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Grandes Entrevistas

 

Ernest Hemingway 1 

                       

Entrevistado por                        Extraído de COWLEY, Malcolm (coord)

George Plimpton num Café de      Escritores em ação. R. Janeiro: Paz e

Madrid, em maio de 1954             Terra, 1968 (Trad.: Luiza H.M. Correia)   

 

Ernest Hemingway nasceu em Oak Park, lllinois, a 21 de julho de 1889, começando sua carreira de escritor como repórter do Kansas City Star, quando contava dezoito anos de idade. Em 1921, tornou-se correspondente itinerante do Toronto Star Weekly, sendo que em dezembro desse ano embarcou para a Europa, onde fez a cobertura da guerra greco-turca, bem como a conferência de paz subseqüente, realizada em Lausanne. Foi durante esse período que uma pasta contendo todos os poemas e histórias que ele havia escrito - com exceção de um conto, My old man, que estava sendo publicado em várias revistas - se perdeu num trem, obrigando-o a escrever tudo de novo.

 

O primeiro livro de Hemingway, Thee stories and ten poems, foi publicado em 1923, numa edição de trezentos exemplares. Veio, a seguir, em 1924, uma coletânea de contos, intitulada In our time. Publicou Torrents of spring, uma sátira, em 1926, lançando, nesse mesmo ano, o romance The sun also rises.  Outro volume de contos Men without women, foi publicado em outubro de 1927; essa coleção inseria The killers e The undefeated, duas narrativas considerados como os melhores exemplos do conto moderno. Foi a publicação de A farewell to arms, em 1929, que fez com que ele fosse reconhecido como um dos principais escritores de nossa época. Em 1938, os contos de Hemingway foram reunidos em volume sob o título de The First Forty-Nine.

 

Em 1940, Hemingway terminou For whom the bell tolls, seu mais longo romance, sobre a Guerra Civil espanhola. Dez anos mais tarde, publicou Across the river and into the trees e, em 1952, the Old' man and the seaEm 1954, Hemingway recebeu o Prêmio Nobel de literatura, honra que só foi concedida a outros seis escritores americanos. A citação relativa ao prêmio, dizia: "Por sua vigorosa mestria, criadora de escola na arte da narrativa moderna. . ."

 

Ernest Hemingway viveu, durante muitos anos, em Cuba. Seus últimos dias foram passados em Ketchum, Idaho, onde morreu a 2 de julho de 1961.

 

Hemingway: Você vai às corridas?

 

Entrevistador: Sim, de vez em quando.

 

Hemingway: Então lê os programas... Neles, você tem a verdadeira arte da ficção.

 

Ernest Hemingway escreve no quarto de dormir de sua casa, no subúrbio de Havana de San Francisco de Paula. Tem um escritório especialmente preparado para ele numa torre retângular situada no canto que fica a sudoeste da casa, mas prefere trabalhar no quarto, subindo à torre somente quando os "personagens" o impelem para lá.

 

O quarto de dormir acha-se no rés-do-chão e dá para o aposento principal da casa.  A porta existente entre ambos conserva-se escancarada devido a um pesado volume em que se acham catalogados e descritos Os motores de aviões existentes no mundo. O quarto de dormir é amplo, ensolarado; as janelas dão para o leste e para o sul, deixando que a luz do dia entre e ilumine as alvas paredes e um piso de ladrilhos de cor amarelada.

 


O aposento é dividido ao meio por duas estantes que dão até ao peito, e que se erguem em ângulos retos às paredes opostas.  Uma grande e baixa cama de casado domina uma das divisões, enormes chinelos e sandálias cuidadosamente arranjados ao lado dela, os dois criado-mudos, juntos à cabeceira, empilhados de livros. Na outra divisão, há uma pesada e maciça escrivaninha, com uma cadeira de cada lado, tendo sobre ela montes ordenados de papéis e lembretes. Mais além da mesa, na extremidade do aposento, há um armário recoberto por uma pele de leopardo. Nas outras paredes, alinham-se estantes pintadas de branco, apinhadas de livros até ao assoalho, sendo os mesmos ainda empilhados, no topo, em meio de jornais antigos, publicações sobre touradas e montes de cartas atadas por fitas de elástico.

 

É no topo de uma dessas estantes apinhadas de livros - a que se acha encostada à parede, junto à janela que dá para o leste, e distante três ou quatro pés de sua cama - que Hemingway tem sua "banca de trabalho" - cêrca de uns trinta e poucos centímetros de espaço, limitado, de um lado, por livros e, de outro, por pilhas de manuscritos e panfletos embrulhados em jornal.  Há apenas espaço, em cima da estante, para uma máquina de escrever, além de uma lousa, de cinco ou seis lápis, e um pedaço de minério de cobre que serve como pesa-papéis, quando sopra o vento pela janela de leste.

 

Seguindo um hábito que adquiriu desde o começo. Hemingway escreve de pé.  Metido num par de enormes sandálias, a pisar sobre uma pele já gasta de antílope, escreve à máquina, tendo à sua frente a lousa.

 

Quando Hemingway empreende algum plano, começa sempre a lápis, usando a lousa para apoiar o papel fino e lustroso. Conserva sempre um maço de papel em branco num prendedor, retirando as folhas, uma de cada vez, do clip de metal, onde se lê: "Estes devem ser pagos".  Coloca o papel de revés sobre a lousa, apóia-se a esta com o braço esquerdo, prende o papel com a mão, e enche as folhas com uma caligrafia que, através dos anos, se tornou maior, mais juvenil, com escassa pontuação, poucas letras maiúsculas e, às vezes, com os períodos assinalados apenas por um X. Terminada a página, ele a vira de frente para baixo e prende-a noutro clip, à direita da máquina de escrever.

 

Hemingway passa para a máquina, afastando a, lousa, somente quando o seu escrito está indo rápido e bem, ou quando a redação é, pelo menos para ele, simples: diálogo, por exemplo.

 

Anota seu progresso diário - "a fim de não tapear a mim mesmo" - num cartaz feito de um dos lados de uma grande caixa de papelão, encostado na parede sob o focinho da cabeça de uma gazela empalhada. Os números que se leêm no cartaz, mostrando a sua produção diária de palavras, diferem de 450, 575, 462, 1250 a 512, números esses referentes a trabalho extra a que Hemingway se entrega, de modo que não sinta culpado ao passar o dia seguinte pescando no Gulí Strean.

