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Grandes entrevistas

Rachel de Queiroz

Entrevistada no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 01/07/1991, comandado por Jorge Escoteguy, com a paticipação de Fábio Lucas, Marcos Faerman, Moacir Amâncio, Maria Alice Barroso, Jaime Martins, Caio Fernando Abreu, Miriam Goldfeder e Gilberto Mansur.

Jorge Escosteguy:

Boa noite, estamos começando mais um Roda Viva pela TV Cultura de São Paulo. A convidada do Roda Viva desta noite é a escritora Rachel de Queiroz. Rachel é cearense, tem oitenta anos e escreve desde os 19, quando foi publicado o seu livro O quinze, que mereceu o prêmio da Academia Brasileira de Letras. Foi militante do Partido Comunista, do movimento trotskista, e presa durante o regime do Estado Novo [segunda metade do primeiro período em que Getúlio Vargas atuou como presidente do Brasil, entre 1937 a 1945. Instaurou-se uma ditadura: Vargas determinou o fechamento do Congresso Nacional e a extinção dos partidos políticos]. É também cronista, jornalista e a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras. Boa noite, escritora Rachel de Queiroz. A senhora pediu antes que não a chamasse de senhora nem de dona, mas, enfim, vou ver se consigo me acostumar. Hoje [01/07/1991], infelizmente, a literatura brasileira perdeu um grande poeta e um grande cronista, Paulo Mendes Campos. O Brasil tem uma tradição de cronistas, a senhora mesma é uma cronista há muitos anos, uma cronista respeitada. A que a senhora deve essa tradição de crônica no Brasil, uma tradição de cronistas brasileiros? Porque a senhora, apesar de romancista também... foi jornalismo e crônica. De onde vem essa tradição de cronistas brasileiros – e excelentes cronistas–?

Rachel de Queiroz:

Discute-se muito isso, a origem da crônica como gênero literário, que parece que é peculiar ao Brasil. Não sei, já o Machado  fazia crônicas e é um recurso que [para] nós, ficcionistas que fazemos jornalismo, é um intermédio entre literatura e jornalismo diário. Para nós é mais confortável do que fazer o simples jornalismo político ou noticioso.  

Jorge Escosteguy:

E, ao mesmo tempo, às vezes, pode ser mais cômodo do que escrever um novo romance, um conto, que dá muito trabalho.

Rachel de Queiroz:

Pois é. E você faz aquilo em meia hora – uma hora [no caso d]os mais lentos– e salvou o dia.  

Jorge Escosteguy:

A senhora se gratifica mais como cronista ou como romancista? Como é mais reconhecida inclusive?

Rachel de Queiroz:

De modo geral, não me gratifico, não; não tenho nenhum prazer em escrever nada. Só escrevo mesmo porque é só o que sei fazer, de forma que [ser] cronista dá muito menos trabalho do que [escrever] o romance.

 

Jorge Escosteguy:

Não sente prazer em escrever?

Rachel de Queiroz:

Crônica, pelo menos, dá muito menos trabalho do que um romance, então é melhor fazer crônica. 

 

Jorge Escosteguy:

A senhora tem um ponto de vista sempre muito pessimista em relação à vida, pelas suas declarações em entrevistas.

Rachel de Queiroz:

É, realmente...  

Jorge Escosteguy:

Por que esse pessimismo?

Rachel de Queiroz:

É, porque ser pessimista é bom. [Se] Você é pessimista, quando vêm as coisas ruins, você já esperava; quando vêm as coisas boas, você tem uma surpresa agradável.  

Jorge Escosteguy:

É mais um jogo do que propriamente acreditar nas coisas ruins da vida?

Rachel de Queiroz:

É, talvez, mas a vida não é lá esse mar de rosas, não é? É bom a gente estar preparado.  

Jorge Escosteguy:

A senhora disse uma vez que a vida não é uma lição, é uma experiência da qual você não é o agente, mas a cobaia. A vida usa a gente?

Rachel de Queiroz

Pois é.  

Jorge Escosteguy:

Ela usa a senhora como escritora, como cronista?

Rachel de Queiroz:

Como ser humano, principalmente. O escritor não [se] desassocia do ser humano, então, como ser humano, ela  [a escritora] está aí nos surrando sempre.  

Jorge Escosteguy:

E isso, de certa forma, se reflete um pouco na sua obra ou a senhora tenta controlar um pouco esse pessimismo?

Rachel de Queiroz:

Talvez. Acho que na obra sai, sim. A minha sogra brinca muito, ela tem 97 anos. Diz que gosta do que escrevo, mas que sou muito baixo-astral. [risos] 

Gilberto Mansur:

Rachel, vou lhe chamar de você mesmo.

Rachel de Queiroz:

É, todo mundo me chama de você.  

Gilberto Mansur:

Então está bom, porque os ídolos da gente, nós geralmente chamamos...

Rachel de Queiroz:

Não precisa me chamar nem de doutora nem de senhora.  

Gilberto Mansur:

Pois é. Dentro dessa linha que a gente estava conversando aqui, eu li, muito tempo atrás, sobre uma posição sua, de que você não deixaria nenhuma pista para os seus biógrafos, de que você nem faria memórias nem deixaria pistas para os seus biógrafos. Num país onde as pessoas começam a escrever memórias até antes da hora, muito cedo, em que a biografia já esteve na moda e está cada vez mais na moda, você mantém esse ponto de vista, você acha que é isso mesmo? É uma verdade isso?

Rachel de Queiroz:

Mantenho, sim, e tem me custado muita resistência, porque, a começar com a minha irmã lá em casa, meus editores, meus amigos, todo mundo fica me exigindo memórias. Eu jamais... Acho que memórias é um striptease que não faço com prazer, a gente se narrar. E quem tem um instrumento de ficção para deixar, para descarregar os segredos e as frustrações ou o que seja, na ficção a gente já se diz, já se revela o mais que pode. Então, para que escrever memórias? Eu não tentaria. 

Caio Fernando Abreu:

Rachel, não a conhecia pessoalmente e tenho duas imagens suas tão contraditórias. Quando eu era criança, o meu pai comprava sempre O Cruzeiro e eu lia aquela última página que você escrevia. E me lembro até hoje de uma crônica que, na verdade, era um conto, chamada “Miss”. E o meu pai dizia assim: “Não leia essa mulher, ela é comunista”. E depois, anos mais tarde, na faculdade, já em 67, 68, eu andava com um livro seu embaixo do braço, acho que era O quinze. E um colega meu disse assim: “Não leia essa mulher, ela é uma reacionária”. [risos]

Rachel de Queiroz:

Para você ver como é.  

Caio Fernando Abreu:

Tenta juntar na minha cabeça essas duas imagens.

Rachel de Queiroz:

Pois é. Na verdade nem sou comunista nem sou reacionária, sou propriamente anarquista, sou só uma doce anarquista. É a minha posição há muitos anos.  

Caio Fernando Abreu:

E por que passou essa imagem de reacionária?

Rachel de Queiroz:

Porque essa [imagem] de reacionária foi o patrulhamento [que criou], me opus violentamente a Getúlio, a Jango, a Brizola. E então o patrulhamento toma conta da gente e faz o serviço. 

 

Caio Fernando Abreu:

Algo a ver com a revolução de 64?

Rachel de Queiroz:

64, sim, até a ascensão do Costa e Silva [durante seu governo, a ditadura no Brasil se consolidou com o fechamento do Congresso Nacional e a edção do Ato Institucional nº 5 (AI-5). A repressão policial se intensificou contra todo grupo ou foco de oposição política]. Só fui solidária com a revolução até aquele ponto, esperando uma eleição com um presidente civil.  

Caio Fernando Abreu:

Mas você apoiou os militares?

Rachel de Queiroz:

Sim, em 64 sim.  

Caio Fernando Abreu:

Por quê, Rachel?

Rachel de Queiroz:

Porque eu abominava o janguismo e ainda hoje abomino o Brizola, que representa o janguismo, o Getúlio. Era uma expressão disso tudo...  

Caio Fernando Abreu:

Mas você não tinha noção das torturas, de todo o horror que aconteceu depois?

Rachel de Queiroz:

Não, espera aí. A revolução que apoiei foi enquanto Castelo Branco era presidente [foi o primeiro presidente do regime militar instaurado pelo golpe de 1964] e ele não fez tortura nenhuma, a intenção dele era fazer eleições para um presidente civil.  

Caio Fernando Abreu:

Mas ele não conseguiu.

Rachel de Queiroz:

Não conseguiu, ele foi praticamente deposto. Fez-se aquela eleição do Costa e Silva, mas o Castelo foi praticamente deposto pelo grupo militar que era mais forte, e era o grupo reacionário do Costa e Silva.  

Caio Fernando Abreu:

Sim. E sabe-se que, quando o Castelo Branco sofreu aquele acidente em que ele morreu, ele teria estado com você.  

Rachel de Queiroz:

Ele vinha da nossa fazenda.

Caio Fernando Abreu:

E comenta-se que aquele acidente teria sido provocado, que teria sido um assassinato.  

Rachel de Queiroz:

Eu até estimo vocês me darem essa oportunidade de desmentir essa história.

Caio Fernando Abreu:

Eu gostaria.  

Rachel de Queiroz:

Porque o Castelo Branco vinha de Quixadá num aviãozinho bimotor do governo do estado, um piper [avião monomotor], se não me engano. E viajavam no avião ele, o irmão dele, o Candinho, a minha amiga Alba Frota, um major do exército que estava servindo de segurança a ele ou de adjunto, sei lá, um ajudante de ordens, o comandante do avião e o filho dele, que servia de copiloto. O menino, o copiloto, foi o único que sobreviveu. E pelo depoimento dele, nós sabemos, que eles vinham de Quixadá para Fortaleza e passavam sobre a linha da estrada, as novas linhas de eletricidade que vinha do São Francisco... As novas linhas, como se chama? De grande força, uma coisa assim.

