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Grandes entrevistas

Mary McCarthy


Entrevista conduzida por Elizabeth Niebuhr, publicada originalmente na Paris Review, nº 27, de 1962 e republicada no livro COWLEY, Malcolm. Escritores em ação: as famosas entrevistas à "Paris Review". Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.

Apresentação:

     A entrevista foi realizada na sala de estar do apartamento em Paria, onde Miss McCarthy estava passando o inverno de 1961. Era uma sala agradável e ensolarada, não muito grande, com compridas janelas voltadas para o sul e através das quais podiam ser vistos os novos edifícios que estavam sendo construídos na Avenida Montaigne. Uma mesa que, ao mesmo tempo, podia servir para refeições e escrever, estava colocada num canto, justamente onde terminava a sala: em cima dela, um quebra-luz, alguns livros e papéis e uma máquina de escrever bastante usada. Na outra extremidade da sala, diversas poltronas e um sofá baixo onde Miss McCarthy sentou-se enquanto a entrevista foi gravada. Naquela prematura tarde de primavera (estávamos no dia 16 de março), as janelas estavam completamente abertas, deixando entrar a poeira quente e o barulho das construções próximas. As azáleas e os cravos floresciam no balcão, e as rosas decoravam uma pequena escrivaninha num canto.
      Miss McCarthy sentou-se no sofá e serviu café. Estava usando um simples vestido bege com uma pequena jóia – um grande e mais ornamental anel era seu único esmerado ornamento. E de altura média, morena, os cabelos penteados para trás, divididos ao meio, e amarrados com uma fita. Este penteado simples dá-lhe um perfil de beleza, de uma regularidade quase clássica. Seu sorriso é franco, inesperadamente iluminando seu rosto, quando ela quase fecha os grandes olhos. Não fala rapidamente, mas com grande animação e energia, quase sempre gesticulando, olhando causalmente para as mãos. Suas frases são vigorosamente entremeadas com palavras de grande vigor enfático e pausas igualmente significativas. De modo geral, impressiona como uma mulher que combina certa graça e encontro com uma forte e positiva segurança. É típico dela mostrar sua enorme postura elegante que provém sobretudo da beleza dos braços e pescoço, colocando a cabeça quase com um deliberado aranco, como se estivesse subindo uma escada.
       Embora a conversação de Miss McCarthy fosse notavelmente fluente e muito bem articulada, de vez em quando ela se interrompia, com uma espécie de cuidado nervoso, tentando dar uma nova forma ou qualificar uma frase, algumas vezes mesmo impacientemente afastando-a e recomeçando com esforço para exprimir-se tão exatamente quanto possível. Diversas vezes durante a entrevista apegou-se a uma questão de tal modo que se sentia perfeitamente que estava decidida sobre certas coisas que desejava dizer a respeito de si mesma e ficava indecisa para criar a oportunidade de fazê-lo. Nesses momentos, algumas de suas explosões de alegria – sua tendência para os ditos espirituosos são justificadamente celebrados – levavam-na a extravagância não premeditadas de descrições ou especulações das quais ela mesma terminava rindo logo que as palavras saíam-lhe da boca. Foi extremamente generosa quanto a certa perguntas inconvenientes, tornado-as normais pela naturalidade das respostas. Em tudo, sua conversa foi marcada por um escrupuloso esforço para ser absolutamente clara e honesta e por uma espécie de natural e exuberante prazer em relação às suas próprias forças intelectuais.

* * *

- A senhora gostaria de escrever na Europa ?

Na verdade não vejo muita diferença. Acho que se ficasse aqui durante algum tempo terminaria por não ter muita dificuldade com a língua.

- Escreveu sobre a Europa quando veio para cá depois da guerra?

Somente naquele conto The cicerone. Foi no verão de 1946. Éramos justamente os únicos turistas e não podíamos viajar sem que tivéssemos uma razão para isto. Consegui que uma revista me desse uma espécie de carnet.

- O velho problema de um americano na Europa lhe interessa como romancista?

Acho que me interessava no tempo em que escrevi aquela história, mas depois, não. Por um motivo muito simples: não sei precisamente se me sinto como uma americana ou o que mais. New York, afinal de contas, é tão europeizada, e tantos dos nossos amigos são europeus que a distância torna-se imprecisa. A Europa, por outro lado, tem se tornado muito americanizada. Não, não vejo essa distinção jamesiana. Quero dizer, compreendo-a em James, e poderia mesmo compreendê-la em 1946, mas não agora. Não sinto mais esta antítese da jovem América e da velha Europa. Penso que realmente desapareceu. Para melhor ou para pior, não sei. Talvez para pior.

- Que me diz a respeito do romance que está escrevendo enquanto permanece aqui? Já está trabalhando nele há muito tempo?

Há anos. Deixe-me ver, eu o comecei mais ou menos por ocasião da primeira campanha de Stevenson. Então abandonei-o e escrevi livros sobre a Itália, e A Charmed life e Memories of a catholic girlhood. Quando o recomecei? Um ano antes da última primavera, creio. Uma parte dele apareceu em Partisan Review. Chamava-se Doty makes an honest woman of herself.

- Haverá alguma inconveniência em perguntar do que trata o livro?

Não, de modo nenhum. Chama-se The group e conta a história de oito moças graduadas em Vassar. Começa com a posse de Roosevelt e... bem, a princípio eu pretendia parar na posse de Eisenhover. Está concebido como uma espécie de romance crônico-satírico. Na realidade, um romance sobre a idéia de progresso. A idéia do progresso vista na esfera feminina. Sabe, não é? Economia doméstica, arquitetura, tecnologia doméstica, mediadas anticoncepcionais, gravidez; o estudo da tecnologia no lar, na profissão literária, na cama. Supõe-se ser a história da fé no progresso, na idéias do progresso, durante esse período de vinte anos.

- Essas oito moças de Vassar são baseadas mais ou menos na que conheceu quando estava no colégio?

Algumas delas são copiadas lindamente da vida, e outras são composições. Tentei conservar a mim mesmo fora do livro. Oh, e todas a mães delas estão no livro. Essa é a parte do que talvez eu mais goste.

- Só as mães? Os pais não?

Os pais, não. Figuram vagamente, ocasionalmente, mas as mães estão monumentalmente presentes!

- Tem alguma importância o lugar onde escreve?

Oh, um bonito lugar com boa luz.

- Trabalha regularmente todas as manhãs?

Normalmente, sim, mas agora não tem sido assim. Normalmente eu trabalho de nove às duas, e às vezes muito mais... se a coisa está indo bem, às vezes de nove às sete.

- À máquina?

À máquina, sim. Isto já foi dito numa entrevista para Paris Review. Raramente saio para almoçar. É um método. E eu tive aceitando convites para almoçar recentemente... por que não me lembrei disto? Minha desculpa – a desculpa que esqueci – é simplesmente que não costumo sair para almoçar. E, em geral, não almoço. Este foi o melhor método que já adotei.

- Uma vez a senhora publicou parte de uma romance separadamente, numa revista ou numa coleção de contos. A senhora trabalha muito depois, antes de ser publicada no romance mesmo?

Depende. Com esse romance, sim.

- Falando não de um romance, mas de sua autobiografia, lembro-me de que publicou trechos de Memoires of a catholic girlhood como uma parte de Cast a cold eye. Modificou muito a história sobre sua alcunha, reduzido-a a um pequeno incidente em Catholic girlhood.

Nem me fale! Isto apareceu anos antes em Mademoiselle e quando o encaixei em Cast a cold eye não percebi como me desgostava. Quando resolvi colocá-lo em Catholic girlhood, simplesmente não resisti, ao ler as provas do livro decidi rasgá-lo e reduzi-lo a um pequeno incidente. Como estava, era impossível, demasiadamente retórico.