 
Homem de hábitos arraigados, Hemingway não usa a escrivaninha perfeitamente adequada existente no outro compartimento do aposento. Embora a mesma permita mais espaço para escrever, também aí há uma miscelânea de coisas,- montes de cartas, um leão de brinquedo, desses que se vendem em lugares noturnos da Broadway, uma sacola de serapilheira cheia de dentes de carnívoros, balas de armas de fogo, uma calçadeira de sapatos, figuras entalhadas de leão, rinoceronte, duas zêbras e um javali - esse conjunto de animais cuidadosamente arranjados sobre a superfície da mesa - e, certamente, livros: empilhados sobre a escrivaninha, ao lado das mesas, a abarrotar as estantes em ordena indiscriminadas: romances, contos, coleções de poesias, teatro, ensaios. Um olhar aos títulos mostra sua variedade. Na prateleira, diante dos joelhos de Hemingway, enquanto ele permanece de pé em sua "banca de trabalho", há o The Common Reader, de Virginia Woolf, The House Divided, de Ben Ames Williams, The Partisan Reader, The Republic, de Charles A. Beard, Napoleon's Invasion o Russia, de Tarle, How Young You Look, de Peggy Wood, Will Shakespeare and the dyer’s, de Alden Brook,  Africa hunting, de Baldwin, os Collected Poems, de T. S. Eliot, e dois livros sobre o malogro do General Custer na batalha do “Little Big Horn”.

 

O aposento, porém, apesar de toda a desordem que se sente à primeira vista, indica, quando se observa com mais atenção, um proprietário que é básicamente ordeiro, mas que não suporta lançar nada for - principalmente quando se tratar de algo de algum valor sentimental. O topo de uma das estantes contém um estranha miscelânea de lembranças: uma girafa feita de contas de madeira, uma tartaruguinha de ferro fun- dido, modelos minúsculos de uma locomotiva, dois jipes e uma gôndola veneziana,  um urso de brinquedo com uma chave nas costas, um macaco carregando um par de címbalos, uma guitarra em miniatura e um pequeno modelo, de lata, de um biplano da marinha americana (sem uma das rodas) pousado torto sobre uma esteira redonda de palha - uma dessas coleções de quinquilharias que acabam sendo guardadas no fundo do armárío de um rapazínho. É evidente que tais lembranças têm seu valor, assim como os três chifres de búfalo que Hemingway conserva em seu quarto de dormir tem um valor dependente não de seus tamanhos, mas porque, durante a sua caçada , coisas que não correram bem na mata acabaram por ter um final feliz.  "Alegra-me olhá-los", diz ele.

 

Hemingway pode admitir superstições dessa espécie, mas prefere não falar a respeito, temeroso de que qualquer valor que elas possam ter se dissipe. Sua atitude é mais ou menos a mesma, quanto ao que se refere a escrever. Muitas vezes, durante esta entrevista, acentuou ele que a arte de escrever não deveria ser violada por uma inquirição meticulosa - "que embora haja uma parte, na arte de escrever, que é sólida e que não causa prejuízo algum se se falar a respeito dela, a outra parte é frágil e, se a gente falar a respeito dela, sua estrutura se desmorona, e a gente nada obtém".

 

Por conseguinte, embora seja um “raconteur” maravilhoso, um homem dotado de rico humor e de um surpreendente fundo de conhecimento quanto a assuntos que o interessam, Hemingway acha difícil falar acerca de escrever - não porque ele tenha poucas idéias sobre o assunto, mas porque sente vivamente que tais idéias não devem ser expressas, que perguntas a respeito delas o assombram, para usar uma de suas expressões preferidas, levando-o até a um ponto em que ele quase não sabe expressar-se. Muitas das respostas desta entrevista,  ele preferiu elaborar em sua lousa.  O tom às vezes irritadiço das respostas é também de seu vivo sentimento de que escrever é uma ocupação íntima, solitária, sem necessidade de testemunhas, até que a obra final esteja terminada.

 


Essa dedicação à sua arte talvez possa sugerir uma personalidade em contraste com o Hemingway indisciplinado, despreocupado, a perambular pelo mundo, como é tido pela concepção popular.  O fato é que Hemingway, embora evidentemente desfrute a vida, entrega-se com dedicação equivalente, a tudo que faz - dotado de uma perspectiva essencialmente séria, tendo horror a tudo que é inexato, fraudulento, enganador, mal acabado.

 

Em parte alguma é mais evidente a dedicação à sua arte do que em seu quarto de dormir de ladrilhos amarelos - onde, nas primeiras horas da manhã, ele se levanta para postar-se de pé, em absoluta concentração, diante de sua lousa, movendo-se apenas para mudar de posição, apoiando-se ora num pé, ora noutro, a suar bastante quando o trabalho está saindo bem, excitado como um menino, desassossegado, infeliz quando o toque artístico momentaneamente se dissipa - escravo de uma disciplina que ele próprio se impõe e que prossegue até cerca do meio-dia, quando apanha uma bengala nodosa e deixa a casa à piscina, onde nada sua meia milha diária.

 

- São agradáveis essas horas em que o senhor está a escrever?

 

Muito.

 

- Poderia dizer algo a respeito?  Quando é que trabalha?  Segue um plano rigoroso?

 

Quando estou trabalhando num livro ou num conto, escrevo todas as manhãs, tão cedo quanto possível, logo que alvorece. Não há ninguém para perturbar-nos, é fresco ou frio, e a gente se entrega ao trabalho e vai se aquecendo à medida que escreve. Leio o que escrevo e, como sempre paro quando sei o que irá acontecer a seguir, parto do ponto em que parei.  Escrevo até um ponto em que ainda disponho de "sumo" e sei o que acontecerá em seguida; então paro e procuro viver até o dia seguinte, quando me entrego de novo à coisa. Começa-se a trabalhar, digamos, às seis horas da manhã, e talvez se prossiga até ao meio-dia, ou interrompa o trabalho antes. Quando se pára, fica-se corno que vazio; ao mesmo tempo, porém, jamais se está vazio, mas reabastecendo-se, como quando se faz amor com alguém a quem se ama.  Nada pode ferir-nos, nada pode acontecer, nada significa coisa alguma até o dia seguinte, quando se recomeça. A espera até o dia seguinte é que é difícil de suportar.

 

- Consegue o senhor afastar da mente quaisquer planos que tenha, quando está longe da máquina de escrever?

 

Certamente.  Mas requer disciplina fazê-lo, e tal disciplina é adquirida. Tem de ser.

 

- Costuma, acaso, reescrever alguma coisa, ao ler seu trabalho até o ponto em que o deixou na véspera?  Ou isso ocorre quando o trabalho já está terminado?

 


Sempre reescrevo, todo dia, até ao ponto em que parei. Quando o trabalho está terminado, a gente, naturalmente, torna a lê-lo. Tem-se outra oportunidade de corrigir e reescrever, quando outra pessoa datilografa o que se escreveu, e a gente o vê em letra de fôrma. A última oportunidade está nas provas tipográficas. A gente sente-se grato a essas diferentes oportunidades.