Jorge Escosteguy:

De alta tensão.  

Rachel de Queiroz:

De alta tensão, é isso aí. E o Castelo, então, pediu ao comandante: “Comandante, eu queria tanto”... Porque tinha sido um dos grandes interesses dele na Presidência ver a construção da linha de alta tensão, da linha de distribuição maior do São Francisco. "Queria tanto passar pela linha, queria ver aqueles postes de alta tensão". O comandante ficou indeciso e o menino disse: “Papai, isso é cortar a rota dos jatos, a gente não pode passar”. O Castelo disse: “Só um pedacinho, só para atravessar, só para eu ver”. O comandante disse: “Só um bocadinho então”. No instante em que eles atravessaram a linha, vinha uma formação de três jatos e a ponta de um dos jatos pegou. De forma que o atentado seria impossível, tinham que adivinhar que o Castelo ia pedir, que o comandante não iria, depois cedeu e que o jato iria coincidir naquela hora...  

Gilberto Mansur:

Mas, Rachel, essa história nunca foi contada. Você nunca teve interesse de falar? E ficou essa versão [a do atentado].

Rachel de Queiroz:

É por isso, aproveito a oportunidade. Basta dizer que o oficial que vinha comandando o avião que derrubou o Castelo era filho de um grande amigo dele, o então tenente [Alfredo] Malan, que nunca aceitou direito ter sido o instrumento do destino para esse desastre.  

Caio Fernando Abreu:

Agora, você diz que não vai escrever suas memórias. Se eu falar demais, você me corta.

Jorge Escosteguy:

Por favor, Caio. Esteja à vontade.

 

Caio Fernando Abreu:

Porém li aqui, no material que me deram, que você teria planos de escrever um livro de memórias chamado O poder e eu. Daí deduzo que você...

Rachel de Queiroz

[interrompendo]: Jamais, jamais. É falsificado. Nunca disse isso! 

Caio Fernando Abreu:

Fiquei assustado.

Rachel de Queiroz:

Até nome já tem, imagina! Nunca tive associação nenhuma.  

Marcos Faerman:

Você, ainda nessa seqüência política aqui que foi levantada, até tem essa revelação histórica, eu não sabia que o presidente Castelo estava lá na sua fazenda. É uma coincidência notável.

Rachel de Queiroz:

Ele era meu parente, éramos amigos de muitos anos. A Argentina, mulher dele, o meu marido era grande amigo dele. Aliás a amizade dele, como sou mais falada e mais conhecida, pensava-se que a amizade era comigo e, realmente, a amizade maior era com o meu marido, o meu marido médico, Oyama de Macedo. Ele era muito amigo do presidente.  

Marcos Faerman:

Ia lhe fazer pergunta sobre trotskismo e sobre uma pessoa que amo profundamente, o Lívio Xavier [(1900-1988) jornalista, crítico literário e importante tradutor brasileiro, fundador da Liga Comunista Internacionalista, que era ligada à Oposição de Esquerda Internacional, dirigida por Leon Trótski], que sei que a senhora conheceu. Eu adorava o Lívio. Agora, queria perguntar... aqui vem o repórter. Que tipo de coisa que o Castelo falou nesse último dia, no último momento da vida dele, como é que foi?

Rachel de Queiroz:

Ele andava, depois da visita dele... Depois que ele entregou o poder, foi à França, teve uma famosa conferência com [Charles] De Gaulle [(1890-1970) general e estadista francês, governou a França de 1958 a 1969]. Ele vinha muito animado, porque o De Gaulle estava entusiasmado com o que eles tinham feito aqui e perguntando como é que eles tinham podido fazer... E ele contava esse diálogo dele com o De Gaulle. 

 

Marcos Faerman:

Então o De Gaulle queria aprender a dar golpe? [risos]

Rachel de Queiroz:

Ou pelo menos se manter no poder depois do golpe.  

Marcos Faerman:

Rachel, essa sua passagem pelo trotskismo... Alguns intelectuais que militavam no PC não suportaram aquela linha justa do PC e se voltaram para o trotskismo. Um deles [era] o Mário Pedrosa [(1900-1981)], uma belíssima figura, um crítico, um pensador da arte; a Nise da Silveira...

Rachel de Queiroz:

A Nise não era trotskista, a Nise ainda hoje é stalinista. É do grupo que se chama, no Rio, “Ai, que saudades do meu mundo!” 

 

Marcos Faerman:

A Nise da Silveira, pelo menos nas vezes em que conversei [com ela], me falou do profundo amor dela pelo [Leon] Trótski e ela é ligada a esse grupo todo...

Rachel de Queiroz:

A Nise? Não. Mas não! Isso é surpresa para mim, uma grande novidade, porque ela nunca foi ligada a Mário [Pedrosa (1900-1981) crítico de arte, jornalista e professor. Como militante político, iniciou a crítica de arte moderna brasileira e a Oposição de Esquerda Internacional no Brasil, em oposição ao stalinismo], nem a Lívio, nem ao Pedroso Horta, nem ao pessoal, nem a Aristides Lobo [(1905-1968) tradutor, jornalista, militante comunista. Descreveu a si mesmo como o iniciador da luta contra o stalinismo no Brasil e como o fundador, em 1931, da Oposição de Esquerda e, em seguida, da Liga Comunista Internacionalista]...  

Caio Fernando Abreu:

Dentro de você, o que liga Trótski a Castelo Branco?

Rachel de Queiroz:

Nada. Não tinham nada em comum. 

Caio Fernando Abreu:

Por que essa mudança tão radical?

Rachel de Queiroz:

A minha [história] com os trotskistas aqui em São Paulo foi quando rompi com o partido em 33 – isso faz sesenta anos quase –,  quando rompi com o partido e vim para São Paulo. O Lívio era amigo velho de família, sou amiga íntima das irmãs dele, somos amigas desde que nascemos eu e as irmãs dele. E o Lívio era uma legenda na família, aquele homem de talento, com aquela doença terrível, superou aquilo tudo, de forma que o Lívio era quase um irmão para mim. E, quando vim para cá, viemos morar aqui em São Paulo, fui acolhida pelo Lívio, que já tinha o grupo trotskista dele organizado já havia algum tempo. Eles já estavam fazendo a tradução das memórias do Trótski. Ele, Mário Pedrosa, Aristides Lobo, Plínio [Gomes de] Mello [(1900-) jornalista, sindicalista, ex-deputado e militante socialista, escreveu, com Mário Pedrosa, em 1978, uma carta endereçada a Lula, então líder metalúrgico, instigando-o a formar um partido de “consciência proletária”] eram os da tradução. E colaborei nessa tradução com eles e me aproximei ideologicamente deles. Eu brincava que eles eram os dirigentes e eu era a massa, porque ainda não estava devidamente instruída. E, realmente, até matarem o camarada Trotski, fui trotskista. Depois, me tomei de um profundo desgosto.  

Marcos Faerman:

Houve uma prisão também aí?

Rachel de Queiroz:

Prendiam a gente de vez em quando lá. [risos] 

Jorge Escosteguy:

Rachel, só aproveitando essa questão política levantada pelos dois, o Jaime Souza Marques, aqui de São Paulo, pergunta justamente se você não foi muito patrulhada pelos intelectuais, escritores, pelas suas ligações com Castelo Branco, os militares, enfim.

Rachel de Queiroz:

Já estou tão acostumada a ser patrulhada por stalinistas, que já até cansei, já deixei de me interessar. Tudo que fiz, eles eram contra, de forma que, quando eu era anti-Getúlio, eles eram getulistas, aquela adesão solene do [Luis Carlos] Prestes [(1898– 1990) fundador do Partido Comunista Brasileiro, liderou a famosa Coluna Prestes, durante os anos de 1910 a 1914. Junto com a Aliança Nacional Libertadora, comandou a Intentona Comunista (1935), que pretendia derrubar o presidente Vargas. Ver entrevista de Prestes no Roda Viva] ao Getúlio. Depois que o Getúlio mandou matar a mulher dele [referindo-se à Olga Benario, judia alemã, militante comunista que foi entregue, grávida de sete meses, a Hitler por Getúlio Vargas. Deportada para a Alemanha, ela teve sua primeira e única filha na prisão. Em fevereiro de 1942, foi enviada a um campo de extermínio e morreu numa câmara de gás], ele foi para os palanques com o Getúlio [em 1945, depois de ficar nove anos preso, Prestes, então secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, durante um comício subiu ao palanque ao lado de Vargas, em apoio a sua candidatura à Presidência]. De forma que quem era contra, eles patrulhavam. Depois, [houve] todas as diferenças, a guerra, tudo isso, de forma que eles continuaram me patrulhando e acho que agora me esqueceram.  

Jayme Martins:

Rachel, você costuma dizer que passaria muito bem sem literatura...

Rachel de Queiroz:

Sim.  

Jayme Martins:

...sem fazer literatura, [diz] que não gosta dos seus livros, que não lê com satisfação uma página já escrita.

Rachel de Queiroz:

Não releio

  

Jayme Martins:

Mas, ainda hoje, durante a Bienal, a Lygia Fagundes [Telles. Uma das maiores escritoras brasileiras, conhecida por romances, como Ciranda de pedra e As meninas, e volumes de contos como Antes do baile verde e A noite escura e mais eu. Ver entrevista do Roda Viva com a escritora)] me dizia que você é uma mulher de amor ardente. Então gostaria de saber, assim...

Rachel de Queiroz:

Sou uma mulher de quê?  

Jayme Martins:

De amor ardente.

Rachel de Queiroz:

Ah! [sorrindo] 

Jayme Martins:

Em que outros aspectos da sua vida esse amor ardente se pronuncia, se manifesta – além do seu amor pelo Oyama de Macedo, é claro? O que você considera mais importante e a que você se apega com maior profundidade na vida?