- Quando publica capítulos de um livro separadamente, pensa neles como capítulos ou como contos independentes?

Como capítulos, e se alguém, um editor, por exemplo, pensa que são o que Partisan Review cama de uma “capítulo condensado”, tudo está bem, mas nunca tentei transformá-lo em unidades separadas. Se acontecem ser certo... se desejam publicá-los como tal. O New Yorker tem me causado surpresa: publicaram coisas que nunca pensei que publicassem espontaneamente. Mas eles o fizeram.

- E a senhora, quando os viu impressos?

Já disse: fiquei mais do que surpresa.

- Que me diz sobre seu primeiro romance The company she keeps?

Aqueles capítulos foram escritos originalmente como contos. Na metade do trabalho comecei a pensar neles como uma espécie de história unificada. O mesmo personagem parecia e assim por diante. Decidi, finalmente, intitulá-los de romance, naquele sentido em que se tenta contar uma história. Mas os primeiros capítulos foram escritos sem nenhuma idéia de se transformarem num romance. Foi quando eu estava escrevendo aquele sobre o homem de Yale que decidi colocar a heroína das histórias anteriores naquela história. A história do homem de Yale não é nem um pouquinho autobiográfica, mas a heroína aparece de qualquer jeito, de modo a dar unidade ao livro.

- A senhora estava também interessada simplesmente no problema de escrever um história, de outros pontos-de-vista, experimentando diferentes cominhos?

Não há caminhos naquilo. Não creio que estivesse muito interessada no aspecto técnico. Era a primeira peça de ficção que eu escrevia, já que nunca fizera quaisquer outras experiências antes. Eu era muito inexperiente para me preocupar com problemas técnicos.

- Nunca escrevera ficção antes?

Não. Bem, no colégio escrevi um arremedo de ficção. Contos muito ruins, mal realizados, é claro, e foi tudo. Uma vez comecei uma história policial com a finalidade de ganhar dinheiro, mas não houve jeito de caracterizar o assassino. No fim de três capítulos eu ainda estava descrevendo os personagens e o meio, e vi que o trabalho não ia resultar em nada. Não havia cadáver! E foi tudo. Então fiz simplesmente The company she keeps e fiquei interessada pelo aspecto técnico do ponto-de-vista de estabelecer a verdade tentando recriar o que acontecia. Por exemplo, a história da galeria de arte foi escrita na primeira pessoa porque essa é a maneira de se escrever esse tipo de história... o estudo de um indivíduo curioso.

- Conclui então que muitas das suas histórias foram nitidamente autobiográficas.

Mais ou menos todas, exceto aquela sobre o homem de Yale.

- A diferença entre autobiografia e ficção está bastante clara em sua mente antes de escrever uma história, ou vem à medida que escreve? Ou não há diferença?

Bem, acho que isto depende do que se está fazendo. Deixe-me ser franca. Veja The man in the books brothers shirt. Neste caso eu esperava descrever alguma coisa que realmente aconteceu... embora, naturalmente, se tenha de fazer uma porção de mudanças sobre nomes e cidades. Na primeira história, sobre o divórcio, que era uma estilização – não havia nomes próprios ou qualquer coisa parecida – porém, ainda assim, eu esperava ser tão exata quanto possível sobre algo que havia acontecido. O homem de Yale baseava-se numa pessoa real. John Chamberlain e um pouco de alguns traços de sua carreira e então retratar toda a espécie de outros homens de Yale. Coloquei então a heroína da história, num imaginário caso de amor, que tinha de acontecer porque ela estava na história. Sempre achei que era uma carga muito grande para John Chamberlain, que estava casado. Mas certamente ele sabia que isto não era verdade, e sabia que eu não o conhecia muito bem, e que, por esta razão, na história, ele era justamente uma espécie de vistoso cabide. Mas tudo o que escrevi depois – talvez eu esteja errada – tem sido ficção. Ainda que possa haver elementos autobiográficos no que eu conscientemente faço, foi concebido como ficção, mesmo uma coisa como The oasis, na qual supõe que todas as pessoas são reais. Mas toda é ficção completa. Nada daquilo aconteceu. E depois, acontece no futuro. Mas em geral, em relação aos personagens, tento ao máximo ser tão exata quanto possível sobre a essência de uma pessoa, a fim de encontrar a chave de ambas as pessoas, tanto na vida real como na ficção.

- Tem alguma objeção a que as pessoas considerem sua obra como um roman à clef?

Suponho que, em certo sentido, eu seja responsável por isto, mas ao mesmo tempo me insurjo, já que desvia a atenção do que estou tentando realizar no romance. O que realmente faço é aplicar enfeites verdadeiros a um bolo imaginário. Se se está interessado no bolo, fica-se antes divertido com as pessoas que especulam sobre as diversas espécies de enfeites verdadeiros. Em The goves of academe, por exemplo. Eu ensinara no Bard College e no Sarah Lawrence, mas não desejei fazer uma combinação daqueles dois lugares. O que realmente desejei foi fazer um estranho e imaginário colégio que saísse de minha própria imaginação. Eu mesma fiz uma viagem à região de Mennonite, na Pennsylvania, para tentar encontrar uma perfeita localização para ele, e encontrei... vejamos... onde era? Em alguma parte perto de Ephrata... sim era em Lititz, na Pennsylvania. Havia lá uma encantadora espécie de academia fora de moda, um colégio de moças do qual eu jamais ouvira falar. Era o local perfeito, pensei, para aquele meu colégio imaginário. De qualquer modo, eu ficaria terrivelmente aborrecida se dissessem que era o Sarah Lawrence, ao qual em quase nada se assemelha. Era mais parecido com o Bard. O Sarah Lawrence é um lugar muito mais pesado e muito mais borné que o Bar ou meu colégio. E é claro que me incomodaria muito mais se dissessem que era o Bennington. Afinal de contas nada existe lá que possa sugerir o Bennington!

- Quanto esteve no Bard?

De 1945 a 1946

- E no Sarah Lawrence?

Somente por um período: o inverno de 1948.

- Gostou de ensinar?

Adorei ensinar, sim, no Bard. Mas no Sarah Lawrence os estudantes eram tão medíocres que não me senti bem lá. Não me lembro de ninguém a quem ensinei. No Bard era muito excitante. Tudo era totalmente maluco, alucinado. Eu nunca havia ensinado antes e ficava todas as noites até duas horas da manhã preparando as aulas para parecer mais importante diante dos alunos. Brincadeira.

- Não lhe pediram que ensinasse composição literária?

Sempre me recusei a ensinar composição literária. Eu ensinava em dois cursos com mais ou menos sete ou oito alunos, e alguns deles queriam estudar composição literária. Acho que cedi finalmente e orientei um rapaz que era incapaz de escrever qualquer coisa porque era mesmo incapaz de estudar qualquer coisa.

- Mas a maioria pertencia àqueles dois cursos.