 

- Quantas vezes reescreve o que faz?

 

Isso depende. Reescrevi o final de Farewell to arms, a última página do livro, trinta vezes, antes de sentir-me satisfeito.

 

- Havia algum problema técnico?  Que foi que fez o senhor empacar?

 

Não conseguir as palavras exatas.

 

- É acaso a releitura que desperta de novo o "sumo"?

 

A releitura nos coloca no ponto em que a coisa tem de prosseguir, sabendo-se que é tão boa quanto mais longe se vá. Há sempre "sumo" em algum lugar.

 

- Mas há ocasiões em que a inspiração não surge?

 

Naturalmente.  Mas se a gente se deteve, sabendo o que aconteceria a seguir, pode-se continuar. Enquanto se pode começar, a coisa está sempre bem. O "sumo" surgirá.

 

- Thorton Wilder refere-se a expedientes mnemônicos que fazem com que o escritor prossiga em seu trabalho diário. Disse que o senhor lhe contou, certa vez, que fazia pontas em vinte lápis.

 

Não creio que eu jamais haja possuído vinte lápis de uma só vez.  Gastar-se sete lápis número 2 constitui um bom trabalho diário.

 

- Quais os lugares que lhe pareceram mais favoráveis para trabalhar? O hotel Ambos Mundos deve ter sido um deles, a julgar pelo número de livros  que o senhor lá escreveu. Ou o ambiente exerce pouca influência em seu trabalho?

 

O hotel Ambos Mundos, em Havana, era um bom lugar para se trabalhar. Esta Fínca é um lugar esplêndido - ou era.  Mas tenho trabalhado bem em toda parte. Quero dizer: tenho conseguido trabalhar tão bem quanto me é possível sob condições diversas. O telefone e as visitas são os destruidores do trabalho.

 

- É a estabilidade emocional necessária para se escrever bem?  O senhor me disse, certa vez, que só conseguia escrever bem quando estava apaixonado. Poderia expor isso um pouco mais?

 


Que pergunta!  Mas foi bom fazê-la.  Pode-se escrever em qualquer ocasião em que as pessoas nos deixam a sós e não nos interrompem. Ou, então, pode-se fazê-lo se se for implacável a respeito.  Mas a gente escreve melhor, por certo, quando está apaixonado. Se o senhor não se incomoda, eu preferiria não falar nisso.

 

- E que diz a respeito da segurança financeira? Acaso pode ela prejudicar a boa literatura?

 

Se ela chega cedo demais, e se se ama a vida tanto quanto o próprio trabalho, é necessário muita individualidade moral para se resistir às tentações. Uma vez que escrever se tornou nosso maior vício e nosso maior prazer, somente a morte poderá deter nosso trabalho. A segurança financeira, então, constitui uma grande ajuda, pois evita que nos preocupemos. A preocupação destrói a capacidade de escrever. A má saúde é um mal, na medida em que produz preocupação, pois ataca nosso subconsciente e destrói nossas reservas.

 

- Pode lembrar-se do momento exato em que resolveu tornar-se escritor.

 

Não; sempre desejei ser escritor.

 

- Philip Young, no livro que escreveu a seu respeito, insinua que o severo choque traumático causado pelo morteiro que o atingiu, em 1918, teve grande influência sobre o senhor como escritor.  Lembro-me de que, em Madri o senhor me falou brevemente acerca da tese por ele defendida, dando-lhe pouca importância, e acrescentando, mesmo que achava que o equipamento do artista não era uma característica adquirida, mas herdada, no sentido mendeliano.

 

Evidentemente, em Madri, naquele ano não se poderia dizer que minha mente estivesse muito equilibrada.  A única coisa a recomendá-la seria o fato de eu haver falado apenas brevemente acerca do livro de Mr. Young e da sua teoria do trauma literário. É possível que ambas as concussões de morteiro e a fratura da cabeça, naquele ano, me tenham tornado irresponsável quanto àquelas minhas declarações.  Lembro-me de haver-lhe dito que eu acreditava que imaginação pudesse ser o resultado de experiência racial herdada. Isto soa bem numa boa e jovial conversa sobre um concussão, mas penso que fica por aí mesmo. De modo que até a próxima libertação do trauma, deixemos a coisa de lado Concorda?  Mas agradeço-lhe por haver omitido os nomes de quaisquer parentes que eu pudesse ter mencionado. O divertido de uma conversa é explorar, mas nem tudo pode obter resposta ou deve ser escrito. Uma vez escrito, tem-se de manter o que foi dito. É possível que a gente o tenha dito para ver se acreditava ou não no que se disse. Quanto à questão que o senhor suscitou, os efeitos de ferimentos variam muitíssimo. Ferimentos simples, que não quebram osso, quase não contam. Às vezes, dão até confiança.  Ferimentos que causa danos extensos nos ossos e nos nervos não são bons para escritores – nem para ninguém.

 

- Qual consideraria o melhor adestramento intelectual para o futuro escritor?

 


Digamos que ele deveria enforcar-se, por haver descoberto que escrever bem é tremendamente difícil.  Depois, deveria ser esfaqueado sem piedade e obrigado pelo seu próprio ser a escrever tão bem quanto possível durante o resto da vida. Pelo menos teria, para começar, a história do enforcamento.

 

- E que diz daqueles que entraram para a carreira acadêmica?  Acha que o grande número de escritores que mantém posições como professores comprometeu suas carreiras literárias?

 

Isso depende do que o senhor chama comprometer. Trata-se, acaso, do uso de uma mulher que já se achava comprometida? Ou do compromisso do estadista? Ou do compromisso assumido com o dono da mercearia ou com o seu alfaiate, no sentido de que pagará um pouco mais, mas que saldará sua conta mais tarde?  Um escritor que consegue escrever e ensinar, teria de ser capaz de fazer ambas as coisas. Muitos escritores competentes têm provado que isso pode ser feito. Eu não poderia fazê-lo, bem o sei, e admiro aqueles que podem. Eu acharia, no entanto, que a vida acadêmica poderia colocar um ponto final na experiência exterior, o que talvez pudesse limitar o conhecimento do mundo. O conhecimento, porém, exige mais responsabilidade de um escritor e torna o escrever algo de valor permanente e constitui um trabalho de tempo integral, embora apenas algumas poucas horas do dia sejam gastas no trabalho efetivo de escrever. Um escritor pode ser comparado a um poço. O importante é ter-se boa água no poço, e é melhor tirar-se dele uma quantidade regular de água do que bombear o poço até secar e esperar que ele torne a encher.  Percebo que estou me afastando da pergunta, mas a pergunta não era muito interessante.