Rachel de Queiroz:

Olha, gosto do ser humano, gosto da humanidade, gosto dos meus próximos e gosto dos distantes. Esses moços de Angola, só porque são de Angola, estão aqui estudando, já têm uma grande simpatia da minha parte. Qualquer dia desses, vou lá em Angola ver o que vocês estão fazendo de novo agora. De forma que, realmente, gosto é do ser humano, gosto de gente, gosto das pessoas. O meu amor ardente vai principalmente a isso. E esse negócio de Brasil também me toca muito. E, dentro do Brasil, o Ceará e, dentro do Ceará, o Quixadá. É a lista dos meus amores ardentes. 

Miriam Goldfeder:

Rachel, você se considera uma escritora engajada? Você tem essa trajetória um pouco...

Rachel de Queiroz:

Perdão, não sou uma escritora engajada. Nunca fui. 

Miriam Goldfeder:

E para que serve a literatura?

Rachel de Queiroz:

Acho que literatura serve para ser literatura. Não sou engajada. Acho, pelo contrário, que a obra de arte engajada se abastarda; o escritor não tem direito de ser engajado. Se ele tem aquela convicção e se ele dá um testemunho do que viu e do que sente, muito bem. Mas se faz uma literatura com visgo de propaganda, engajado numa ideologia, porque é a ideologia dele, então ele ajeita a obra de arte dele a serviço daquela ideologia, não respeito essa obra de arte e não respeito esse estilo do artista. Naturalmente, se o Picasso fez Guernica é porque a Guernica não era uma obra engajada, era um testemunho terrível daquele acontecimento também terrível, então isso... está tudo bem. Mas, se o Picasso começasse a pintar retratinho do [fulano] porque o sujeito era libertador, foi libertário, dentro de qualquer ideologia, a serviço de qualquer ideologia, sou contra. Acho que a gente tem que dar o testemunho fiel do seu tempo e da sua gente e as conclusões que sejam tiradas. 

Miriam Goldfeder:

Nesse tempo todo, como é que evoluiu a sua produção literária? Porque você... Independentemente das suas variações de posição política, que são compreensíveis, você poderia explicar um pouco a sua história literária?

Rachel de Queiroz:

Justamente a minha própria história literária justifica essa minha posição, nunca fiz um livro engajado. O meu cenário é o Nordeste, o único livro que escrevi que não se passou no Nordeste foi O galo de ouro, que era num subnordeste nesse tempo, o Rio de Janeiro, a Ilha do Governador, que era muito parecida com o Nordeste. Eu morava lá, foi um livro de encomenda, mas que fiz com carinho e com interesse. E nunca saí do Nordeste. E a isso tenho sido fiel, nunca me contradisse, creio. Não defendo absolutamente a validade literária da minha obra. Agora, as minhas posições, em relação ao meu testemunho, defendo com certa veemência.  

Jorge Escosteguy:

Rachel, antes de passar para o Fábio, já que a Miriam levantou a questão, o Nelson Rodrigues, aqui de São Paulo, pergunta o que levou você a escrever o seu primeiro livro.

Rachel de Queiroz:

O que leva a gente a escrever o primeiro livro? Não sei. Na verdade, tinha aquilo tudo, nasci na terra da seca. A seca de 1915, eu tinha três anos de idade quando ocorreu e a tradição oral era muito forte. O que tinha lido de literatura sobre seca não era satisfatório para mim e quis dar uma espécie de testemunho. E, com essa petulância da juventude, eu me meti a escrever o romance.  

Fábio Lucas:

Rachel, o seu nome geralmente é incluído nas histórias da literatura dentro da designação geral de romance do Nordeste. Isso é muito interessante porque nós sabemos que o romance do Nordeste foi a primeira literatura de exportação que o Brasil teve. Na verdade, os romancistas nordestinos foram influir no neo-realismo português e através de canais secretos também chegaram até as colônias portuguesas na África. Agora, tudo isso pelo alto conteúdo político da literatura nordestina daquele tempo. E você conviveu com pessoas como Graciliano Ramos, como Jorge Amado, Amando Fontes, José Lins do Rego, enfim, uma geração que influenciou realmente escritores portugueses. Queria o seu depoimento sobre esses escritores, quer dizer: o que você acha da literatura de Graciliano, Jorge Amado, José Lins do Rego? E outra coisa que gostaria de que você explicasse é se esses são os seus escritores preferidos. Você tem outros escritores no Brasil que sejam da sua preferência?

[...]: Que pergunta! [diz alguém rindo] 

Rachel de Queiroz:

 Tenho. Vamos por partes. A literatura nordestina teve a sorte de naquele período aparecerem grandes escritores. Eles são importantes não por causa do tema, mas porque eles eram constitucionalmente grandes escritores. O Graciliano, eu o ponho logo depois do Machado de Assis ou ao pé do Machado. Considero o Graciliano um dos maiores escritores que já escreveram no Brasil. O José Lins era um grande contador de história, um grande narrador, era um grande escritor. Jorge Amado, não preciso dizer, a reputação dele é internacional, ele fez um nome internacional. Amando, que era do grupo mais modesto, José Américo eram todos grandes escritores que, por coincidência, nasceram naquela região e escreveram naquele tempo. Aliás, essa coisa vem sempre por ondas, você já reparou?

Fábio Lucas:

Você tinha preferência por algum desses escritores?  

Rachel de Queiroz:

Era a vida pessoal deles todos e acompanhei a obra de um por um, de forma que até é difícil para mim marcar preferências, a não ser Graciliano, que nós todos tínhamos como mestre. Era o nosso mestre, o Graciliano - o velho Graça -, era aquela unanimidade em torno dele.

Jayme Martins:               

Por falar no velho Graça, o Ricardo Ramos, filho dele, me mandou fazer a seguinte pergunta: “O quinze já fez 60 anos, inaugurou a temática da seca e das migrações rurais, a seguir, desdobrada. Hoje, escritora pioneira e chegada a fase do retrospecto, como você vê o nosso Nordeste ainda seco e retirante?  

Rachel de Queiroz:

O Nordeste mudou. De qualquer maneira, o Nordeste de O quinze, principalmente o Nordeste da Vidas Secas mudou. Eletrificou-se, você tem eletricidade, quer dizer, você tem capacidade para irrigar, já há uma rede de irrigação respeitável pelo Nordeste, já não há mais o retirante na rua. Há o imigrante, que já não vem mais nem de caminhão, vem de ônibus, já foi um progresso. Agora, o problema crucial, que é mesmo a seca, isso ainda não foi resolvido e acho que não foi resolvido ainda em lugar nenhum. A África está se acabando de seca.

Caio Fernando Abreu:

Rachel, eu queria complementar a pergunta do Fábio, de que gostei muito, sobre os seus escritores preferidos. Você tem contato com a literatura brasileira feita dos anos 50 ou 60 para cá?  

Rachel de Queiroz:

Claro, é a minha profissão.

Caio Fernando Abreu:

Eu queria saber de quem você gosta dos escritores mais novos.  

Rachel de Queiroz:

Gosto, por exemplo, de dona Maria Alice Barroso, muito.

Caio Fernando Abreu:

Perfeito.  

Rachel de Queiroz:

Gosto, por exemplo, de Ricardo Ramos, muito. Gosto desses novos escritores que têm entrado, que têm aparecido por aí. É difícil citar uns sem citar todos, mas há uma fauna aí muito boa.

Caio Fernando Abreu:

Você acha que a literatura brasileira atualmente está muito desprezada? 

 

Rachel de Queiroz:

Não. Por quê? Essa coisa de... É uma questão tão subjetiva você gostar ou não gostar de um autor e... Por exemplo, o Moacyr Scliar [(1937-2011) médico e escritor da literatura brasileira contemporânea, autor de romances,  contos, ensaios e artigos, com obra  traduzida em vários idiomas. Membro da Academia Brasileira de Letras, escreve também crônicas e críticas para jornais e revistas], no Rio Grande do Sul, está fazendo uma obra admirável.

Gilberto Mansur:

Mas, Rachel, a literatura mais no topo do romance do Nordeste não tinha mais presença, mais espaço, mídia?  

Rachel de Queiroz:

Porque o Brasil era menor.

Caio Fernando Abreu:

Os críticos não eram melhores?  

Rachel de Queiroz:

Havia uma crítica profissional que não há mais hoje. Hoje eles dão noticiazinhas, em geral encomendadas pelas editoras. A figura do crítico desapareceu, não sei por quê. Talvez seja a evolução dos estudos literários, aquela crítica era impressionista, era a crítica do "gostei, não gostei", podia ser formulada em boas frases, mas eram, na verdade... Não sei se são os novos estudos de literatura que influíram na liquidação do crítico pontificando...

Maria Alice Barroso:

Perdão. Minha primeira intervenção. [risos] Peço passagem... 

Jorge Escosteguy:

Maria Alice Barroso, por favor.

Maria Alice Barroso:

Você acha, Rachel, que nós tenhamos agora, por exemplo, um crítico da categoria de Álvaro Lins?  

Caio Fernando Abreu:

Eu estava pensando nisso.

Rachel de Queiroz:

Não, não temos, é o que digo, a figura do crítico... do Alceu, do Álvaro, do Carpeaux, que nós citamos agora. Essas figuras desapareceram, não sei, talvez fossem dinossauros que tinham que desaparecer, mas tinham grande peso e grande importância. 

Caio Fernando Abreu:

Mas acho que a dignidade nunca tem que desaparecer.

Rachel de Queiroz:

Mas não é a dignidade. Acho que é o estilo. É uma questão de moda literária e de estilo, desapareceu o crítico. 