Sim, e tem-se de manter todos aqueles estudantes. Havia um rapaz especializado nos trabalhos de James T. Farrell e uma moça que estava estudando Marco Aurélio e Dante. Era divertido. Eu fazia o trabalho por ela. Outra moça estava escrevendo uma tese sobre Richardson que ea absolutamente incorrigível. Veja, eu nem mesmo podia ensinar o romance russo, mas James Austen – que em meu curso encabeçava o “Romance Moderno” – e todos os trabalhos de Richardson. Assim eu nunca poderia dizer, está vendo?, onde ela lera aquilo que supunha ter lido, porque não me lembrava! Tudo era ao contrário! O estudante podia ver se o professor estava trapaceando ou fizera seu trabalho em casa. De qualquer modo, todo o mundo adoeceu depois daquele ano... quero dizer, indisposições físicas. Mas era excitante e muito engraçado. Os estudantes, muito divertidos. Havia alguns bem inteligentes. Não havia meio termo. Ou eram inteligentes ou cretinos. Mas como estes às vezes conseguiam passar. Gostei de ensinar porque adorava aquele negócio de estudar, achava que era praticamente impossível dar um curso sem que antes, durante a noite, lesse o material. Eu, absolutamente, não podia controlar a matéria se ela não estivesse fresca em minha mente. A não ser que se promovam leituras, e às vezes é necessário, embora esses métodos, creio, sejam um pouco extravagantes e dêem margem a caprichosas interpretações, como por exemplo, todo o livro, digamos Ana Karenina, em termos talvez ditados pelo momento. Fica-se pensando se a interpretação de Ana karenina dada àqueles pobres estudantes seria verdadeiramente exata como lhes parecia durante todo o tempo.

- Que livros manejou em o “Romance Moderno”

Bem, tinha-se de dizer no Bard quem era moderno ou contemporâneo, ou então os estudantes não se inscreviam. Pode-se pensar que seja uma anedota, mas é verdade. A princípio, comecei a dar um curso sobre teoria da crítica, de Aristóteles a T.S. Eliot, e somente três estudantes se inscreveram, mas se isto se houvesse chamado “Criticismo Contemporâneo” acho que teria uma classe regular. Mas chamamos a esse curso “O Romace Moderno”, e começamos com James Austen, acho, e continuamos até Henry James. Foi quando ensinei romances aos pares. Emma e Madame Bovary juntos, A princesa Casamassina, com toda sua conspiração anarquista e tudo o mais, com Os Processos. O vermelho e o negro com Grandes esperanças. E Fontamara com outra coisa. Somente analisei romances de que gostava.

- Faria am mesma lista se fosse dar o curso agora? Ou tem novas preferências?

Não sei. Talvez acrescentasse alguma coisa como o Doutor Jivago, afinal. E provavelmente, outro Dickens. A partir de então li uma porção de coisas diferentes de Dickens. Acho que analisaria Our mutual friend ou Little Dorrit.

- Por que resolveu ler Dickens outras vezes?

Não sei. Eu me interessei por Dickens no Bard e depois no Sarah Lawrence. Outro estímulo foi um livro feito por um homem chamado Edgar Johnson, biógrafo de Dickens. Anthony West o atacara no New Yorker, e isto me indignou tanto que li o livro e em seguida tudo se desenrolou como uma cadeia em reação. Realmente eu admiro Dickens apaixonadamente.

- Poderíamos recuar um momento para que a senhora fale sobre o que escreveu nos seus anos de colégio? Acho que disse que The Company she keeps foi a primeira história de ficção que escreveu, mas foi alguns anos depois que deixou Vassar, não foi?

É verdade. Compreenda, fui terrivelmente desencorajada quando estava em Vassar, e mesmo depois, porque eu tinha um espírito crítico e nenhum talento criador. Quem sabe? Talvez tivessem razão. Isto era dito com generosidade, não asperamente. De qualquer modo, não encontrei nenhum caminho, quando estava no colégio, para exprimir o que quer que fosse em forma de história. Mantivemos uma revista revolucionária: Elizabeth Bishop, Eleanor Clark, Muriel Rukeyser e eu. Escrevi, não ficção, mas uma porção de coisas estranhas, e publiquei-as.

- Uma revista revolucionária?

Havia uma revista oficial contra a qual nos insurgimos. Nossa revista era anônima. Chamava-se Com Spirito. Causou grande escândalo. Não sei por que razão... era uma coisa perfeitamente inocente. Mas as pessoas diziam: “É terrível, é anônima.” A idéia do anonimato surgira, é claro para conservar o julgamento claro, especialmente os julgamentos editoriais... para que as pessoas lessem aquelas coisas somente por seus próprios méritos. Mas Com Spirito só resistiu alguns números. Elizabeth Bishop escreveu uma maravilhosa história da qual ainda me lembro chamada Them came the poor. Era sobre uma revolução, uma fantasia que acontecia numa reunião burguesa, quando os pobres a invadiam, tomavam a casa.

- Que aconteceu quando deixou Vassar?

Bem, fui para New York e comecei a escrever críticas de livros para New Republic e Nation. Eu escrevia aquelas críticas pequenas. Então houve uma série sobre os críticos. Nation desejava um ataque em larga escala contra os críticos e aqueles que faziam as resenhas, principalmente os do Herald Tribune, Times, Saturday Review e outros. Como eu antes estivera escrevendo alguns comentários mais sérios, escolheram-me como a pessoa indicada para a tarefa. Mas eu era muito jovem, acho que tinha 22 anos e não acreditava em mim. Por isto, encarregaram Margaret Marshall, que era então mais velha, e eu suponho que tinha alguma influência sobre mim – não sei. De qualquer modo, era alguém mais responsável. Esta série provocou uma grande sensação naquela época, e muitas pessoas passaram mal. Continuei a fazer crônicas sobre livros, uma ou outra coisa sobre teatro, algo parecido com crítica literária. E nada mais aconteceu até surgir Partisan Review. Foi quando tentei escrever a história policial... mas antes de Partisan Review. Para ser mais exata, Partisan Review apareceu como uma revista stalinista, mas logo morreu, foi para o limbo. Mas depois do processo de Moscou, os PR, Phillips e Rahv, reviveram-na, voltando atrás e associando-se com outras pessoas – Como Dwight MacDonald e outros – e partiram para a frente. Como uma revista anti-stalinista. Eu me casara com um ator e supunha conhecer alguma coisa sobre teatro. Por isto, comecei a escrever uma coluna de teatro para eles. E não tinha outras ambições. Foi quando me casei com Edmund Wilson, e uma semana depois do nosso casamento ele disse: “Acho que você tem talento para se ficcionista.”. E eu fiquei. Sentei-me e aconteceu. Era a primeira história que eu realmente escrevia. A primeira história de The company she keeps. Robert Penn Warren publicou-a em Southern Review. E eu me vi com grande surpresa, escrevendo ficção.

- Foi quando se envolveu em política, não foi?