 

- O senhor sugeriria trabalho de jornal para o jovem escritor?  Que utilidade teve seu adestramento no Kansas Cíty Star?

 

No Star era-se obrigado a aprender a escrever uma sentença declarativa simples.  Isso é útil a toda a gente. O trabalho de jornal não prejudica um jovem escritor, e poderá mesmo ajudá-lo, se ele sair a tempo. Esta é uma das frases feitas mais empoeiradas que existem, e eu peço desculpas por ela. Mas, quando o senhor faz velhas e gastas perguntas, é justo que receba velhas e gastas respostas.

 

- O senhor escreveu, certa vez, na Transatlantic Revíew, que a única razão para se fazer jornalismo é ser bem pago.  Disse: "E quando a gente destrói, ao escrevê-las , as coisas valiosas que possui, deseja ser bem pago por elas." O senhor encara o escrever como uma forma de auto-destruição?

 

Não me recordo de haver jamais escrito isso. Mas me parece tolo e violento demais que eu o haja dito, a fim de não morder a isca, e fazer uma afirmação sensata. Não penso, positivamente, que escrever seja uma forma de auto-destruição, embora o jornalismo, após ter-se chegado a certo ponto, possa constituir uma auto-destruição diária para um escritor criador sério.

 

- O Senhor acha que o estímulo intelectual que advém da companhia de outros escritores seja útil a um autor?

 

Certamente.


 

- Na Paris da década de vinte, acaso teve em companhia de alguma sensação de "sentimento de grupo", em companhia de outros escritores e artistas?

 

Não. Não havia sentimento de grupo. Tínhamos respeito uns pelos outros. Eu respeitava uma porção de pintores, alguns deles de minha própria idade, outros mais velhos: Gris, Picasso, Braque, Monet, que então ainda viviam, bem como a uns poucos escritores, como, por exemplo, Joyce, Ezra e a boa Stein...

 

- Quando está escrevendo, jamais se sente influenciado pelo que está lendo no momento?

 

Não, desde que Joyce estava escrevendo Ulysses. A influência dele não foi direta,  Mas, naquela época, quando as palavras que conhecíamos nos estavam interditas, e tínhamos de lutar para encontrar uma única palavra, a influência da sua obra foi o que mudou tudo, fazendo com que nos fosse possível romper com certas restrições.

 

- Poder-se-ia aprender, com outros escritores, algo a respeito de escrever?  Ainda ontem, por exemplo, o senhor me dizia que Joyce não suportava falar a respeito de escrever.

 

Em companhia de pessoas de nossa própria profissão, a gente fala, em geral, de livros de outros escritores. Quanto melhor o escritor, tanto menos falará a respeito do que ele próprio está escrevendo. Joyce era um escritor estupendo, e só explicava a seus seguidores o que ele estava fazendo. Quanto aos outros escritores, a quem ele respeitava, supunha que os mesmos fossem capazes de saber, ao ler trabalhos, o que ele estava realizando.

 

- Nestes últimos anos, o senhor parece ter evitado a companhia de escritores.  Por quê?

 

Isso é mais complicado. Quanto mais longe se vai no que se escreve, tanto mais solitário se está. A maior parte de nossos melhores e mais velhos amigos morre.  Outros se afastam. A gente não os encontra a não ser raramente, mas se tem quase que o mesmo contato, como se estivesse em companhia deles no café, nos velhos tempos.  A gente troca cartas jocosas, às vezes jovialmente obscenas e irresponsáveis, e isso é tão bom quanto conversar. Mas, cada vez mais, a gente está mais só, pois que é assim que se deve trabalhar, e o tempo de trabalhar é cada vez mais curto e, se a gente o desperdiça, sente que cometeu um pecado para o qual não há perdão.

 

- Qual a influência de algumas outras pessoas - suas contemporâneas - em sua obra?  Qual foi a contribuição de Gertrude Stein, se é que houve? Ou de Ezra Pound?  Ou de Max Perkins?

 


Sinto muito, mas não sou bom para fazer tais necrológios. Existem pessoas encarregadas de fazer tais investigações literárias e não literárias. Miss Stein  escreveu com certa prolixidade e considerável inexatidão a respeito de sua influência sobre a minha obra. Foi-lhe necessário fazer isso, depois que ela aprendeu a escrever diálogos num livro intitulado The sun also rises. Eu gostava muito dela e pareceu-me esplêndido que houvesse aprendido a escrever conversação. Não era coisa nova para mim aprender de todos que eu pudesse, vivos ou mortos, e eu não tinha idéia de que isso afetasse Gertrude de modo tão violento. Ela já escrevia muito bem de outras maneiras. Quanto a Ezra, era extremamente inteligente quanto aos assuntos que realmente sabia. Acaso esta espécie de conversa o entedia?  Esta bisbilhotice literária retrospectiva - este lavar de roupa suja depois de decorridos trinta e cinco anos - causa-me náusea. Seria diferente, se se procurasse dizer toda a verdade. Isso teria algum valor. Aqui, é mais simples e melhor agradecer a Gertrude Stein por tudo que aprendi com ela, reafirmar minha lealdade a Ezra Pound como a um grande poeta e a um amigo leal, e dizer que me interessava tanto por Max Perkins, que jamais consegui aceitar o fato de que ele morreu.  Ele nunca me pediu que modificasse coisa alguma por mim escrita, exceto eliminar certas palavras que não eram então publicáveis. Os travessões eram mantidos, e quem quer que conhecesse tais palavras saberia quais eram elas. Para mim, ele não era um redator-chefe. Era um amigo sensato e um companheiro maravilhoso.  Agradavam-me a maneira como ele usava o chapéu e o modo estranho como os seus lábios se moviam.

 

- Em sua opinião quais foram seus antecessores literários - aquêles de quem mais aprendeu?

 

Mark Twain, Flaubert, Stendhal, Bach, Turguenev, Tolstoi, Dostoievski, Checov, Andrew Marvell, John Donne, Maupassant, o bom Kipling, Thoreau, o Capitão Marryat, Shakespeare, Mozart, Quevedo, Dante, Virgílio, Tintoretto, Hieronymus Bosch, Brueghel, Patinir, San Juan de la Cruz, Góngora... Levaria um dia inteiro para lembrar-me de todos. Pareceria, ademais, que eu estava procurando demonstrar uma erudição que não possuo, ao invés de estar apenas procurando lembrar todos aqueles que exerceram influência sobre minha vida e minha obra. Esta não é uma pergunta velha e enfadonha. É uma pergunta muito boa, mas solene, e exige um exame de consciência. Inclui pintores, eu comecei a fazê-lo, porque aprendi tanto de pintores como de escritores. Pergunta-me como é isto? Levaria também um dia todo para explicar. Eu diria que se aprende também de compositores, e que o estudo de harmonia e contraponto seria óbvio.