 

Caio Fernando Abreu:

que vejo hoje em dia nos jornais, pega-se um livro... Trabalhei em jornal, sou jornalista também. Dizem assim: “Quem quer baixar o pau nesse cara?” [risos] Aí um garoto qualquer de vinte anos vai lá e baixa o pau.

Rachel de Queiroz:

É o instituto do patrulhamento.  

Marcos Faerman:

Acho que um problema que acontece com a crítica, que é bem diferente, por exemplo, desse período dos grandes mestres, né, Agripino Grieco, Álvaro Lins, Alceu Amoroso Lima, o deslumbrante Otto Maria Carpeaux [(1900-1978) um dos mais renomados críticos literários brasileiros, cuja obra é imprescindível para o estudo da literatura ocidental. Com o golpe de 64, que depôs Jango, Carpeaux passou a combater o regime militar, deixando a crítica literária em segundo plano], mestres que eram pensadores da literatura. Agora, não vejo isso que o Caio fala, assim, acho que um pouco levianamente...

Caio Fernando Abreu:

Nunca sou leviano.  

Marcos Faerman:

Essa colocação do Caio...

Jorge Escosteguy:

A pergunta, por favor, Marcos.  

Marcos Faerman:

Vou fazer a pergunta. Acho que a questão que se coloca – não sei como é que você vê isso – é o chamado crítico literário da universidade. O grande contraponto que existe é entre esse tipo de crítico, como o Otto Maria Carpeaux, e essa crítica acadêmica que inundou os jornais. Não existe mais o rodapé literário, o que existe muito é essa reflexão universitária. Como é que você vê essa produção acadêmica universitária em relação à literatura? Você, como escritora, como é que vê a produção da universidade?

Rachel de Queiroz:

Olha, isso não chega até nós, os profissionais do livro, de escrever romance... Não é verdade, Maria Alice? Na verdade, isso vive dentro da universidade e se esgota entre os professores. Poucos têm acesso à imprensa, eles fazem teses e eles...  

Maria Alice Barroso:

Acho que o jornal não dá espaço, Rachel. Nem para o crítico acadêmico.

Rachel de Queiroz:

Não há mais. Desapareceu essa figura do crítico. Um dos últimos que ainda tentou isso foi o Melchior [de Vogue, diplomata e crítico literário francês do século XIX], mas assim mesmo extrapolando para a sociologia, para a antropologia.  

Caio Fernando Abreu:

Rachel, continuando a ser leviano, [risos] você acha que isso que está se passando em relação à crítica literária não está se passando em todos os níveis no Brasil? Como diz o Darcy Ribeiro, não é um processo de africanização – com o perdão [do termo], porque o Brasil está passando pela mesma coisa –, de sucateamento, como diz o Moacir Amâncio, de vulgarização de tudo?

Rachel de Queiroz:

Não sou tão pessimista. Acho que as coisas estão difíceis, o mundo inteiro está atravessando uma fase difícil, o Brasil está atravessando uma fase dificílima e isso se reflete em todos os níveis da cultura, que é a primeira afetada por essas crises. Mas eu, que sou pessimista profissional, acho que vamos sair dessa. Há muito talento por aí, há muito interesse por artes, por letras, por estudos, de forma que não estou pessimista nisso, não. Essa meninada, você vê nessa Bienal Nestlé, há muito interesse da meninada, a paixão com que eles vêem, com que eles procuram saber, se informar, conhecer a gente, tocar na gente para saber que é mesmo aquela pessoa. De forma que isso tudo mostra que há interesse e esses meninos não vão ficar parados nem vão ficar calados.  

Jorge Escosteguy:

Por favor, um de cada vez. O Moacir Amâncio, só para completar a roda, o único que ainda não fez perguntas. E em seguida o Fábio Lucas.

Moacir Amâncio:

A respeito dos críticos, gostaria de saber como é essa relação sua, da escritora, com os críticos daquele tempo e com o que é publicado hoje nos jornais e qual a utilidade que eles podem ter para o escritor. 

Rachel de Queiroz:

Olha, antigamente um artigo do Tristão de Atayde, Alceu Amoroso Lima, lançava um escritor. Um artigo do Álvaro Lins dava um salto na reputação de um escritor. Mas, talvez porque a sociedade brasileira fosse mais provinciana, tinha aqueles gurus. Hoje diluiu-se tanto essa autoridade do crítico, que, realmente, se o escritor quer sair do anonimato, tem que ter uma boa campanha publicitária.

Jorge Escosteguy:

A literatura está sem gurus hoje?  

Rachel de Queiroz:

Praticamente. Hoje as grandes campanhas publicitárias é que fazem um autor desconhecido de repente arrebentar.

Jorge Escosteguy

: O guru dos escritores hoje é a Nestlé?  

Moacir Amâncio:

A qualidade não tem importância?

Rachel de Queiroz:

A qualidade tem importância, porque é muito difícil... É aquela história: você pode propor uma reputação a várias pessoas ao mesmo tempo, mas a todo mundo, a todo tempo, não é possível. Então um escritor que não tem valor mesmo se desmoraliza com a sua própria obra. O leitor, em geral, não é burro nem é analfabeto. O leitor que compra um livro para ler é porque vai gostar ou desgostar daquele livro conscientemente. Está muito caro o livro para comprar o livro gratuitamente, só porque estão dizendo.  

 

Fábio Lucas:

Rachel, o seu ingresso na Academia Brasileira foi um ingresso simbólico, porque, afinal, a mulher passou a ter acesso àquela instituição. Agora, pergunto: por que a Academia não exerce uma função cultural maior no Brasil, por que não publica obras? Por exemplo, obra dos ex-acadêmicos que entraram, ingressaram ali buscando imortalidade? A imortalidade é garantida pela publicação das obras.

Rachel de Queiroz:

A Academia tem uma coleção chamada Afrânio Peixoto que, no momento, é dirigida pelo Arnaldo Niskier, e que publica quase que mensalmente livros que estão fora do comércio, porque a Academia é uma instituição particular que não tem função pública nenhuma. Na verdade, ela é um clube de escritores que vive com os seus próprios meios, que não depende de nenhuma... As autoridades, o governo, o poder não têm a menor ligação com a Academia, de forma que... 

Fábio Lucas:

Mas ela teve concessões, ela teve doações

Rachel de Queiroz:

Não. Aquele prédio, por exemplo, foi [feita] a doação do terreno só. Porque o prédio foi construído pela Ecisa [Engenharia, Comércio e Indústria S/A], que se pagou com os aluguéis dos diferentes andares; vai entregando os andares à medida que se paga. A Academia não tem relações diretas com o poder e o poder nunca teve influência na Academia.  

Jorge Escosteguy:

Agora, a Vera Lúcia Lobo, da cidade de Araraquara, no interior de São Paulo, pergunta - já que se fala na Academia Brasileira de Letras - por que ela não escolhe sempre realmente escritores e muitas vezes se deixa influenciar por personagens da política?

Rachel de Queiroz:

Bem, esse negócio... Ela não se deixa impressionar, pelo contrário, quando o...  

Caio Fernando Abreu:

Como é que uma figura como José Sarney, por exemplo, do ponto de vista literário, entrou para a Academia?

Rachel de Queiroz:

Entrou para a Academia porque escreveu um livro muito bom chamado Norte das águas. Ele era um simples político, não era governador nem presidente nem coisa nenhuma e entrou muito merecido, porque o Norte das águas é um livro muito bom. Ele sofreu uma campanha difamatória, como todo político – o problema é dele, não estou lamentando nem o estou defendendo –, mas ele entrou por escritor que o era e sem nenhuma força política no momento em que entrou na Academia.  

Caio Fernando Abreu:

Ele é considerado pelos acadêmicos um bom escritor?

Rachel de Queiroz:

Leia o livro dele, aquele livro dele de crônicas, é um bom livro.  

Jayme Martins:

Rachel, você já disse que depois de 60 anos dando entrevistas, a sua história fica parecendo...

Jorge Escosteguy:

Desculpe-me interromper, só para a pergunta da telespectadora não ficar pela metade. Você acha que não há influência política na escolha dos acadêmicos ao longo da história da Academia?  

Rachel de Queiroz:

Em toda parte há influência política, mas é muito indireta e, em geral, nós recebemos muito mal. O Eduardo Portela, por exemplo, quando se candidatou e era ministro, nós dissemos a ele: “Olha, você é nosso velho amigo, mas ninguém vai votar em você, porque você é ministro”. E uma das causas do Eduardo deixar o ministério é que ele preferiu entrar para a Academia, que era para toda a vida, a “estar ministro”, como ele dizia.

Jorge Escosteguy: Ser imortal a "estar ministro"?  

Rachel de Queiroz:

O [Paulo] Brossard, coitado! Ele tentou entrar quando ministro, não encontrou a menor receptividade. Agora que ele está no Supremo [Tribunal Federal] – e a Academia sempre teve simpatia pelo Supremo –, a gente sempre tem um ministro do Supremo lá na Academia.

Caio Fernando Abreu:

Aí é uma simpatia pelo poder, não pela literatura.  

Rachel de Queiroz:

Mas o Supremo é um poder muito, digamos..

[...]:  Supra? 

Caio Fernando Abreu:

Espiritual.

Rachel de Queiroz:

Superior... É o Supremo, não é? Ele não tem ação política, ele não nomeia, não dá dinheiro, não nomeia ninguém. 

 

Jayme Martins:

Rachel, você já disse, depois de 60 anos dando entrevistas, a sua história fica parecendo aquele samba de uma nota só. Mas, nesse fim de semana, relendo muitas dessas entrevistas, achei uma série de incoerências e contradições. Por exemplo, o seu primeiro artigo aparecido na imprensa de Fortaleza, com o pseudônimo de Rita Queluz, aos 17 anos, desancava um concurso que se realizava lá para a escolha da rainha dos estudantes.