Não. Antes. Em 1936, na época dos processos de Moscou. Aquilo modificou absolutamente tudo. Entrei para o movimento trotskista, mas por acidente. Foi uma reunião. Eu conhecia Jim Farrel – já fizera a crítica de um de seus livros, creio que Studs Lonigam – de qualquer maneira, já conhecia Jim Farrel, e fora convidada para uma reunião oferecida por seu editor a Art Young, o velo caricaturista de Masses. Farrel andava dum lado para outro perguntando às pessoas se achavam que deveria ser dado a Trotsky o direito de asilo. Eu disse que sim e foi tudo. Logo descobri que meu nome constava da lista de uma coisa que se intitulava a si mesma de Comitê Americano para a Defesa de Leon Trotsky. Fiquei furiosa, é claro, com o uso de meu nome. Não que meu nome tivesse alguma importância, mas era meu. Justamente quando eu estava prestes a protestar, comecei a receber toda a sorte de apelos de stalinistas para sair do Comitê. Verifiquei que outras pessoas realmente estavam saindo do Comitê, como Freda Kirchwey – ela foi a primeira, penso – e esta covardia me impressionou tão desfavoravelmente que naturalmente nada reclamei sobre o meu nome e nem expliquei que ele ali estava por acidente, sem minha autorização. E fiquei. Comecei a conhecer todas as pessoas do Comitê. Comparecíamos a comícios. Era um mundo completamente diferente. E sério. Foi então que vim a conhecer os PR. Eles ainda não tinham revivido Partisan Review, mas ambos estavam no Comitê pró Trotsky, pelo menos Phillip. Nós – quero dizer, o Comitê – costumávamos nos encontrar no apartamento de Farrel. Lembro-me de uma vez quando nos reunimos na Dia de São Valentino, e eu pensei: “Oh, isto é tão estranho, porque sou a única pessoa nesta sala que sabe que hoje é o dia de São Valentino.” E era verdade! Eu tinha uma porção de amigos ricos, stalinistas, e estava sempre me defendendo deles sobre a questão do Processo de Moscou, Trotsky e coisas assim. Então eu precisava realmente estar bem informada para poder argumentar. Li cada vez mais e cada vez mais me envolvi naquele negócio. Ao mesmo tempo, consegui um emprego em Covici Friede, uma editora de esquerda que já não existe mais, também cheia de stalinistas. Comecei novamente a ver Phillip Rahv porque Covici Friede precisava da opinião de alguns leitores sobre livros russos, e eu me lembre de que ele lia russo, ficando, então encarregado da tarefa, e assim nos aproximamos ainda mais. Quando Partisan Review ressurgiu, eu apareci como uma espécie de membro da revista.

- Então, realmente, não esteve interessada em política antes do Processo de Moscou?

Não. Meu primeiro marido trabalhou na União Teatral, que era um grupo radical da parte baixa da cidade, encenando peças proletárias, com uma porção de comunistas naquilo. Muito poucos socialistas. E assim conheci todas aquelas pessoas, aquele tipo de pessoas. Mas não simpatizavam comigo, embora, ao encontrarmo-nos, contássemos piadas uns aos outros. Cheguei mesmo a desfilar na parada de um Primeiro de Maio. E outras coisas assim. Mas era tudo... engraçado. E tudo foi feito com esse espírito. E eu permanecia, como diziam os rapazes de Partisan Review, absolutamente burguesa. Eles sempre me disseram duramente: “Você é, na verdade, uma retrógrada. Uma figura da década de vinte.”

- Como reagiu a isto?

Bem, acho que fiquei ofendida. Eu era uma moca alegre e frívola, segundo o ponto-de-vista deles. Eles eram da década de trinta. Muito sérios. Por isso minha posição era tão incerta em Partisan Review. Não era exatamente incerta, mas... modesta. Quero dizer, de fato. E era por isso que deixavam escrever sobre teatro, porque pensavam que o teatro não tinha absolutamente conseqüências.

- Como a declaração de guerra afetou sua opinião política? O grupo de Partisan Review dividiu-se, não foi?

No começo da guerra fomos todos isolacionistas, todo grupo. Acho que depois do verão, com a queda da França – mas certamente antes de Pearl Harbor – Phillip Rahv escreveu um artigo no qual disse, numa frase medida: “Em certo sentido, esta é a nossa guerra.” Todos nós ficamos profundamente chocados com isto porque olhávamos a guerra como um negócio imperialista. Não se poderia derrotar o fascismo desta maneira: “Combata o inimigo em casa”, e assim por diante. Em outras palavras, reagimos diante da guerra como se se tratasse da Primeira Guerra Mundial. Isto foi depois de Munich, depois da chamada “guerra-da-mentira”. Havia algumas razões para que tivéssemos dúvidas sobre a guerra, pelos menos quanto à sua eficácia. Assim, quando Phillip escreveu aquele artigo, iniciou-se uma longa controvérsia em Partisan Review entre aqueles que apoiavam a guerra e os que não a apoiavam. Eu estava entre aqueles que não a apoiavam... Edmund Wilson também, embora por diferentes razões. Dwight fundou sua própria revista, Politics, que começou com uma publicação trotskista, para depois tornar-se libertária, semi-anarquista. Meyer Shapiro estava nesse grupo, e eu esqueci quem mais. Edmund era realmente um irrestrito isolacionista. Ou outros eram marxistas ou libertários. Havia uma separação no movimento trotskista naquele período. Mais para o fim da guerra comecei a ver que havia algo de hipócrita em minha posição: que eu estava realmente apoiando a guerra. Fui assistir a um filme – um maravilhoso documentário chamado Desert victory, a vitória dos britânicos sobre a Africa Corps de Rommel – e me surpreendi chorando terrivelmente quando os tocadores de gaita de Montgomery marcharam diretamente para El Alamein. Em outras palavras, aplaudindo a guerra e, por outro lado, estando absolutamente contra o namoro com a Inglaterra, contra a troca de interesses – aquela era uma guerra de interesses – contra toda a coisa prática. E subitamente, lembro-me – deve ter sido no verão de 1945 que eu primeiro disse isto em voz alta – lembro-me de que estava em Cape, Truro. Havia uma porção de amigos: Chiaromonte, Lionel Abel, Dwight etc. em minha casa... então eu já estava divorciada de Edmund ou, pelo menos separada... e eu disse: “Sabem? Penso que eu, que todos nós somos realmente pela guerra”. Foi a primeira vez que disse em voz alta. Dwight negou com indignação: “Eu não sou pela guerra”. Foi o que ele disse. Mas era. Aí decidi dar uma transfusão de sangue . E então tudo ficou claro. Ninguém estava me obrigando a fazer aquilo, mas senti que tinha de ir e tornar as coisa as claras para os meus amigos, primeiro. Estaria errada em supor que o esforço de guerra era doar sangue? Mas me convenci de que estava certa. Para que tanto barulho? Então doei meu sangue. Outros as pessoas estavam fazendo isto também, eu penso, independentemente, ao mesmo tempo, pessoas de tendências mais ou menos como as minhas. E foi o fim da história. Anos depois achei que Phillip estava com a razão e que nós, todo o resto, estávamos errados. Decerto que nada sabíamos sobre os campos de concentração: a morte nos campos não foi sabida desde o começo. Todas aquelas notícias vieram muito depois. Mas uma vez que chegaram, tornou-se claro – pelo menos para mim, e continuo acreditando – que o único caminho de parar com aquilo era uma guerra. Somente a queda militar de Hitler terminaria com aquilo e foi o que aconteceu. Mas demorou muito, muito tempo para que eu visse isto. Fica-se sempre receoso de cometer o mesmo erra outra vez. A dificuldade reside em que sempre se pode corrigir um erro passado, como nossa atitude diante da Segunda Guerra Mundial como se tratasse da Primeiro Guerra Mundial, mas se tenta projetar a correção do erro no futuro, pode-se agir de maneira diferente. Quero dizer, muitas pessoas agora estão falando sobre a Terceira Guerra Mundial como se fosse a Segunda Guerra Mundial.

- O que eu não vejo claramente foi como se sentiu depois que a guerra terminou.

Agora, tanto quanto me lembro, o após-guerra foi o melhor período, politicamente, que atravessei. Naquele tempo parecia-me que havia um bocado de esperança em volta de tudo. A guerra acabara! Com certeza – talvez – os erros tinham sido reconhecidos. A bomba fora jogada em Hiroshima, e havia uma espécie de arrependimento geral. Isto foi antes da bomba de hidrogênio, e ainda nem sequer sonhá- vamos que os russos fossem conseguir a bomba atômica. A cena política parecia livre. Não era somente verdade para nós... parecia um grande momento. Pessoas como Dwight e Chiaromonte e eu costumávamos falar muito sobre isto, e mesmo Koester estava escrevendo naquele período sobre a possibilidade de fundas oásis... foi de onde tirei o titulo daquele livro. Parecia possível, utópico mas possível, mudar o mundo em pequena escala. Todos estavam tentando viver num caminho reto, com muita energia, a energia que a paz realmente trouxera. Foi o período do Plano Marshall também. Foi um bom período. Então, em seguida, a em seguida, a Rússia conseguiu o fim de qualquer esperança, pelo menos uma esperança em caminho sólido.