 

- O senhor já tocou algum instrumento musical?

 

Eu costumava tocar violoncelo. Minha mãe me fez ficar um ano inteiro ausente da escola, a fim de estudar música e contraponto. Ela achava que eu tinha habilidade, mas faltava-me absolutamente talento para tal.  Tocávamos música de câmara; alguém vinha tocar violino; minha irmã tocava viola, e minha mãe piano. Aquele violoncelo... eu o tocava pior que qualquer outra coisa existente no mundo. Claro que, naquele ano, eu também estivera fazendo outras coisas.

 

- O senhor releu os autores de sua lista? Mark Twain, por exemplo?

 


Tem-se de esperar dois ou três anos para reler Twain. A gente lembra-se demasiado bem.  Lia um pouco de Shakespeare todos os anos - sempre Lear.  Alegra-nos fazê-lo.

 

- A leitura é, pois, uma ocupação e um prazer constantes?

 

Vivo sempre a ler livros - tantos quantos houver. Faço um estoque deles, para que esteja sempre bem suprido.

 

- Já leu, alguma vez, manuscritos?

 

A gente pode meter-se em dificuldades fazendo isso, a menos que se conheça o autor pessoalmente. Há alguns anos, fui processado por plágio por um homem que afirmava que Por Quem os Sinos Dobram tinha sido tirado de um manuscrito inédito que ele havia escrito. Ele lera o tal manuscrito em alguma reunião, em Hollywood.  Eu estava lá, dizia ele; havia, pelo menos, um sujeito chamado "Ernie" que ouvira a leitura - e isso bastou para que ele me movesse uma ação de um milhão de dólares. Moveu, na mesma ocasião, uma ação contra os produtores das películas Northwest Mounted Police e Cisco Kid, dizendo que seus scripts tinham sido furtados daquele mesmo manuscrito inédito. Fornos para o tribunal e, claro, ganhamos a causa. No fim, verificou-se que o sujeito não tinha com que pagar.

 

- Bem, acaso poderíamos voltar àquela sua lista e escolher um dos pintores - Hieronyrnus Bosch, por exemplo? A qualidade de pesadelo simbólico da obra dele parece por demais distante da sua.

 

Tenho pesadelos e sei a respeito dos pesadelos que outras pessoas têm. Mas não é necessário que a gente os escreva. Qualquer coisa que se possa omitir, mas que se saiba, ainda assim se revela no que se escreve. Quando um escritor omite coisas que não sabe, elas se mostram como buracos em seus escritos.

 

- Isto significa que um conhecimento estreito das obras das pessoas citadas em sua lista ajuda a encher o "poço“ a que o senhor se referiu ainda há pouco? Ou era, conscientemente, uma ajuda quanto ao desenvolvimento da técnica de escrever?

 

Era uma parte de se aprender a ver, a ouvir, a pensar, a sentir e a não sentir, e a escrever.  O poço está onde está nosso "sumo". Ninguém sabe do que ele é feito, e muito menos a gente. O que se sabe é que a gente o possui, ou que se tem de esperar que ele volte.

 

- Admite, acaso, que haja simbolismo em seus romances?

 

Suponho que haja símbolos, já que os críticos vivem a encontrá-los. Se o senhor não se importa, não me agrada falar nem ser indagado a respeito deles. Já é bastante duro escrever-se contos, sem que nos peçam para explicá-los. Ademais, isso priva os outros de explicar o trabalho alheio.  Se cinco ou seis ou mais elucidadores conseguem prosseguir em sua tarefa, por que deveria eu interferir no trabalho deles?  Leia o que quer que eu escreva, pelo prazer de o ler. Qualquer outra coisa que encontrar, constituirá a medida daquilo que o senhor levou para a leitura.

 


- Continuando apenas com mais uma pergunta nesse mesmo sentido: um dos conselheiros editoriais cogitou acerca de um paralelo que ele julgou encontrar, em The sun also rises, entre a dramatis personae da arena e os personagens do próprio romance. Assinala ele que a primeira frase do livro nos diz que Robert Cohn é pugilista; mais adiante, durante a desencajonada, o touro é descrito como a estando a usar os chifres como um pugilista, empregando hooks e jabbings. E assim como o touro é atraído e acalmado pela presença de um novilho castrado, Robert Cohn se volta para Jake, que é castrado precisamente como o novilho. EIe encara Mike como sendo o picador, atraindo repetidamente a Cohn. A tese do redator-chefe continua, mas ele queria saber se não seria sua intenção consciente informar o romance com a estrutura trágica do ritual das touradas.

 

Isso até soa como se o redator-chefe estivesse um pouco maluco. Quando foi que alguém disse que Jake "era castrado precisamente como um novilho castrado"?  Na verdade, ele fora ferido de uma maneira inteiramente diferente, e seus testículos achavam-se intactos e não avariados. Ele era, pois, capaz de experimentar todos os sentimentos normais de um homem, mas incapaz de realizá-los. A distinção importante é que seu ferimento era físico e não psicológico, e que ele não era castrado.

 

- Estas perguntas, referentes a artesanato, são, na verdade, incomodas.

 

Uma pergunta razoável não é nem uma delícia, nem cacête. Eu ainda creio, todavia, que é muito mau para um escritor falar a respeito do que escreve. Ele escreve para ser lido com os olhos, e nenhuma explicação ou disser­tação deveriam ser necessárias.  Pode-se estar certo de que há muito mais coisas lá do que o que será lido em qualquer primeira leitura, e o ter feito isso é coisa que não compete ao leitor explicar, nem tampouco organizar excursões ciceroniadas pela região mais difícil de sua obra.

 

- Com relação a isso, lembro-me de que o senhor também advertiu que é perigoso para um escritor falar a respeito do trabalho que tem em andamento, o qual poderá, desse modo, "esgotar-se", por assim dizer. Por que deveria ser assim?  Só faço esta pergunta porque muitos escritores - Mark Twain, Wilde, Thurber, Steffens, para citar apenas os que, no momento, me ocorrem - parecem ter aprimorado o seu material experimentando-o em ouvintes.

 

Não posso acreditar que Mark Twain haja jamais "experimentado" Huckleberry Finn em ouvintes. Se o tivesse feito, eles provavelmente o fariam excluir coisas boas e acrescentar coisas más. Quanto a Wilde, pessoas que o conheciam afirmavam que ele era melhor conversador que escritor. Tanto os seus escritos como a sua conversação eram, às vezes, difíceis de se acreditar, e eu ouvi muitas histórias se modificarem, à medida que ele se tornava mais velho. Se Thurber consegue falar tão bem quanto escreve, deve ser um dos maiores e menos enfadonhos conversadores. O homem que melhor fala a respeito de sua própria profissão - e que o faz da maneira mais agradável e com língua mais viperina - é Juan Belmonte, o toureiro.