Rachel de Queiroz:

E três anos depois... 

Jayme Martins:

Três anos depois, você era eleita a rainha dos estudantes.

Rachel de Queiroz:

Eu não desancava, dizia brincadeiras. 

 

Jayme Martins:

Em princípios da década de 30, a jovem Rachel de Queiroz que se engajava no Partido Comunista para botar abaixo o poder instituído, se proclamou ainda agora, há pouco, anarquista. No entanto, depois de cinquentona, tem aí uma série de namoros e aproximações com o poder.

Rachel de Queiroz:

Quais? Quais? 

Jayme Martins:

Acabou, inclusive, representando o poder brasileiro junto às Nações Unidas.

Rachel de Queiroz:

Bem, aquilo era o Brasil, não era o poder. Era o Brasil. 

Jayme Martins:

Você já disse que jamais escreveria um livro de memórias, no entanto, se enfeixarmos aí muitas de suas crônicas num volume, daria um respeitável livro de memórias. A senhora já disse que jamais iria para uma tarde de autógrafos, porque se sentiria como um bode numa canoa, no entanto hoje a vi distribuindo autógrafos para uma legião de jovens que a procuravam na Bienal Nestlé.

Rachel de Queiroz:

Mas acho...  

Jayme Martins:

Deixe-me acabar.

Rachel de Queiroz:

Sou contra você promover uma tarde de autógrafos para os seus amigos irem comprar seus livros.  

Jayme Martins:

A senhora me disse outro dia que jamais apareceria num programa como esse, porque parece, assim, uma metralhadora giratória.

  

Rachel de Queiroz:

E não é?

Jayme Martins:

Ou então...  

Rachel de Queiroz:

Estou me sentindo num [...].

Jayme Martins:

No entanto, a senhora aqui está novamente se contradizendo como um bode numa canoa. Como é que se explicam todas essas incoerências e contradições?  

Rachel de Queiroz:

Pergunte ao Shakespeare, ele que define mulher como “inconsistência, teu nome é mulher” [na verdade, o príncipe  de Elsinor, Hamlet, desgostoso com o casamento da mãe com seu tio, disse "Fragilidade, teu nome é mulher!", generalizando, estendendo o caráter da mãe para todo o gênero feminino] coisa parecida assim. [risos]

Marcos Faerman:

Rachel, aos dezoito anos de idade, você escreveu um belíssimo livro. Quais eram as suas paixões literárias adolescentes, as suas primeiras leituras? Porque parece que você sempre fala com o maior encantamento e paixão da biblioteca que havia na sua casa, e até tive vontade de ir lá olhar aqueles livros.  

Rachel de Queiroz:

Ainda existem.

Marcos Faerman:

Como era essa biblioteca?  

Rachel de Queiroz:

Mamãe era uma grande leitora. A dona da biblioteca era ela. Ela era muito dos autores franceses, [Honoré de] Balzac [(1799-1850) um dos maiores nomes da literatura mundial. Sua obra mais conhecida, A comédia humana, retrata a realidade da vida burguesa da França de sua época], [Gustave] Flaubert. Eles eram muito ecianos lá em casa: do Eça de Queiroz. O Machado era um ídolo, um deus. Mamãe era muito bem orientada literariamente. Esses modernos que iam saindo todos, aqueles que estavam na moda, os americanos traduzidos, porque lá em casa eles não liam inglês. Liam francês, espanhol, português. Era o tempo do francês, não é? As pessoas de cultura sabiam francês. O inglês veio depois, com a guerra, a Segunda Guerra. De forma que era muito rica, muito cheia a biblioteca de mamãe, principalmente de autores europeus. O Thomas Mann era uma das paixões dela.

Maria Alice Barroso:

Rachel, e aí começou o seu interesse ou a sua possibilidade de se tornar tradutora, já com conhecimento de línguas?  

Rachel de Queiroz:

Tradutora foi uma questão de subsistência. Eu já traduzia do inglês e o francês era praticamente a minha segunda língua, porque me criei em colégio de feiras francesas.

Gilberto Mansur:

Rachel, qual é a diferença entre escrever crônicas naquele tempo para a revista O Cruzeiro, que já foi citada aqui, a última página, e as crônicas de hoje no Estadão? Desde o assunto do mundo que a cerca, dos temas que você vai buscar até o seu espírito, o seu estado de espírito?  

Rachel de Queiroz:

O cronista em geral é uma testemunha da época, do momento, é muito circunstancial. E a gente sempre tem uma pitada de política na crônica ou pelo menos uma brincadeira. A crônica é um gênero extremamente elástico, de forma que vai se adaptando muito à época. Aquilo que escrevi em 1940 deve ser bastante diferente do que estou escrevendo em 90, mas a gente muda, envelhece, aprende, apanha, tudo isso se reflete no que escreve, é um espelho de si mesmo.

Gilberto Mansur:

E o Brasil melhorou ou piorou?  

Rachel de Queiroz:

Olha, o Brasil cresceu.

Gilberto Mansur:

O assunto, as pessoas? 

Rachel de Queiroz:

Não, não melhorou nem piorou. As pessoas não mudam tão depressa nem mudam tanto. Mudam as paisagens, as chaminés, as fábricas. Eu estava lembrando, quando entrei aqui, quando vim a primeira vez a São Paulo, em 31, chamava-se a “cidade das mil chaminés”. Não havia ecologia nesse tempo e chaminé era solta por aí.  

Miriam Goldfeder:

Rachel, você já disse várias vezes que os jornalistas sempre repetem as mesmas perguntas. Qual é a pergunta que você gostaria de que lhe fizessem e qual seria essa resposta que você nunca deu?

Rachel de Queiroz:

Rachel, você está querendo ir embora daqui agora? [risos] 

Gilberto Mansur:

E a resposta? [risos]

Jorge Escosteguy:

Ainda nós temos mais uns 50 minutos pela frente.  

Jayme Martins:

Uma pergunta mandada pelo Ricardo Ramos. [lendo a pergunta] “Como uma das grandes figuras do romance de 30, você acha que o ciclo terminou? Não digo em termos de motivação, pois a terra, o homem e a sua condição dramática estão lá. Mas há algum projeto literário pessoal voltado para o Nordeste?"

Rachel de Queiroz:

Bem, que eu saiba quase todos já morremos, restam eu e Jorge [Amado] daquela onda de 30, de forma que ou ele ou eu, porque o grande, dentre nós, sobrevivente que era Adonias Filho [(1915-1990) jornalista, crítico literário, ensaísta e romancista brasileiro] acabou de morrer para grande tristeza pessoal minha, que perdi ali um irmão muito querido. Adonias foi meu amigo durante mais de 50 anos, meu confidente, meu amigo. Tínhamos brigas terríveis em matéria de política, mas a amizade e a fraternidade eram muito grandes. E ele era... Considero o Adonias não um dos romancistas baianos, mas o principal romancista baiano, porque ele não fez concessões ao pitoresco, ao folclórico. Ele é escritor de carne e osso puro e um livro como As velhas, um livro forte, são livros imortais, eu considero. De forma que morreu o Adonias, ficamos Jorge [Amado], eu, que somos os remanescentes, ainda agarrados ao velho osso, ainda agarrados ao Nordeste. Não creio que a gente saia dessa. Agora, tenho a teoria de que esses movimentos literários vêm por ondas. Parece que nasce uma porção de gente capaz, interessada em fazer determinado tipo de literatura naquele lugar, naquela época, depois se muda para o Rio Grande do Sul, muda para São Paulo, muda para a Bahia. E são como ciclos, não explico, mas apenas observo o fato. Lembram-se dos grandes poetas românticos, como foi uma geração aqui no Brasil, morria tudo com vinte e poucos anos, não é? São ciclos, são gerações que nascem assim, tenho essa impressão.  

Fábio Lucas:

Há uma estudiosa aqui em São Paulo, Cristina Ferreira Pinto, que fez um livro [O Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros] sobre as personagens femininas na literatura brasileira, principalmente a formação, os livros de aprendizagem. E ela usou como exemplo a Lúcia Miguel Pereira [(1901-1959) crítica literária, romancista, tradutora, autora de livros infantis e biógrafa de autores como Gonçalves Dias e Machado de Assis], o seu livro, As três Marias, e as obras de Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector [(1920-1977) ucraniana naturalizada brasileira, jornalista e uma das escritoras mais intrigantes e ousadas da literatura brasileira moderna]. E nas conclusões, ela acha que, no caso de Lygia e de Clarice, o drama da mulher ali retratado é mais autêntico pelo fato de que as protagonistas rejeitam os modelos patriarcais de comportamento, enquanto no seu livro e no da Lúcia Miguel Pereira ainda há uma espécie de determinação, de desesperança no final do destino de cada personagem. Ou seja, uma punição pela tentativa de elas quererem se tornar independentes. Ela não recusa o seu trabalho, mas, na verdade, acha que o modelo adotado pelas duas primeiras autoras era mais concernente ao envolvimento cultural daquela época. A mulher não tinha ainda condições de se afirmar plenamente. E portanto, na medida em que procurou certa independência, as personagens também foram destinadas a um final de desesperança e uma certa atitude de passividade ou de crescimento regressivo a partir de certo momento da ficção. Você concorda com essa divisão entre as quatro grandes autoras brasileiras que iniciaram essa perspectiva, que é a análise da formação da personagem feminina em nossa ficção?

Rachel de Queiroz:

Acho... Primeiro, ainda não vi esse livro, mas estou achando as observações muito boas. No meu caso, é o meu eterno baixo-astral, como diz a minha sogra. As minhas personagens sempre são para baixo realmente. A vida eu acho que ensina surrando... Não sou uma pessoa que... Nunca acredito em final feliz, nunca vi final feliz para nada.  