- Como caracteriza sua opinião política agora

Dissidente!

- Em todo os sentido?

Sim! Não, ainda acredito no que acreditava então... ainda acredito numa espécie de socialismo libertário, um socialismo descentralizado. Mas não vejo nenhuma possibilidade de conquistá-lo. Istoé é, dentro do período que vejo poder-se-ia dizer, até o fim da geração dos meus filhos, da sua geração. Às vezes me parece, realmente, que a única esperança é o espaço. Isto equivale a dizer que talvez os mais enérgicos – no mau sentido – elementos se moverão para um novo mundo no espaço. Os problemas de uma sociedade de massas serão transportados pelo espaço, deixando atrás este mundo como uma espécie de Europa que os turistas visitarão ocasionalmente. O Velho Mundo. Estou somente dizendo uma meia piada. Não penso que o problema da igualdade social seja resolvido. Logo me parece que ele vai ser resolvido, ou mesmo que está a caminho de ser confrontado – veja, como no fim do século XVIII – há uma massa que se move para um novo continente, adiando a solução. ?Depois de 1948, depois do fracasso das revoluções na Europa em 1948, a esperança por uma Europa realmente igualitária morreu, e muitos dos de 1948 foram para a Califórnia com alguns da Corrida do Ouro. Meu Bisavô, da Europa central, foi um deles – A Corrida do Ouro, a Fronteira, era uma espécie de substituto da igualdade. Pense no filme de Chaplin. E mais uma vez o conceito de igualdade penetrou no mundo, a vida tornou-se intolerável sem ela, mas até agora não foi realizada. Assim pode ser que haja outro deslocamento, outra migração. O problema, a solução ou o confronto serão novamente adiados.

- Acha que seu trabalho crítico, seja político ou literário, cria algum problema em relação ao eu trabalho como romancista?

Não, exceto que se tem o perpétuo problema, isto é, se alguém lhe pede que escreva um, artigo, tem-se de interromper o que se está fazendo – se está escrevendo um romance – para fazer o artigo. Você fica com pena se o assunto lhe interessa bastante, ou se está cansada no momento, emocionalmente fatigada pela ficção que está escrevendo. Assim, seria bom parar e concentrar-se em alguma outra coisa. Acabo de concordar em fazer uma crítica da coletânea de Camus sobre ficção e jornalismo. Isto estava de alguma maneira relacionado com meu próprio trabalho, com a questão do romance em geral. Achei que devia fazer porque desejo ler todo Camus e decidir o que finalmente penso a respeito dele (Terminei quase tão confusa, agora, quanto comecei) Mas em geral não me comprometo a fazer uma crítica sem que seja alguma coisa como esta. Exceto se Anthony West ataca Dickens. Você sabe. Tem que ser ou uma coisa que eu deseje muito esclarecer, queira estudar mais profundamente ou me interessa em qualquer sentido. Pode ser também, em caso de estudo, alguma referência – muito indireta – sobre meu próprio trabalho.

- Isto é praticamente uma mudança do tempo em que escrevia crítica e não pensava em escrever ficção. Mas agora se considera uma romancista? Ou não se preocupa com essas distinções?

Bem, acho que me considero uma romancista. Sim. Inclusive se a maneira como escrevo fosse realmente, suponho, formada criticamente. É isto, aprendi a fazer resenhas de livros e crítica, e então escrevi romances como os escrevia, fui formada nesse sentido. George Eliot, você sabe, começou traduzindo Strauss, começou escrevendo sobre a filosofia alemã... embora suas passagens filosóficas não sejam tão boas em Middlemarch. Contudo, penso que esta espécie de treinamento realmente torna uma pessoa mais interessada pelo assunto do que pelo estilo. O trabalho dela certamente não sofre de nenhum tipo de estilo arrebicado. Não tem grandes planejamentos em volta. Há uma espécie de concisão nele, e da melhor – por exemplo, aquela passagem onde ela está descrevendo o caráter de Lydgate – que mostra, creio, o treinamento crítico e filosófico. Jamais gostei da convencional concepção de “estilo”. A confusão reside no fato de se dizer que o estilo realmente significa uma forma de escrito imaginoso... quando as pessoas dizem: “Oh, sim, como fulano é um maravilhoso estilista”. Mas se se quer dizer por estilo a voz, a irredutível e sempre reconhecida e viva coisa, então decerto o estilo é tudo realmente. É o que se encontra em Sthendal e em Pasternack. A mesma coisa que se encontra num poeta... o som, digamos, da voz de Donne. Em certo sentido não se pode ir mais além na análise de Donne sem se identificar esta voz, como se pode reconhecer Don Giovanni pela voz de Don Gionvanni.

- Falando propriamente de seus escritos, atribui seu “estilo” aos antigos trabalhos de crítica, quando ainda não sentia a influência de outros escritores de ficção?

Não acho que tenha alguma influência. Penso eu minha própria história, a primeira de The company she keeps, mostra definitivamente a influência jamesiana... James é tão terrivelmente contagioso. Mas além disto, não posso encontrar nenhuma influência. Isto é, não posso como uma pessoa imparcial – tão imparcial quanto possa ser – olhar para meu trabalho e ver de onde ele vem do ponto-de-vista das fontes literárias.

- Mas deve haver alguns escritores que são mais preferidos do que outros.

Oh, sim. Mas não acho que escreva como eles. O escritor de quem eu mais gosto é Tolstoi, e eu sei que não escrevo como Tolstoi. E como deseja escreve! Talvez o melhor prosador inglês seja Thomas Nash. E eu também não escrevo como Thomas Nash.

- Parece também de acordo com alguma sugestões que nos dá em seus livros, que também gosta muito dos escritores romanos.

Muito, quando era jovem. Para falar a verdade, adorei Catulo e Juvenal. Eram os dois que eu mais amava apaixonadamente. E César, quando era mocinha. Mas não se poderia dizer que influenciada por Catulo!. Eu gosto muito, mas muito mesmo de Sthendal. Ficaria muito feliz se escrevesse como Stendhal, mas não escrevo. Existe certas frases de Stendhal que nos mostram como deveria ser escritas. Mas eu não posso. Certa espécie de clareza e brevidade... a essência da atitude numa frase do autor, e feita tão simplesmente, tão sem paternalismo. Uma espécie de alegria.

- A influência é um jogo perigoso.

Bem, é fácil ver em alguns casos, e as próprias pessoas sabem disto, estão interessadas nisto como outras estão em sua genealogia. Eu simplesmente não posso encontrar meus ancestrais. Outro dia estava conversando com alguém sobre John Updike, e aí está outro em quem não posso encontrar fontes.

- Gosta do que ele escreve?

Gosto. Não terminei Rabbit, Run... porque tive que devolvê-lo antes à pessoa que o emprestara a mim. Achei que foi muito estupidamente criticado. Li Poorhouse fair, que achei realmente notável. Talvez sofresse de um problema de ponto-de-vista, o virtuosismo de fazê-lo através daquele homem sentado na varanda do asilo, através de olhos com refração, velhos olhos, e assim por diante. Eu penso, neste sentido, que o artifício o impede de dizer mais coisas no livro. Mas, de qualquer modo, é um livro notável. Entretanto, acho que realmente não li Rabbit run porque pensei: - “Oh, meu Deus. Como lêem esses críticos”. Os críticos pareciam estar sob a impressão de que o herói era um mau caráter. É incrível! Não, eu acho que é o mais interessante romancista que já li há muito tempo.