 


- Poderia dizer o quanto de esforço premeditado foi necessário para o desenvolvimento de seu estilo tão característico?

 

Essa é uma pergunta que requer uma resposta longa e exaustiva, e, se a gente passasse dois dias a responder, ela seria tão sem espontaneidade, que não se poderia escrevê-la.  Eu talvez pudesse dizer que aquilo que os amadores chamam estilo é, em geral, apenas a inevitável dificuldade de se tentar fazer pela primeira vez o que até então ainda não tinha sido feito. Quase nenhum novo clássico se assemelha a outro clássico anterior.  A principio, as pessoas conseguem ver apenas a falta de jeito. Depois, esta se torna menos perceptível. Quando tais autores se mostram demasiado desajeitados, as pessoas pensam que essa falta de naturalidade constitui o "estilo",e muitas delas o copiam.  Isso é lamentável.

 

- O senhor certa vez escreveu que as circunstâncias simples em que vários trabalhos de ficção eram escritos podiam ser instrutivas.  Poder-se-ia aplicar isso a The killers (o senhor disse que o havia escrito, bem como Ten Indians e Today is Friday, em um dia) e, talvez, ao seu primeiro romance, The Sun Also Ríses?

 

Vejamos. Comecei The sun also rises em Valência, no dia de meu aniversário, vinte e um de julho. Hadley, minha espôsa, e eu, tínhamos ido cedo para Valência, a fim de obter bons ingressos para a Feria que começava a 24 de julho. Todos os da minha idade tinham escrito um romance, e eu tinha ainda dificuldade para escrever um parágrafo. Comecei, pois, o livro no dia do meu aniversário, escrevi durante toda a Feria na cama, pela manhã; depois, voltamos para Madri e o escrevi lá. Não havia Feria lá, de modo que tínhamos um quarto com uma mesa, e eu escrevia com grande luxo, bem como numa cervejaria que ficava atrás da esquina e que era fresca, na Pasaje Alvarez.  Finalmente, fazia muito calor para se escrever, e fomos para Hendaye. Havia um hotel pequeno e barato, situado numa grande e longa praia, e eu escrevia bem lá; depois, fomos para Paris, e eu terminei o primeiro rascunho no apartamento que ficava sobre a serraria, no número 113 da rue Notre-Dame-des-Champs, seis dias após a data em que o começara. Mostrei o primeiro rascunho a Nathan Asch, o romancista, que tinha então um sotaque bastante forte, e que me disse: "Que é que me quer dizer, ao informar que escreveu um romance?  Um romance, hem?  Hum, você está montado num büch de viagem." Não fiquei muito desencorajado com as palavras de Nathan e reescrevi o livro, prosseguindo a viagem (essa era a parte que tratava da viagem de pescaria a Pamplona), escrevendo no Schruns, em Vorarlberg, no Hotel Taube.

 

 As histórias a que o senhor se refere, eu as escrevi um dia em Madri, a 16 de maio, quando nevava sobre as praças de touros de San Isidro. Primeiro escrevi The killers, que eu tentara escrever antes e fracassara. Depois, após o almoço, meti-me na cama para aquecer-me e escrevi Today is friday.  Eu tinha tanto "sumo", que julguei talvez fosse fícar louco, e tinha cerca de seis outras histórias para escrever. De modo que me vesti e dirigi-me a Fornos, o velho café de toureiros, tomei café e, depois, voltei e escrevi Ten indians.  Isso fez com que me sentisse muito triste, e bebi pouco de conhaque e fui dormir. Eu esquecera de comer, e um dos garçons trouxe-me um pouco de bacalhau, um pequeno bife com batatas fritas e uma garrafa de Valdepeñas.

 


A mulher que dirigia a pensão estava sempre preocupada por eu não comer bastante, e mandara o garçom ao meu quarto. Lembro-me de ter-me sentado na cama e comido, ao mesmo tempo em que bebia o Valdepeñas. O garçom disse-me que me traria outra garrafa. Disse-me que a Senhora queria saber se eu iria escrever a noite toda. Respondí que não, que achava que ia sair um pouco. Por que não tenta escrever um pouquinho mais?, indagou o garçom. Eu me propus escrever apenas um conto, respondi. Tolice, volveu êle. O senhor poderia escrever seis histórias. Tentarei amanhã, repliquei. Tente esta noite, disse êle. Por que razão acha que a velha mandou trazer-lhe a comida?

 

Estou cansado, disse-lhe eu. Tolice, respondeu-me. (A palavra não era "tolice".) O senhor se cansa após três pequenas e miseráveis histórias. Traduza-me uma delas. Deixe-me a sós.  Como é que posso escrever, se você não me deixa a sós?  Sentei-me, pois, na cama, bebi o Valdepeñas e pensei que diabo de escritor eu era se a primeira história fosse tão boa como eu esperara.

 

- Como se completa em sua mente a concepção de uma narrativa?  Acaso o tema, ou o enredo, ou um personagem se modifica à medida que o senhor prossegue?

 

As vêzes, se sabe a história. Outras, a gente constrói à medida que a vai escrevendo, e não tem idéia de como sairá. Tudo se modifica, enquanto se prossegue. Isso é que produz o movimento que produz a narrativa. Às vezes o movimento é tão lento que ela parece não estar se movendo. Mas há sempre modificação e sempre movimento.

 

- Acontece o mesmo com o romance, ou o senhor elabora todo o plano antes de começar e se limita rigorosamente a êle?

 

Por quem os sinos dobram foi um problema que eu levava avante cada dia. Em princípio, eu sabia o que iria acontecer. Mas inventava, em cada dia de trabalho inventava o que acontecia.

 

- The green-hills, of Africa, To have and have not e Across the River and-into the trees, começaram todos como contos e converteram-se, depois, em novelas?  No caso afirmativo, são acaso ambas as formas tão semelhante que o escritor pode passar de uma para a outra sem reelaborar por completo a maneira da narrativa?

 

Não, isso não é verdade, The green hills of Africa não é um romance, mas foi escrito numa tentativa de escrever um livro absolutamente verdadeiro, para ver se a configuração de um país e o plano de um mês de ação podiam, se verdadeiramente apresentados, competir com um trabalho de imaginação. Após tê-lo escrito, escrevi duas história curtas, The snows of Kilimanjaro e The short happy life of Francis Macomber. Estas eram histórias que criei tendo por base o conhecimento e a experiência adquiridos numa mesma e longa viagem de caça, durante um mês, da qual eu procurara escrever uma narrativa verdadeira, em The Green Hills, To have and have Not e Across the river and into the tree foram começados, ambos, como contos.