Fábio Lucas:

Porque ela acha, por exemplo, que o seu feminismo tem muito do modelo patriarcal.

Rachel de Queiroz:

Mas nunca fui feminista. Em primeiro lugar, nunca fui feminista.  

Fábio Lucas:

Justamente por isso.

Rachel de Queiroz:

Não sou feminista. Acho que a sociedade tem que crescer em conjunto. A associação mulher e homem é muito boa e acho um grande erro combater o homem. Aquela brincadeira que a gente diz, “que o homem foi feito para servir a mulher”... foi mesmo [risos], de forma que nunca fui feminista, sempre discordei das feministas. E como acho que a condição humana é uma condição de sofrimento e de decepção e que a idade só traz amarguras e renúncias e conformismo, então as minhas mulheres, como os meus homens também... Só que me dedico mais a histórias femininas, na verdade, os meus personagens principais são sempre mulheres. 

 

Caio Fernando Abreu:

Mas, Rachel, se você pensa que a vida é uma coisa tão amarga - e não concordo -, como é que você vê a morte?

Rachel de Queiroz:

A morte é a grande companheira, é esperada, tomara que já chegue. 

 

Gilberto Mansur:

Rachel, você não dá impressão de viver, de ser um ser humano de baixo-astral, acho que você joga isso na sua literatura.

Rachel de Queiroz:

É por causa dessa minha cara redonda, todo mundo pensa que sou alegre. [risos] 

Jorge Escosteguy:

Aliás, a Yolanda Juliano, aqui de São Paulo, inclusive, pergunta qual é a receita da sua jovialidade aos 80 anos, apesar de todo o seu baixo-astral.

Rachel de Queiroz:

Pois é. É ser pessimista, é ter baixo-astral, não ter decepções.  

Jorge Escosteguy:

É o baixo-astral que mantém a jovialidade?

Rachel de Queiroz:

Não tenho decepções

 

Jorge Escosteguy:

Voltamos com o Roda Viva, que hoje está entrevistando a escritora Rachel de Queiroz. Rachel, no primeiro bloco a gente falou muito sobre a Academia, você defendeu a Academia, eu queria relembrar algumas coisas. Você foi a primeira mulher a entrar na Academia. Como é entrar na Academia, ser a primeira mulher a entrar na Academia? Foi difícil, teve problemas ou no fundo já estava tudo combinadinho ou já estava acertado que finalmente a mulher poderia entrar?

Rachel de Queiroz:

A Academia é uma casa democrática. É engraçado, não parece, mas é. Uma das minhas grandes surpresas foi isso. 

Jorge Escosteguy:

Eleição direta?

Rachel de Queiroz:

Pois é. E secreta. A Academia não admitia mulheres por uma história muito antiga, porque ela não queria receber a mulher do Clóvis Beviláqua [(1859-1944) jurista, magistrado, jornalista, professor, historiador e crítico literário. O acadêmico deixou de frequentar a Academia quando sua esposa, a escritora Amélia de Freitas Beviláqua, teve seu pedido de inscrição recusado pela instituição, que alegou que mulheres não podiam ser acadêmicas]. Então fizeram esse artifício, interpretando como "brasileiros" exclusivamente os brasileiros homens que poderiam entrar etc. Os acadêmicos acharam muito boa aquela coisa de só ser um grupo fechado masculino e se mantiveram durante mais de 50 anos na vida acadêmica, mais de 60, anos, creio. A Academia foi fundada em 1896 e eu entrei em 1977.  

Jayme Martins:

Dizem que a brasileira se antecipou à francesa.

Rachel de Queiroz:

Pois é, mas quando teve 21 acadêmicos que votaram pela entrada da mulher, a Academia admitiu. Na verdade, nunca tinha querido entrar na Academia, acho que foi por isso que eu era a mais velha das damas escreventes no momento. A Dinah [Silveira de Queiroz (1911-1982), romancista, contista e cronista paulistana. Foi a segunda mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras (1980)], por exemplo, sempre tinha criado grandes atritos lá porque ela tinha teimado, até requerido mandado de segurança, o que era uma tolice, porque a Academia não é uma instituição pública, é uma instituição privada. Mandado de segurança não funcionava lá.  

Caio Fernando Abreu:

Rachel, queria saber.

Jorge Escosteguy:

Só um pouquinho, Caio, deixe só ela terminar.  

Rachel de Queiroz:

Era mais fácil ali, todo mundo era meu amigo, eu já estava nessa vida. De forma que não pleiteei, não pedi votos, não telefonei, não visitei. Fui-me embora para o Ceará, mas tinha grandes amigos lá dentro: Adonias Filho, Otávio de Faria [(1908-1980) crítico, ensaísta, romancista e tradutor carioca], Odylo Costa Filho [(1914-1979) jornalista, cronista, novelista e poeta maranhense], tinha uns dez ou doze amigos meus, companheiros de trabalho.

Jorge Escosteguy:

Não houve resistência nem você precisou cabalar votos?  

Rachel de Queiroz:

Não, não cabalei, nunca pedi um voto. Os votos foram espontâneos, lá entre eles. Naturalmente que os meus amigos fizeram alguma coisa, mas não sei, estava no Ceará. Quando inventaram essa história da candidatura, fui-me embora para a fazenda e passei lá uns quatro meses.

Jorge Escosteguy: Por que você foi embora? Fugiu?  

Rachel de Queiroz:

Não, porque ia todos os anos para o Ceará, então fui para a minha temporada regular lá, como ia todos os anos.

Caio Fernando Abreu:

Queria saber o que vocês fazem na Academia.  

Rachel de Queiroz:

Nada de misterioso. [risos]

Caio Fernando Abreu:

Não, mas queria realmente saber qual é a agenda, além do chá famoso. 

 

Rachel de Queiroz:

Vou mandar lhe fornecer o gibi – é o nosso boletim de todas as reuniões – e você verá. Discute-se literatura, dicionário, apresenta-se livro.

Caio Fernando Abreu:

Por que isso não chega ao público?  

Rachel de Queiroz:

Porque a Academia é uma instituição privada, um clube fechado de escritores que não é uma instituição pública, não recebe dinheiro do governo, não é estipendiada e tem a sua ação restrita porque é esse o seu destino. Ninguém prega as excelências da Academia nem ninguém discute. A Academia existe como ela é.

Moacir Amâncio:

Por que, por exemplo, um poeta consagrado, de que todo mundo gosta, chamado Mário Quintana [(1906-1994) jornalista, tradutor e um dos mais expressivos poetas contemporâneos, sendo conhecido como o “poeta das coisas simples”], não conseguiu entrar para a Academia?  

Rachel de Queiroz:

As eleições acadêmicas, como a daqui, da Academia Paulista de Letras, se fazem, apresenta-se o candidato, assumem-se os compromissos de voto, faz-se a eleição. O Mário Quintana sempre foi muito mal apresentado quando já havia outros candidatos comprometidos...

Caio Fernando Abreu:

Mas o Mário Quintana dispensa apresentações.  

Rachel de Queiroz:

Pois é, mas você já prometeu dar o seu voto, já aceitou um determinado candidato, não pode de repente abandonar porque deu o capricho do Mário Quintana naquela hora. Se o Mário Quintana tivesse sido devidamente aproveitado, teria entrado na primeira vez. Agora, havia um elemento de...

Fábio Lucas:

Rachel, queria fazer uma pergunta fugindo um pouco da Academia. Você esteve presa em 37 sob a ditadura Vargas [(1937-1945) período em que o então presidente Getúlio Vargas governou impondo ao país um regime ditatorial. Ele organizou uma ampla censura nos meios de comunicação e colocou na ilegalidade partidos políticos e movimentos sociais de esquerda] e, mais recentemente, sofreu um assalto em sua casa. Em qual das duas circunstâncias você esteve mais aflita?  

Rachel de Queiroz:

Olha, tenho um temperamento muito bovino, sou muito calma, em nenhuma das duas realmente me afligi. O assalto foi muito desagradável, mas eu tinha uma impressão meio irreal, parecia que aquela coisa não estava acontecendo mesmo. Ao mesmo tempo em que estava sofrendo o assalto, eu estava sendo espectadora do assalto. E os rapazes, os assaltantes, era muito curioso o comportamento deles, de forma que eu estava danada da vida, porque estavam carregando as minhas jóias, minhas coisas, mas, ao mesmo tempo, estava sendo espectadora daquilo. E as prisões, a prisão do Vargas, por exemplo, aquela grande prisão em 37... Na verdade, fiquei no Corpo de Bombeiros, na sala do cinema, que eles desmobilizaram para mim, muito paparicada pelos bombeiros e pelo comandante.

Fábio Lucas:

Houve até serenata para você lá?  

Rachel de Queiroz:

Faziam até serenatas para mim. [risos] Foi um período até de férias, eu estava numa fase meio atribulada da vida.

Jayme Martins:

Rachel, passados os 80 anos, como você revê a crítica que lhe faziam os dirigentes do Partido Comunista a respeito de suas primeiras obras, dizendo que você não passava de uma anarcóide sentimental?

  

Rachel de Queiroz:

Olha, essas críticas nunca me impressionaram, porque eu já estava zangada com eles, não estava disposta a me interessar pelo que eles diziam. Na verdade você vê que não é propriamente uma crítica literária, era uma crítica apaixonada. E as minhas turras com o partido duraram muito tempo. Nós nos patrulhamos reciprocamente, no fundo era divertido.

Gilberto Mansur:

Queria voltar um pouquinho ao negócio da Academia, porque acho que ela é uma entidade, é um mito que interessa aos telespectadores.  

Rachel de Queiroz:

Queria dar só um aparte ligeiro: não sou apaixonada pela Academia, não sou defensora da Academia.

