrativas depois de O Conquistador pode ter a ver com a impossibilidade de realizar um segundo volume com mais desenhos dele.

P.: Uma primeira reflexão sobre a figura do Desejado parece aflorar já em Cavaleiro Andante, mas de forma mais dramática. N’OConquistador torna-se mais lúdica e, até, satírica.

R.: Não me lembro como nem porquê nem quando apareceu o meu interesse por Dom Sebastião. Talvez tenha a ver com esse meu prazer de
contradizer, de reagir a tudo o que é solene, consensual, dogmático, autoritário. E como Dom Sebastião é o grande mito nacional, pensei que me daria (e deu) muito gozo gozar com ele.

P.: Mas esse mito, nas últimas décadas, reapareceu depois dos anos revolucionários? Foi uma espécie de regresso à tradição?

R.: Quem restaurou o mito no século passado foi o Pessoa na Mensagem, um livro que eu não amo, mas cujo poema sobre Dom Sebastião é excelente e devolveu ao rei a sua aura mítica. Por outro lado, quando comecei a ler mais sobre Dom Sebastião percebi que era uma figura trágica.

P.: Era praticamente um miúdo abandonado.


R.: Sim, abandonado pelo pai que morreu antes de ele nascer, e pela mãe que era espanhola e voltou para Madrid pouco depois de ele nascer, tinha cumprido o seu dever. Sebastião não conheceu nem pai nem mãe, foi educado por dois irmãos jesuítas que devem ter avariado o pouco juízo do rapaz. O qual já não seria ser muito normal, visto que era fruto de uma série de casamentos entre primos direitos. O pobre Sebastião era um desgraçado que se quis suicidar naquela batalha absurda e fatal.

P.: Voltando à pintura, para além da relação com Botas, é a própria relação com esta arte que parece ganhar importância no seu trabalho de escrita dos últimos anos. Isto nota-se em textos muito pequenos. O conto Vanitas, inspirado na figura de Calouste Gulbenkian, inspira-se sobretudo numa série de quadros.

R.: Se nos meus primeiros livros estava mais presente a música − por esse antigo desejo de aproximar a palavra da música − a pintura tornou-seme importante à medida que comecei a ver quadros, o que aconteceu só quando viajei pela Europa. Também escrevi sobre Charrua, um abstraccionista. Mas, enquanto ficcionista, mais do que a pintura abstracta atrai-me a pintura figurativa, do Mário Botas ou da Paula Rego.


P.: Qual foi o papel de Vergílio Ferreira, não tanto no seu lançamento no mundo da literatura, quanto na sua formação e sensibilização literária?


R.: Quando, aos dezasseis anos, cheguei ao liceu de Évora, eu nunca lera um romance sequer.


P.: Portanto, mais que como romancista, foi importante como professor que aconselha leituras. E o que Ferreira aconselhava?

R.: Ele gostava de Camus (até o imitava fisicamente), de Sartre que não me interessava muito, e de Malraux que não me interessava nada, a não ser o dos escritos sobre arte. Vergílio Ferreira desconfiava do Pessoa − sobre quem escreveu um texto lamentável, nunca reeditado, em que o comparava a Pitigrilli − mas os heterónimos intrigavam-no e, se então li Pessoa, devo-o a ele. E também falava de pintura nas aulas. Só que nessa altura eu não vira pintura nenhuma, a não ser Charrua, que era o grande pintor de Évora.


P.: Falemos do teatro. Uma paixão antiga, vivida como espectador, mas que se revelou só mais recentemente, como autor.


R.: Paixão despertada por Beckett. Em Évora assisti a À Espera de Godot, que em Lisboa fora alvo de distúrbios e protestos da direita, por causa dos palavrões ou da própria situação dramática, tão diferente do teatro “normal”. Em Évora, talvez pelo pavor provinciano ao escândalo ou pelo medo à autoridade, não houve manifestação nenhuma.


P.: Ou se calhar os alentejanos estavam mais abertos para a cultura europeia.


R.: Evito generalizar, mas essa abertura, se existia, teria mais a ver com a força da esquerda ou a fraqueza da Igreja no Alentejo. Nem sei se
seria maior abertura ou maior passividade. Para mim foi uma surpresa descobrir que se fazia teatro assim, com conversas banais, personagens mais que banais, uns pobres diabos. Eu já fora actor amador em Montemor, mas só em Évora tive a sorte de ver Beckett. Depois descobri Shakespeare em Inglaterra, muito bom teatro na Alemanha e o teatro de Giorgio Strehler em Itália.

P.: O teatro amador de Montemor-o-Novo não era organizado pela Igreja, pois não?


R.: Era organizado pelo Dr. Alfredo Cunhal, um lavrador formado em Direito e primo afastado do outro, o Dr. Álvaro. Era um homem culto, inteligente e liberal (foi ele quem avisou o meu pai de que iria ser preso) e
escrevia peças do género teatro de revista. Eu fazia de ”Senhor Respeitável”, com fraque e tudo.

P.: Apesar do amor pelo teatro beckettiano, o seu parece um teatro muito diferente. Não parece procurar um registo banal para os seus diálogos, que até estão escritos em versos; mais uma vez, uma escrita que se coloca na fronteira entre prosa e poesia.


R.: Quando esbarro com um mestre, tomo o caminho inverso.


P.: Numa entrevista, falando de teatro, diz uma coisa muito parecida com o que já tinha dito a propósito do romance epistolar: escrever teatro também significa preencher um vazio, pois Portugal não tem uma tradição teatral por causa, primeiro, da Inquisição, e depois por causa da polícia política.


R.: Suponho que a minha mania de preencher vazios terá tido o seu papel, e teria começado a escrever mais cedo se o teatro em Portugal não
fosse o que se sabe.


P.: A crise do teatro em Portugal continua, mesmo sem polícia política.


R.: A falta de cultura e, logo, de público, torna inglório escrever para tão pouca gente. E os editores detestam publicar teatro, porque não vende.


P.: A sua escrita para o teatro parece também uma evolução
natural dos monólogos que se encontram nos seus romances.


R.: O teatro dá a ouvir esses monólogos que, ditos por bons actores, podem provocar um espanto ainda maior e dar um prazer acrescentado.


P.: É esse mesmo espanto do Beckett durante os ensaios a que assistiu. Por falar em ouvido, o seu teatro tem uma dramaturgia parecida com o teatro de ópera, não só pela atenção dada à musicalidade do texto (aliterações etc...) como também pela alternância de números ”fechados”: solos, duetos, etc...

R.: Seria uma pessoa feliz se um dia fizesse um libreto de ópera, porque a ópera acentua a dimensão musical da palavra que no texto está meio adormecida, esperando que a voz humana a torne mais audível.


P.: Última pergunta. Nesta entrevista falou-se muito de encontros reais (Vergílio Ferreira, Beckett, Manganelli...) e de influências literárias conscientes. Mas talvez existam autores ou obras (não só literários) que um escritor nunca utiliza conscientemente como modelos, mesmo assim admira profundamente como ”simples” fruidor.


R.: Há dois autores que eu leria ou veria toda a vida: Shakespeare e Bergman. Já sonhei com situações que julgava serem de um filme de Bergman. Ao acordar e descobrir que eram minhas, fiquei contente e escrevi-as.

Prossiga na entrevista:

Por que escreve?

Como escreve?

Onde escreve?

Jornalismo

Filosofia

Música
Crítica literária
Biografia