 


- Acha fácil passar de um plano literário para outro, ou prossegue até terminar o que começa?

 

O fato de eu estar interrompendo um trabalho sérío para responder a estas perguntas prova que sou tão estúpido que deveria ser seriamente castigado. Eu o serei. Não se preocupe.

 

- O senhor se julga numa competição outros escritores?

 

Jamais. Eu costumava tentar escrever melhor que certos escritores já falecidos, de cujo valor eu estava certo. Há já muito tempo venho procurando escrever o melhor que posso. Às vezes, tenho sorte e escrevo melhor do que posso.

 

- Julga que o vigor de um escritor diminui à medida que ele se torna mais velho?  Em The green hills of Africa o senhor diz que os escritores americanos, em certa idade, se convertem em Old mother hubbards.

 

Nada sei a esse respeito. As pessoas que sabem o que estão fazendo deveriam durar tanto quanto duram suas cabeças.  Nesse livro a que se refere, verá, se o examinar bem, que eu estava falando acerca de literatura americana com um personagem austríaco destituído de humor, que estava me obrigando a falar quando eu queria fazer outra coisa. Escrevi uma descrição exata da conversação. Não com o intuito de fazer pronunciamentos definitivos. Uns dez por cento dos pronunciamentos são bastante bons.

 

- Não falamos acerca de personagens. Os personagens de sua obra são tirados, sem exceção, da vida real?

 

Claro que não. Alguns são tirados da vida real. Na maioria das vezes, a gente cria personagens tendo por base conhecimento, compreensão e experiência que se tem das pessoas.

 

- Poderia dizer algo sobre o processo de converter uma pessoa da vida real em personagem de ficção?

 

Se eu explicasse de que modo isso é, às vezes, feito, minha resposta constituiria um manual para advogados de acusação.

 

- O senhor faz distinção - como é o caso de E. M. Forster - entre personagens "chatos" e "redondos"?

 

Se se descreve alguém, esse alguém é chato, plano, como uma fotografia o é, e, segundo meu ponto-de-vista, um fracasso.  Mas se a gente o faz surgir baseado no que se sabe a seu respeito, deveria haver todas as dimensões.

 

- Qual dos seus personagens o senhor encara com particular afeição?

 


Isso daria uma lista demasiado longa.

 

- Então o senhor aprecia a leitura de seus próprios livros - sem sentir que há mudanças que gostaria de fazer?

 

Leio-os, às vezes, para animar-me, quando me é difícil escrever, e então me lembro de que é sempre difícil, e de como isso foi, às vezes, quase impossível.

 

- De que modo dá nome aos seus personagens?

 

Da melhor maneira que posso.

 

- E acaso os títulos lhe ocorrem enquanto está escrevendo a história?

 

Não.  Faço uma lista de títulos depois de haver terminado o conto ou o livro - lista essa que chega, às vezes, a uns cem títulos.  Depois, ponho-me a eliminá-los, às vezes todos eles.

 

- E faz isso com um conto cujo título é fornecido pelo próprio texto - como, por exemplo, "Hills like whíte elephants"?

 

Sim. O título vem depois. Conheci uma moça em Prunier, onde eu tinha ido comer ostras antes do almoço. Eu sabia que ela ia ter um aborto. Acerquei-me dela e conversamos, não a respeito disso, mas, de volta para casa, pensei na história, deixei o almoço de lado e passei a tarde a escrevê-la.

 

- De modo que, quando não está a escrever, o senhor se mantém sempre como observador, em busca de algo que lhe possa ser útil.

 

Certamente. Se um escritor deixa de observar, está liquidado. Mas não que ele precise observar conscientemente, nem pensar de que modo aquilo lhe será útil. Talvez isso fosse verdadeiro no começo. Mais tarde, porém, tudo o que ele vê entra para a grande reserva de coisas que sabe ou viu. Se há qualquer vantagem em sabê-lo, eu sempre procuro escrever baseado no princípio do iceberg. Sempre existe sete oitavos dele sob a água, para cada parte que aparece. O que quer que se saiba, pode ser eliminado, e isto semente robustece o nosso iceberg. É a parte que não aparece. Se um escritor omite algo porque não conhece, então aparece um buraco na história.  The old man and the sea poderia ter tido mil páginas a mais, e conter nele todos os indivíduos da aldeia e todos os modos pelos quais eles ganhavam a vida, tinham nascido, sido criados, tido filhos, etc. Isso é feito estupendamente bem por outros escritores.  Ao escrever, somos limitados por aquilo que já foi feito satisfatoriamente. Aprendi a fazer algo diferente.  Primeiro, tentei eliminar tudo o que era desnecessário para transmitir a experiência ao leitor, de modo que, depois que ele leu algo, esse algo se tornará parte de sua experiência, parecendo-lhe haver verdadeiramente ocorrido. Isso é muito difícil de fazer e exigiu, de minha parte, trabalho árduo.

 


De qualquer modo, deixando-se de lado como isso é feito, tive, dessa vez, uma sorte incrível, e pude transmitir completamente a experiência, de uma forma que ninguém antes jamais transmitira. A sorte foi que consegui um homem e um rapaz bons, e os escritores, ultimamente, têm esquecido que ainda existem tais coisas. Ademais, o oceano é tão digno de se escrever a respeito como o é um homem. De modo que também aí tive sorte. Tenho visto a macaíra acasalar, e entendo do assunto. Assim, exclui isso. Já vi um cardume de mais de cinqüenta cachalotes naquela mesma extensão de água, sendo que, certa vez, arpoei um deles de quase sessenta pés de comprimento e o perdi. Assim, exclui isso. Deixei de fora todas as histórias que sei da aldeia de pescadores. Mas o conhecimento é o que constitui a parte submersa do iceberg.

 

- Archibald MacLeish referiu-se a um método que o senhor adotou para transmitir experiência ao leitor, o qual foi aperfeiçoado durante a época em que o senhor escrevia sobre jogos de beisebol para o Kansas City Star.  Consistia simplesmente em que a experiência é transmitida através de pequenos detalhes, intimamente guardados, que têm como resultado indicar o todo, tornando o leitor cônscio daquilo que ele só subconscientemente percebera...