Gilberto Mansur:

Queria exatamente situar isso. Quando o João Cabral de Melo Neto [(1920-1999) poeta e diplomata brasileiro. O rigor estético de sua obra poética inaugurou uma nova forma de fazer poesia no Brasil] - citou-se o Mário Quintana, então me lembrei dessa história –... Entrevistei o João Cabral de Melo Neto muito tempo atrás e, quando ele entrou para a Academia, a gente questionou mesmo. Eu mesmo questionei o João Cabral: por que um poeta como ele, que aparentemente é antiacadêmico – aparentemente não, seria antiacadêmico – estava entrando para a Academia. O que ele esperava da Academia? E ele disse simplesmente o seguinte: “A Academia não vai melhorar nem piorar a minha obra, não vai alterar a minha obra nem para pior nem para melhor. Simplesmente vou estar convivendo com gente que me diz respeito, que tem o ofício que tenho. E quero envelhecer junto com eles." Será que é isso?  

Rachel de Queiroz:

É isso exatamente a minha posição e a da maioria dos acadêmicos. São amigos, companheiros de trabalho, com quem a gente convive há muitos anos. Por exemplo, admiro profundamente o Abgar [de Castro Araújo Renault (1901-1995), professor, educador, político, poeta, ensaísta e tradutor brasileiro], acho que no momento é o maior poeta vivo – tirando-se o João – que é hors-concours.

Gilberto Mansur:

É uma oportunidade de conviver com essas pessoas? 

Rachel de Queiroz:

Então, eu via, conversava, discutia poesia com o Abgar,  trocávamos idéias. É um bom convívio, há muitos bons camaradas que a gente preza e há até aqueles com que a gente pensava que tinha divergências grandes e descobre-se, com o convívio, praticando aquela solidariedade...

Jorge Escosteguy:

Por exemplo, com quem você pensava que teria divergências grandes e de repente...?  

Rachel de Queiroz:

Você acha que vou lhe dizer isso? [risos]

Jorge Escosteguy:

Você vai elogiar. Vai dizer que está tudo bem. 

Rachel de Queiroz:

Você acha que vou dizer isso dos meus companheiros da Academia? Há uma coisa chamada esprit de corps [espírito de equipe], a gente briga entre si.

Gilberto Mansur:

Rachel, Academia é como aquele hospício com aquela inscrição: “Nem todos que são estão, nem todos que estão são”. 

Rachel de Queiroz:

E não é?

Gilberto Mansur:

Porque tem muita gente que está e que não merecia...  

Rachel de Queiroz:

Até que poucos. Aqueles que, por exemplo, às vezes, são malsinados. Na verdade, são intelectuais de outros ramos, são juristas ou são... Tem sua justificativa.  

Marcos Faerman:

Você fez parte de uma revista, O Cruzeiro, que foi uma revista importante que tinha uma tiragem fabulosa, e chegava na casa de muita gente. Ela tinha à frente dela uma figura chamada Assis Chateubriand. Você tinha contato com o Chateubriand, que era uma pessoa muito presente na redação? Você freqüentava a redação do Cruzeiro ou mandava as crônicas?

Rachel de Queiroz:

Eu não freqüentava a redação do O Cruzeiro.  

Marcos Faerman:

A sua relação com O Cruzeiro...

Jorge Escosteguy: O João Roberto Julião, aqui de São Paulo, faz a mesma pergunta sobre a revista O Cruzeiro e A.ssis Chateaubriand  

Marcos Faerman:

E, aliás, agora o Fernando Morais [jornalista, político e escritor mineiro especializado em biografias. Várias delas já foram adaptadas ao cinema, como Olga e Chatô] está escrevendo sobre a vida do Chateaubriand.

Rachel de Queiroz:

Não tive convívio nenhum com Assis Chateaubriand. Ele era muito homem muito social, tinha aquelas campanhas, tinha uma roda de damas e de cavalheiros que o cercavam, dava festas na França. Eu era colaboradora, a revista mandava um boy apanhar o meu artigo, a minha crônica. Não ia nem receber dinheiro lá, ia muito raramente. Tinha os meus amigos lá dentro, como David Nasser [(1917-1980) foi o mais conhecido repórter de sua época], e outros que eram meus amigos, iam me visitar na minha casa em geral. Vamos dizer que, de dois em dois meses, eu dava uma passada lá pelo Cruzeiro, mas muito rápida.  

Maria Alice Barroso:

Mas, Rachel, ele a prestigiava, não?

Rachel de Queiroz:

O Chateaubriand? Quero até dar esse depoimento, que é desinteressado, eu era uma colaboradora, nunca fui da equipe do Chateaubriand. Mas nunca tive conhecimento, nunca funcionei em jornal nenhum, em publicação nenhuma onde se tivesse tão completa e absoluta liberdade quanto o do Chateaubriand. Maria Alice lembrou agora um episódio – os meus amigos angolanos talvez não saibam porque são muitos jovens: uma das minhas bêtes noires [diz-se de algo abominável, que causa aversão] era o [Antônio] Salazar [(1889-1970) político português que governou de forma ditatorial seu país natal, entre 1932 e 1968]. E eu, toda vez que podia, atacava o Salazar e defendia a África negra. E aquele problema das colônias...  

[...]: E o [Francisco] Franco também.  

Rachel de Queiroz:

O Franco também era outra bête noire minha, mas o Salazar era a minha vítima predileta. E o Chateaubriand andava muito pela Europa e vendeu um número do O Cruzeiro ao Salazar, ao governo português. E, em O Cruzeiro, como disse, não faziam censura nenhuma, nunca ninguém lia o meu artigo. Quem lia o meu artigo era o linotipista, de forma que, no número que o Chateaubriand vendeu para o Salazar, saiu uma crônica minha dizendo horrores do Salazar. Quando a revista chegou em Portugal, foi aquele Deus nos acuda: cortaram a revista de gilete, devolveram a revista, não queriam pagar o Chateaubriand, foi um horror. Então, me telefonaram: “Rachel, a sua crônica deu um bode danado, o que você vai fazer”? Digo: “É muito simples. Eu te faço uma carta renunciando à colaboração, saio do Cruzeiro e limpo a tua fachada”. Ele disse: “Não, não, nós vamos enfrentar, deixe o Chatô chegar”. O Chatô iria desembarcar dentro de dois ou três dias, vindo justamente de Lisboa. E o Leão foi muito tímido para o aeroporto esperando o destampatório do Chatô. Quando o Chatô desce do avião, ele diz: “Chatô, você viu aquele negócio, aquela encrenca que deu com a crônica da Rachel?" Disse o Chateaubriand: “Sabe que achei aquilo até bom? Esses portugueses estão ficando muito bestas!” [risos] Era assim o Chateaubriand.

Miriam Goldfeder:

Rachel, virando um pouco o jogo, você já fez psicanálise ou a sua literatura é a sua psicanálise?

[...]

Rachel de Queiroz:

Há muitos anos ele se apaixonou por psicanálise e começou a me seduzir para fazer psicanálise com ele. E fui, até me interessei, quando ele disse assim: “Olha, por alguns meses já te livro de todos os teus grilos”. Disse: “mas, Fernando, se você me livrar dos meus grilos, como é que escrevo?” [risos]

Caio Fernando Abreu:                                                                               Mas o Woody Allen [escritor, ator e cineasta norte-americano, famoso por retratar em sua obra neuroses cotidianas] faz filmes e fez 17 anos de análise.

Jayme Martins:

Rachel, revirando mais um pouco o jogo, como foi a sua aventura com o computador? Você já trocou a sua máquina de escrever comum por um Toshiba mil?

Rachel de Queiroz:

Não.  

Jayme Martins:

Depois do computador, desembestou a escrever mais ainda?

Rachel de Queiroz:

Não. Ainda não estou de computador, porque houve vários acidentes de percurso na minha compra do meu computador, que não posso nem dizer nessa instituição pública aqui... 

Jorge Escosteguy:

Opa!

Rachel de Queiroz:

Não posso contar, mas o fato é que...  

Jorge Escosteguy:

Você diz o trajeto do computador?

Rachel de Queiroz:

É, o trajeto do computador e o portador do computador.  

Jayme Martins:

Prenderam o contrabandista?

Rachel de Queiroz:

Isso aí. 

Gilberto Mansur:

Rachel, nessa área, o seu relacionamento com a televisão também não é muito bom, me parece. Há pouco você estava querendo ir embora. Acho que você teve uma peça... não sei se As três Marias foi adaptada para novela...

Rachel de Queiroz:

Gosto de televisão, acho televisão, como todo mundo – não sou idiota – um instrumento mágico, maravilhoso, etc e tal; agora, em geral mal empregado.  

Gilberto Mansur:

E as novelas?

Rachel de Queiroz:

Novelas podem ser boas, podem ser ótimas e podem ser péssimas. A adaptação do livro meu foi péssima, foi uma traição principalmente ao meu pensamento. Imagina uma novela minha que era racista e anti-semita, não tinha sentido. Aí botaram um personagem, criaram personagens racistas contra negros e um personagem anti-semita, de forma que era demais. Tive uma grande conversa com o doutor Roberto Marinho, mas a novela já estava feita e eu já tinha gasto o dinheiro que eles tinham me pagado. Então chegamos a um acordo em que, se a novela fosse repetida ou vendida, o meu nome não apareceria nos créditos.  

Gilberto Mansur:

Aí você rompeu com a televisão?

Rachel de Queiroz:

Pelo menos me desinteressei.  

Jorge Escosteguy:

Aí o esperto foi o doutor Roberto, que lhe pagou imediatamente para você gastar o dinheiro e ficar tudo tranqüilo?

Rachel de Queiroz:

Eles pagam antes a gente. 

 

Jorge Escosteguy:

Essa pergunta sobre televisão foi feita também por Marcelo Brás, aqui de São Paulo.

Miriam Goldfeder:

Rachel, você ficou rica com a literatura? 