- E sobre os outros? Gosta de Henderson the Rain king?

Bem, sim, acho a primeira parte de Henderson maravilhoso. Que vitalidade! Acho que é um romance divertido, próprio para celebridade, quase como o romance francês do século dezoito, ou conte, muito encantador. Mas o resto não tem a mesma densidade e a mesma rajada de vitalidade da primeira parte.

- Que mais romancistas americanos atuais a interessam?

Diga um. São tantos, realmente? Sabe o que quero dizer. Não posso pensar em todos. Não gosto de Salinger, por exemplo. Aquela última coisa não é um romance, não sei o que é. Não gosto disto. De maneira nenhuma. Sofre daquela terrível espécie de sentimentalidade metropolitana e é tão narcisista. É também me parece tão falso e tão calculado. Combinando o homem comum com um egoísmo absolutamente megalomaníaco. Simplesmente não poso suportá-lo.

- Pensa a respeito das escritoras? Ou acha quea categoria “mulheres-escritoras” não existe?

Algumas escritora pertencem a essa categoria. Quero dizer, há certa espécie de “mulheres-escritoras” com M e E maiúsculas. Vigínia Woolf certamente foi uma, e também Katherine Mansfield. E Elizaberth Bowen. Katherine Anne Porter? Não penso que realmente seja... quero dizer seus escritos são certamente muito femininos, mas eu não diria que nela houvesse o M e O maiúsculos. Quem mais? Eudora Welty, que não começou como uma “mulher-escritora”, mas tornou-se ultimamente.

- Que acontece para provocar esta mudança?

Penso que elas se tornam interessadas no cenário. Você pode ver a mudança em Elizabeth Bowen,. Seus primeiros trabalhos são muito masculinos. Seu último trabalho tem muito mais roupagem. Quem mais? Jane Austen nunca foi uma “mulher-escritora”, pelo menos na minha opinião. O culto a Jane Austen pretende que ela tenha sido, mas não acho que foi. George Eliot certamente não, e George Eliot é o tipo da escritora que admiro. Já pretendi escrever alguma coisa sobre isto que se chama “Senso e Sensilbilidade”, dividindo as escritoras em cada um dos lados. Eu estou daquele que representa o senso, e assim era Jane Austen.

- Deixando um pouco os romances de lado, gostaria de pergunta-lhe, se pudesse, alguma coisa sobre Memoires of a catholoic girlhood. Escreveu mais alguma autobiografia?

Eu estava justamente lendo... oh, Deus, eu ia começar a ler o segundo volume de La force de l’age, de Simone de Beauvoir, e no prefácio ela diz que não pode escrever sobre si mesma depois com a mesma candura que escreveu sobre a infância.

- Sente isto também?

Neste ponto concordo com ela. Tem-se de ser realmente velho, eu acho, praticamente uma pessoa velha... e nesse tempo não sei em que condição a memória poderia estar.

- Concorda com os outros pontos-de-vista dela?

Outro dia dei uma entrevista a L’Express e falei sobre os trabalho de Simone de Beauvoir. Não vamos falar duas vezes no mesmo assunto. Supõe-se que esse livro seja melhor, de qualquer maneira mais interessante que o primeiro, porque já está nos anos de trinta, e todo o mundo deseja ler sobre isto. E seu caso de amor com Sartre justamente a substância desse livro, supões ser muito tocante O livro é mais interessante que o primeiro. Mas eu a acho detestável uma imaginação totalmente burguesa às avessas.

- Tenho ainda alguma coisa a perguntar sobre Memoires of a catholic girlhood. Há certos pontos e momentos importantes em sues romances, onde a senhora aprofunda ou amplia a descrição das categorias nas quais um personagem pode estar relacionado a um paralelo ou equivalência litúrgica eclesiástica ou teológica. Desejo saber se isto é simplesmente um estrito uso de analogia, um plano de técnica literária, ou indica uma convicção de que aqueles são os válidos e importantes caminhos para julgar o ser humano?

Suponho que se refere à maneira de pensar sobre o ser humano. Mas eu acho, infelizmente, que são antes referências literárias. Isto é, amostras superficiais para fazê-las... realmente uma terrível compulsão. A primeira frase de The stones of Florence começa assim: “Como pode suportá-lo? Esta é a primeira coisa, e a última também, a questão escatológica que o visitante deixa ecoando no ar atrás de si” Mais ou menos assim. Bem, todo o mundo me procurou para dizer que eu tinha de tirar aquela palavra. E a retirei quando publiquei o capitulo em New Yorker, mas coloquei-a no livro. Não sinto uma grande compulsão para fazer aquelas referências. Penso que faço isto como uma espécie de sinal secreto, uma espécie de aviso que passa por cima dos leitores que não as reconhecem, mas atinge aqueles que as compreendem.

- Se essas referências são apenas literárias, sinais secretos, então são blasfematórias.

Compreendo o que quer dizer. Suponho que são. Sim, são piadas secretas, são blasfêmias. Mas – acho que digo alguma coisa sobre isto na introdução de Catholic girlhood – penso que a religião oferece aos americanos (quero dizer a religião católica romana) muitas vezes a única história e a única filosofia que têm. Uma referência a isto, de qualquer maneira, abre essa perspectiva histórica. No sentido que é um esquema para aprofundar a passagem.

- Poderíamos voltar aos seus romances por um instante? Gostaria de perguntar-lhe como os começou. Partiu dos personagens, da situação ou da intriga? O que vem primeiro? Talvez seja uma pergunta muito complexa, de maneira geral.

Muito complexa, e eu sou tremendamente específica. Só posso realmente pensar em termos específicos, inclusive sobre mim mesmo. The groves of academe começou com a intriga. A intriga e este personagem: não poderia haver intriga sem esta figura do indivíduo impossível, o professor que não conseguia emprego e sua campanha pela justiça. Ambos cotados num caminho sério. Que é a justiça para uma pessoa desempregada? Isto foi concebido a princípio como uma intriga, revogando-se a idéia no fim, quando Mulcahy triunfa, e o Presidente está prestes a perder seu cargo, quando tudo muda, e há o triunfo. Eu não via exatamente o que ia acontecer no meio. Não estudei os detalhes. Mas vi que deveria ser sua campanha pela reeleição, e então seu segredo seria descoberto. Neste caso, ele não havia sido comunista. A charmed life começou com um conto; o primeiro capítulo foi escrito como um conto. Quando amadureci a idéias de transformá-lo num romance, tudo o que eu sabia era que a heroína deveria morrer no fim. Todo o mundo foi contra esse fim, dizendo que era terrível ter de matá-la num acidente de automóvel no último parágrafo... sem nenhuma preparação, e assim por diante. Mas de uma coisa eu estava absolutamente certa: a heroína deveria morrer no fim. Primeiro eu tencionava fazê-la ter um aborto e morrer desse aborto. Mas isto me pareceu muito banal. Então concebi a idéia de fazê-la dirigir o carro do lado certo da estrada e encontrar a morte, porque nesse lugar esquisito todo o mundo está sempre do lado errado da estrada. Mas tudo isso está realmente implícito no primeiro capítulo.

- Assim, a crítica de que os leitores não estão preparados para o último parágrafo lhe parece incorreta?