 

Essa história é apócrifa. Eu jamais escrevi sobre beisebol para o Star. O que Archie estava tentando recordar era a maneira pela qual eu procurava aprender em Chicago, ali por 1920, buscando as coisas inéditas que despertam emoções, como, por exemplo, a maneira pela qual um outfielder lançou sua luva sem olhar onde ela caiu, o ranger do breu na lona embaixo das sapatilhas de sola chata de um pugilista, a cor cinzenta da pele de Jack Blackburn quando ele acabava um round, bem como outras coisas que eu notava, como um pintor fazendo croquis. Via-se a estranha cor da pele de Blackburn, as cicatrizes de navalhadas, e a maneira pela qual ele liquidava um homem sem que a gente o percebesse.

 

- O senhor já descreveu algum tipo de situação de que não tinha experiência pessoal?

 

Eis aí uma pergunta estranha. Por conhecimento pessoal, o senhor se refere a conhecimento carnal?  Nesse caso, a resposta é afirmativa.  Um escritor, se é bom, não descreve. Inventa ou representa, baseado em conhecimento pessoal ou impessoal e,  não raro, parece possuir conhecimentos não explicados que bem podem ter vindo de experiências raciais ou familiares esquecidas. Quem ensina o pombo caseiro a voar como faz? Onde um touro de arena consegue sua bravura, ou um cão de caça o seu faro?  Esta é uma elaboração ou uma condensação daquela conversa que tivemos em Madri naquela época em que não se podia confiar muito em minha cabeça.

 

- Até que ponto o senhor deve estar alheio uma experiência de poder escrevê-la em termos de ficção?

 


Isso depende da experiência.  Uma parte da gente a vê com completo alheamento desde o começo. Outra parte é muito envolvida nela. Creio que não há regra alguma quanto ao momento em que se deve escrever a respeito dela. Isso depende de como o indivíduo se encontre ajustado de seus poderes de recuperação. Certamente, é útil a um escritor bem adestrado estar a bordo de um avião que caia e se incendeie. Ele aprende muitas coisas importantes de modo muito rápido. Se isso lhe será útil, está condicionado à sua sobrevivência. Sobrevivência com honra, essa palavra fora de moda e extremamente importante, é tão importante como sempre, assim como é importantíssima para um escritor.  Aqueles que perecem são sempre mais bem-amados, já que ninguém precisa vê-los em sua longa, deprimida, inexorável luta, sem trégua dada nem recebida, a que se entregam para fazer alguma coisa, ao acreditarem que podem fazer algo, antes de morrer.  Aqueles que morrem, ou deixam logo e facilmente a cena, e que o fazem movidos por bons motivos, são preferidos, por serem compreensivos e humanos.  O fracasso e a covardia bem disfarçados são coisas mais humanas e mais amadas.

 

- Acaso posso perguntar-lhe até que ponto o senhor acha que o escritor deveria interessar-se pelos problemas sociopolíticos de sua época?

 

Todo o mundo tem sua própria consciência, e não deveria haver normas acerca de como uma consciência teria de funcionar. Tudo de que se pode estar certo, num escritor interessado pela política, é que se sua obra perdurar, se tem de passar por alto a política, ao lê-la. Muitos dos chamados escritores politicamente engajados, mudam com freqüência sua política. Isso é muito excitante para eles e para os seus comentários político-literários. Às vezes, eles têm até mesmo de reescrever seus pontos-de-vista políticos ... e fazê-lo depressa. Talvez isso possa ser respeitado como uma forma da busca da felicidade.

 

- Acaso a influência de Ezra Pound sobre o segregacionista Kasper exerceu algum efeito sobre a sua crença de que o poeta deveria sair do St. Elizabeth's Hospital? (1)

 

Não. De modo algum. Creio que Ezra deveria ser posto em liberdade e que se lhe permitisse escrever poesia na ltália, sob um compromisso, por parte dele, de abster-se de qualquer espécie de política. Alegrar-me-ia ver Kasper prêso o mais cedo possível.  Os grandes poetas não são, necessariamente, guias de meninas, chefes de escoteiros, nem constituem qualquer influência esplendida quanto à juventude. Para citar apenas poucos: Verlaine, Rimbaud, Shelley, Byron, Baudelaire, Proust, Gide não deveriam ser presos a fim de impedir que fossem imitados em seu modo de pensar, em suas maneiras ou em sua moral, pelos Kaspers locais. Tenho a certeza de que será necessária uma nota ao fím da página, quanto a êste parágrafo, dentro de dez anos, para explicar quem era Kasper.

 

- O senhor diria, alguma vez, que existe qualquer intenção didática em sua obra?

 

Didático é uma palavra de que se tem abusado e que se tem estragado. Death in the afternoon é um livro instrutivo.

 

- Dizem que um escritor somente trata de uma ou duas idéias em toda a sua obra.  O senhor diria que sua obra reflete apenas uma ou duas idéias?

 


Quem disse tal coisa? Isto soa demasiado simples. É possível que quem o disse somente tívesse uma ou duas ideias.

 

- Bem, talvez fosse melhor dizê-lo de outra maneira: Graham Greene disse que uma paixão dominante dá a uma estante de romances a unidade de um sistema. O senhor próprio afirmou, creio eu, que uma grande obra provém de um sentimento de injustiça. Acha importante que um romancista seja dominado dessa maneira - por uma dessas paixões irresistíveis?

 

Mr. Greene tem uma facilidade, que eu não possuo, para fazer declarações. Ser-me-ia impossível fazer generalizações acerca de uma estante de romances, um bando de perdizes ou um grasnar de gansos. Todavia, tentarei urna generalização. Um escritor destituído de sentimento de justiça ou de injustiça sair-se-ia melhor editando o Year Book de uma escola para crianças excepcionais do que escrevendo romances. Outra generalização. Como sabe, elas não são tão difíceis, quando suficientemente óbvias.  O dom mais essencial para um bom escritor é ter embutido em si próprio um detector de embustes sólido, à prova de choque. Esse é o radar do escritor, e todos os grandes escritores o possuíam.

 

- Finalmente, uma pergunta fundamental: isto é, como escritor criativo, qual julga ser o senhor a função de sua arte? Por que uma representação do fato, ao invés do próprio fato?

 

Por que sentir-se intrigado por isso? Das coisas que aconteceram, e das coisas tal como existem, e de tôdas as coisas que se sabem e de tôdas aquelas que não se sabem, a gente faz algo, através da nossa invenção, que não é uma representação, mas sim algo inteiramente novo e mais verdadeiro do que qualquer coisa verdadeira e viva, e a gente lhe dá vida, e a faz bastante bem, e lhe dá imortalidade. Eis aí por que se escreve, e não por qualquer outra razão que se saiba.  Mas que dizer de todas as razões que ninguém conhece?

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Nota: (1) Em 1958, uma Corte Federal, em Washington, D. C., anulou todas as acusações contra Pound, abrindo o caminho para a sua libertação do St. Elizabeth's Hospital.

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