Pode ser que exista alguma coisa errada com o romance, não sei. Mas deve supor-se que há um elemento de contos de fadas nele. New Leeds é um lugar assombrado! Por isto, ninguém deveria surpreender-se se alguma coisa inesperada acontecesse, uma catástrofe, porque o lugar é muito rico de catástrofes. Mas poder ser que o tratamento, no meio, fosse muito realista, obrigando o leitor a esperar uma continuação realista ou, pelo menos, alguma coisa muito moderada Era, por extensão, uma história simbólica. Supõe-se que o romance seria sobre a dúvida. Todos os personagens, de diferentes modos, representam a dúvida, se a dúvida é filosófica ou ontológica como no caso de estranho pintor que pergunta a todo o mundo: “Porque não devo matar minha avó?” Ou a moça que não tinha certeza se estava ou não no século dezenove, duvida da verdade, que ela percebia. Em qualquer caso, supõe-se que todos representam uma ou outra forma de dúvida. Quando a moca, finalmente, se convence que está grávida, e reconhece também que deve fazer alguma coisa, em outras palavras, que tem de enfrentar uma situação de fato - e ela enfrenta esta situação – nesse momento torna-se mortal. Todos os outros personagens são imortais. Sofrem uma porção de acidentes, são estropiados de uma ou outra maneira, e ainda têm a maravilhosa força de sobreviver. Todos aqueles bêbados e estranhos restos, de qualquer maneira, a moça toma a decisão – que, do ponto- de-vista da moral convencional, é uma decisão pecaminosa – de abortar, de matar uma vida. Quando ela toma esta decisão, torna-se mortal, e não pertence mais ao círculo encantado. Logo que realiza, morre... o que morre é simplesmente um símbolo do fato de que ela é imortal.

- A senhora diz que a decisão dela torna-a mortal. Mas essa decisão inclui alguém mais: o pintor.

Sim, sim, já sei o que quer dizer. Não pensei nisto, que quando ela pede a alguém que a ajude, estabelece uma espécie de laço social, uma espécie de laço entre pessoas da mesma sociedade, enquanto o resto permanece como uma comunidade isolada.

- Encontrando-se nesse laço mortal, social, não o torna mortal também? Ele continua fazendo parte do círculo encantado?

Ele é muito doce para ser mortal! Bem, é uma figura cômica, e eu acredito que todos os personagens cômicos são imortais. Eternos. Creio que esta é também a teoria de Bérgson. Ele disse alguma coisa, ouvi contar, que uma personagem cômico é figé. Como Mr. Brs. Micawber: todos têm de continuar a ser invulneráveis. Quase todos os personagens de Dickens têm esta peculiar existência de eternidade, exceto os heróis, exceto Pip, Nicholas Nickleby ou David Copperfield.

- Que outros personagens em seus romances a senhora considera...

Cômico? Quem sabe se eles são imortais? No que se refere a mim, acho que são.

- Então não pensou na diferença ente “mortal” e “imortal” em relação aos personagens de outros dos seus romances além de A charmed life?

Nunca pensei nessa diferença até há bem pouco tempo e não em relação a mim mesma. É justamente neste instante – agora, conversando com você- que estou pensando na relação comigo mesma. Talvez fosse possível dizer que é uma lei que se aplica a todos os romances: que o personagem cômico é figé, imortal, e que o herói ou a heroína existem no tempo, porque o herói ou a heroína estão sempre, em certo sentido, designados para algum objetivo. O homem em The Groves of academe. Bem, ele é imortal, sim. É um vilão cômico, e os vilões, acho, também partilham desta imortalidade cômica. Eu penso assim. Não tenho certeza de que não se pudesse encontrar um exemplo, no entanto, de um vilão em que isto não fosse verdade. Em Dickens novamente. Nos últimos romances, alguém como Bradley Headstone, o mestre-escola, é uma mistura. Certamente não é um vilão como, digamos, o de Little Dorrit, que pertence ao tipo imortal do vilão melodramático e fora de moda. Headstone é realmente metade herói, Steerforth é metade herói, mas, no entanto, não se conformam com isto. Tudo aconteceu em último ano, quer dizer, esta distinção, quando eu estava escrevendo sobre o romance. Não meu romance: o Romance. Mas talvez isto seja devido à preocupação que estou tendo meu romance. Essas moças são essencialmente figuras cômicas, e é demais fazer que alguma coisa lhe aconteça. Talvez esteja aí a verdadeira dificuldade! E talvez eu termine descobrindo alguma coisa nesta entrevista! Que todo o problema reside no tempo! Quero dizer para mim, nesse romance. A passagem do tempo, para mostrar o desenvolvimento. Penso que talvez minha dificuldade é que essas moças sejam figuras cômicas e que por esta razão não podem desenvolver-se. Percebe o que quero dizer? Nem todas são tremendamente cômicas, mas muitas delas o são. Como vão desenvolver-se na década de 1920 entre a posse de Roosevelt e a de Eisenhower? Este tem sido o grande problema, e ainda não encontrei uma forma para ele. Tudo o que sei é que elas devem ser de meia idade no fim. Sim, penso que é esta a dificuldade. Haveria uma possibilidade... Fui apresentando uma por uma, capítulo por capítulo. Todas aparecem no começo como o inicio de uma ópera ou de uma comédia musical. E depois tomo uma por uma capítulo por capítulo. Estou apresentando cada uma num pequeno espaço de tempo. Mas talvez eu possa dar cada vez saltos maiores até que se encontre a última, quando já está com meia-idade. Compreende o que quero dizer. Talvez isto resolvesse o problema. Uma, cinco anos depois; outra, oito anos depois; e assim por diante. E manobraria o problema de tempo desse modo. Esta conversa foi muito proveitosa. Muito obrigada.

- Desejo falar-lhe ainda sobre o problema do tempo no romance. A senhora já escreveu que a ação dum romance não pode acontecer no futuro. Mas disse que a ação descrita em The oasis tem lugar no futuro.

The oasis não é um romance. Não o classifico como tal. Fui terrivelmente criticada, você sabe, nesse terreno diziam que não era um romance. Mas nunca pretendi que fosse. É um conto, um conte philosofique.

- E a senhora disse que em A charmed life há elementos de história de fadas.

Não tenho certeza de que nenhum dos meus livros seja romance. Talvez nenhum deles o seja. Algumas vezes acontece em meus escritos – não sei como – uma espécie de distorção de linha oblíqua, vendo as coisas como se estivessem viradas e caídas. A charmed life, por exemplo,. No começo fiz uma espécie de inventário dizendo quem eram. Fiz isto com a intenção de descrever, bem, esta linda, comum, antiquada cidade da Nova Inglaterra. Mas tudo terminou muito diferente. Alguma coisa é distorcida, a descrição adquire uma maneira extravagante... não sei exatamente como acontece. Sei apenas que eu não queria que isto acontecesse.


- A senhora disse num dos seus artigos que talvez o defeito resida simplesmente no material que o mundo atual proporciona, que simplesmente falta...

Credibilidade? Sim penso que todas os escritores modernos têm essa dificuldade.

- Além do problema do ajuste do tempo, existem outras dificuldade técnicas específicas no romance que se referem especialmente à senhora?

Bem, toda a questão do ponto-de-vista, que tortura todo o mundo. É o problema com que todos vêm lutando desde Joyce, se não antes. Realmente começou com James e também com Flaubert. Pode-se ver isto em Madame Bovary. O problema do ponto-de-vista e a voz: style indirect libre – a voz do autor, como num tipo de ventríloquia, desaparecendo no livro e completamente limitada pelas vozes dos seus personagens. O que isto significa é o total banimento do autor. Eu gostaria de restaurar o autor! Ainda não tentei, mas tentarei depois deste livro, que está tão longe quanto possível da ventriloquia. Gostaria de tentar restaurar o autor. Porque se termina compreendendo que se se obedece a esta injunção jamesiana de “dramatize, dramatize”, especialmente se se lida com personagens cômicos, como é o meu caso, não se pode dizer muita coisa porque se está muito limitado por essa mentalidade. É justamente por isto que certo tipo de inteligência – não estou falando somente de mim mesma, mas de alguém como Saul Below, por exemplo – permanece mais ou menos ausente do romance, e tem de ser assim, de acordo com aquelas leis que o romance traçou para si mesmo. Penso que a razão pela qual todo o mundo – inclusive eu – gostou de Dr. Jivago foi porque se tinha o autor na forma do herói. E esta bela voz de tenor, a voz do herói de do autor... esta maravilhosa voz e este claro som de inteligência. Os russos nunca atingiram o total desenvolvimento do romance como se encontra em Joyce. Faulkner etc. Por isto, Pasternack estava superficialmente inconsciente do problema. Penso que este desenvolvimento técnico tem destruído o romance.

- Quer dizer que depois desse romance sobre as moças de Vasar, a senhora...

Não sei o que vou fazer, mas desejo tentar alguma coisa que introduzirá, por menor que seja, em meu trabalho, minha própria voz. E não disfarçada de heroína. Estou terrivelmente aborrecida com minha heroína. Não neste romance: minha heroína do passado. Porque a sensibilidade em cada romance localiza-se cada vez mais, que se tornou um agente de percepção etc. Vamos dar um salto agora. Eis a razão porque gostei de fazer aqueles livros sobre a Itália, livros sobre Veneza e Florença; eu estava escrevendo com minha própria voz. Um deles foi na primeira pessoa, o outro completamente objetivo, mas isto não faz nenhuma diferença. Eu os senti compreende? Agora posso falar livremente! Os livros foram escritos muito depressa, o de Veneza ainda mais. Mesmo o livro de Florença, com um mundo de pesquisas, foi escrito rapidamente, com muita energia, com uma espécie de energia libertada. E sem aquele esmero necessário à dramatização de um romance e que ninguém pode perceber através de um personagem. As dificuldades técnicas são tão grandes, projetando-se a si mesma, fingindo uma consciência estranha, que muita energia fica perdida, acho, na mascarada. E acho também que isto não é verdadeiro somente para mim.

- Como veio a escrever aqueles livros sobre Florença e Veneza?

Por acaso. Eu estava em Paris, às vésperas de voltar para a América e alguém me telefonou perguntado se eu gostaria de tomar um drinque no Ritz antes do almoço, pois queria solicitar-me alguma coisa. Era um intermediário dos Berniers, que editam L’Oeil, em Lausanne, e o homem queria saber se eu poderia escrever um livro sobre Veneza para eles. Eu estivera em Veneza uma vez durante dez dias, mas aquilo parecia uma aventura. E havia outras razões também. Por isso, aceitei. Fui ao encontro dos Berniers em Lausanne. O dinheiro que eu tinha eram 20 dólares, e fiquei pensando se tudo não passava de uma terrível brincadeira. Eu iria a Lausanne, e lá não havia nenhuma daquelas pessoas! Ninguém! Corri para Jay Laughlin naquela noite, e ele me disse que sua tia estava em Lausanne naquele momento e que se me acontecesse alguma coisa, eu poderia recorrer a ela. Então fui para Lausanne, e as pessoas existiam, estavam lá. E fomos para Veneza juntos. Eu não conhecia nada sobre o assunto... talvez exagere minha ignorância agora... mas estava assustada. Receava fazer perguntas... porque se fizesse uma a George Bernier, ele tremeria, já que eu revelaria a mais absoluta e terrível ignorância. Então fiquei calada. Eu jamais ouvira antes que houvesse mais de um Tiepolo ou mais de um Tintoretto, que houvesse um filho. Conhecia vagamente Bellini, mas não tinha nenhuma idéia onde estavam os três Bellinis. Coisas assim. Não se devia esperar que eu conhecesse a história dos venezianos, mas essa história é muito fácil, e não há muita coisa sobre ela. Mas a história da arte! E eu que me considerava uma pessoa razoavelmente culta! Minha história da arte era da mais frágil natureza! Mas foi divertido e me levou a escrever o livro sobre Florença. A princípio eu não queria fazê-lo. Mas tudo em Veneza, na Itália afinal, realmente está dirigido para Florença, pelo menos tudo da Renascença, tal como semáforos. Em qualquer distância que se esteja se está perto de Florença. Então senti que tudo estava incompleto, que devia ir a Florença. Estava longe de pensar em escrever um livro. Aí vários acontecimentos se sucederam, e eu me decidi rapidamente. Muito bem, eu faria o livro sobre Florença. Então voltei a Veneza e estudei os florentinos em Veneza, isto por alguns dias. Era tão estranho voltar a Veneza depois de estar mergulhada em Florença. Parecia tão terrível! De um ponto-de-vista arquitetônico, tão desconexa e indefinível, depois de se viver com a substância e a monumentalidade, a intelectualidade da arquitetura. A princípio a volta foi um choque tremendo. E eu descobri como gostava de história. E pensei: - “Meu Deus, talvez tenha cometido uma tolice. Talvez eu devesse ser um historiador”.

- Devo lembra também que a senhora descobriu seu amado Brunelleschi.

Oh, sim! Sim! Sim! Senti uma grande, grande identidade... não quero dizer pessoalmente com Brunlleschi, estaria lisongeando a mim mesma se dissesse isto... mas com a história de Florença, o temperamento florentino. Senti que escrevendo sobre essa cidade a ela me ligaria daí para frente, que estaria com ela; que através dessa cidade, de sua história, de sua arquitetura e dos seus pintores – mais dos seus escultores que dos seus pintores – me era possível dizer o que eu acreditava. E dizer de maneira afirmativa, mesmo que tudo houvesse terminado em 1529, muito antes do nascimento de Shakespeare.

- Lendo o livro sobre Florença lembro-me de que fiquei comovida com a passagem em que a senhora fala de Bunelleschi sobre sua “absoluta integridade e essência”, aquela solidez, ambas reais e ideais. Quando escreveu sobre Brunelleschi, escreveu sobre esta segurança, este “ser-si-mesmo”, e ainda como romancista – em The company she keeps, por exemplo – a senhora falou de alguma coisa tão diferente, que quase tomou como tema esse fragmentado deslocamento da personalidade humana.

Mas eu estava muito errada então. Acho que não estava realmente interessada na busca do eu. Penso que qualquer um continua interessado na busca do eu, mas o que se sente quando se está mais velha, creio, é que... como dizer isto?... que realmente deve-se fazer o eu. É absolutamente inútil exprimir isto, não se conseguiria, mas em certo sentido é possível realizá-lo. Não digo no sentido de fazer uma máscara, uma máscara yeltsiana, mas finalmente começa-se, de alguma maneira, a fazer e a escolher o eu que se deseja.

- Pode escrever romances sobre isto?

Nunca fiz, nunca fiz, e jamais pensei nisto. Isto é, nunca pensei em escrever um desenvolvente romance no qual um eu de qualquer espécie é descoberto ou feito, forjado, como se diz. Não acho. Acho que, de certa maneira, já não sei mais hoje como era minha identidade em 1941. Mas tenho pensado muito nisto. Devo declarar que, agora, acredito muito mais na verdade do que antes. Acredito muito mais na solidez da verdade. Sim, acredito que há uma verdade e que ser reconhecível.
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