 

Jayme Martins:

Ah, deixe-me complementar essa pergunta aí. Você já disse que a gente é imortal, porque não tem onde cair morto.

Rachel de Queiroz:

Quem dizia isso era o [Olavo] Bilac [(1865–1918) jornalista e poeta brasileiro. Foi um dos representantes do parnasianismo no Brasil].  

Jayme Martins:

Pois é, mas a senhora já repetiu, no entanto a senhora é fazendeira. No Rio de Janeiro, a senhora tem um apartamento num edifício que leva o seu nome. Os direitos autorias já deram para tanto?

Rachel de Queiroz:

Olhe, sou fazendeira, porque essas fazendas nossas... Você não sabe o que é fazenda do Nordeste, fazendeiro no Nordeste não é sinônimo de riqueza, antes, pelo contrário. Essas fazendas a gente herdou já há mais de cem anos que essas terras estão nas nossas mãos. Somos latifundiários antigos ali, de forma que não é fonte de renda, ao contrário, é fonte de despesa e de muito amor que a gente tem àquilo, que passou de pai a filho, e aquela coisa. E o prédio tem o meu nome, o Adonias brincava muito comigo, ele chegava no prédio, são cinco andares, cinco famílias que moram. Então os condôminos iam dar o nome ao edifício, deram o meu nome, foi uma homenagem dos condôminos. Isso só serve para brincadeira dos meus amigos: “Como a Rachel está bem, hein? Está ganhando muito dinheiro”.Vocês sabem o que são. 

Caio Fernando Abreu:

O seu latifúndio é produtivo ou improdutivo?

Rachel de Queiroz:

O meu latifúndio é absolutamente improdutivo. Embora o meu latifúndio... Separei 30% da área do latifúndio, fiz uma mata que nós chamamos a “caatinga atlântica”.  

Miriam Goldfeder:

É o seu lado ecológico? Conta para a gente o seu lado ecológico.

Rachel de Queiroz:

Um dia cheguei... Eu tinha separado já, desde que herdei a fazenda... Quando minha mãe morreu e nós herdamos a fazenda, separamos a parte de mata, porque as matas do Nordeste, como todas as matas do Brasil, estão liquidadas, estão dizimadas. E o meu pai tinha muita paixão pelo sertão, por aquela coisa e conservava aquela área de mata. De forma que nós separamos - a fazenda tem novecentos e poucos hectares - trezentos hectares, 30%, e mantemos isso, não deixamos tirar madeira. Recebo, aí sim, ofertas astronômicas pela madeira, porque é preciosa, muita madeira bonita, e é o meu jardim particular. Quando um daqueles generais da revolução, que era do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]... Recebo o negócio do imposto territorial dizendo “latifúndio improdutivo”, por causa dos meus 300 hectares de mata de caatinga atlântica. E tive uma briga com generais estrondosa, me associei ao José Cândido de Melo Carvalho [(1914-1989)], que está vivo ainda, é ecologista, predecessor desse movimento; ele era presidente do Instituto de Defesa Florestal. Conseguimos uma legislação defendendo essas reservas de floresta, de forma que o meu latifúndio realmente me honra muito. 

 

Jorge Escosteguy:

Rachel, o Sérgio Fernandes, aqui de São Paulo, do bairro da Pompéia, pede a sua opinião sobre dois políticos do Nordeste. Um não é bem do Nordeste, mas, enfim... É o Fernando Collor [de Mello], atual presidente da República, e o Luiz Inácio Lula da Silva [candidatou-se à Presidência da República em 1989, mas perdeu a eleição para Collor de Mello]. O Carlos Silva, de Fortaleza, também pede a sua opinião sobre o presidente Collor, que estaria, inclusive, destinando mais recurso para o seu estado, Alagoas. Kátia Mazolino, de São Caetano, também pergunta o que você acha do governo Collor.

Rachel de Queiroz:

Olha, estou torcendo para dar certo, porque estou dentro do navio, então tomara que dê certo. Agora, tenho as minhas dúvidas.  

Jorge Escosteguy:

O que a senhora acha do capitão do navio?

Rachel de Queiroz:

Vamos ver o que ele faz.  

Miriam Goldfeder:

O navio está fazendo água já?  

[...]: É uma jangada.

Rachel de Queiroz:

O negócio está duro.  

Jorge Escosteguy:

E o Lula?

Rachel de Queiroz:

Olha, o Lula é um homem extraordinariamente inteligente, culto, mas o grande defeito dele é ser atrelado ao PT, que é um partido muito parecido... a coisa mais parecida com os stalinistas da minha mocidade é o PT. Aquele mesmo obscurantismo, aquele obrismo cego. De forma que o Lula, que é um homem de grandes qualidades e muito inteligente... 

Marcos Faerman:

Nessa etapa dele como governante no Rio de Janeiro, essa Linha Vermelha, essa coisa toda, o Brizola está indo bem ou, na sua opinião, o Brizola está indo mal?

Rachel de Queiroz:

Eu me recuso a falar sobre o Brizola.

  

Marcos Faerman:

Mas você é a favor dos Ciep’s [Centro Integrado de Educação Pública, criado no primeiro governo de Leonel Brizola no Rio, em 1983, idealizado pelo antropólogo Darcy Ribeiro, destacando-se entre suas propostas a integração escola-comunidade, oferecendo atividades de lazer em bairros carentes], dessas escolas grandes?

Rachel de Queiroz:

Olha, me recuso a falar sobre o Brizola, porque as minhas divergências com ele são tão radicais! Para mim, o Brizola é uma figura arcaica... 

Marcos Faerman:

Então é uma questão de pele.

Rachel de Queiroz:

Não, não é nem de pele, porque nunca cheguei perto dele. Para mim, o Brizola é uma figura arcaica, descendente direto dessa figura que é o caudilho sul-americano.  

Caio Fernando Abreu:

Rachel, eu me dou o direito de discordar do que você disse do PT e do Brizola. Você não acha que o Collor está dando continuidade ao que havia de mais lamentável no golpe militar de 64 que você ajudou?

Rachel de Queiroz:

Não. Você está dizendo isso. 

Caio Fernando Abreu:

Não, estou perguntando.

Rachel de Queiroz:

No golpe em que ajudei, não. Ajudei o Castelo. O resto não. No AI-5 não tive a menor participação...  

Caio Fernando Abreu:

Depois do AI-5, você não acha que o Collor está dando continuidade a isso?

Rachel de Queiroz:

Eu lhe dou a liberdade de achar ruim o Collor e os outros todos, como você está me dando a liberdade. Não discuto...

  

Caio Fernando Abreu:

Não, eu queria me limitar a essa pergunta: você não acha que o Collor dá continuidade à deturpação?

Rachel de Queiroz:

Você está dizendo isso e você não diria isso... 

Caio Fernando Abreu:

Tenho uma interrogação aqui

.

Rachel de Queiroz:

Você está dizendo isso numa televisão oficial, quer dizer que há um grau de liberdade muito maior, que nós devemos... desde o Sarney que nós temos essa liberdade. 

 

Caio Fernando Abreu

É o mínimo.

Rachel de Queiroz:

Não é o mínimo, não.  

Caio Fernando Abreu:

Acho que é o mínimo, liberdade.

Rachel de Queiroz:

Não é o mínimo, não, porque você é muito jovem, você não passou os tempos piores.  

Caio Fernando Abreu:

Tenho 42 anos e estive preso em 68.

Rachel de Queiroz:

Pois então não aprendeu com o tempo, porque passamos tempos muito piores. 

 

Caio Fernando Abreu:

Acho que estou aprendendo coisas

.

Jorge Escosteguy:

Por favor [interrompendo Caio].  

Caio Fernando Abreu:

Bom...

[abre os braços, desistindo de continuar a discussão]

 

Miriam Goldfeder:

Rachel, do que você se arrepende hoje, aos 80 anos?  

Rachel de Queiroz:

De ter nascido, de ter vivido, de ter feito tanta bobagem. Eu me arrependo de quase tudo.

Jorge Escosteguy:

Deixe-me só fazer um esclarecimento para a Rachel, quer dizer, a TV Cultura não é uma TV oficial. A TV Cultura é uma fundação pública de direito privado.  

Caio Fernando Abreu:

A força oficial não estaria aqui.

Rachel de Queiroz:

Ótimo, mas sofria censura durante a ditadura.  

Jorge Escosteguy:

Ela não tem qualquer dependência ou atrelamento do governo, portanto todos nós temos a liberdade...

Rachel de Queiroz:

Mas que sofria censura no tempo da ditadura. Durante todo o tempo ditatorial, sofria censura. 

Jorge Escosteguy:

Alguns governantes tentaram fazer dela um instrumento político.

Rachel de Queiroz:

Pois é. 

Jorge Escosteguy:

Felizmente, eles não estão mais aí.

Rachel de Queiroz:

Porque justamente está havendo agora essa liberdade. Reconheço que há liberdade. Não estou defendendo o governo Collor, não tenho nada em comum com o governo Collor. Não vou nem a Brasília, nunca vi o Collor senão a distância ou em cerimônias oficiais, no estrangeiro, aliás, onde o encontrei. Fui amiga do Arnon [Afonso Farias de Mello, ex-senador da Repúbica e ex-governador de Alagoas. Pai do então presidente Fernando Collor], que era uma grande figura, era um homem muito inteligente, muito vivo. Não concordo 90% com o que está se fazendo, mas não estou me sentindo em posição... Acho a hora tão aflitiva, tão dramática, que nós estamos atravessando, vamos ver se dá certo apesar de tudo. É a minha posição.

  

Jayme Martins:

Mais uma pergunta que me manda fazer o Ricardo Ramos. [lendo] “Além da superior romancista, nós temos a Rachel teatróloga, a escritora de literatura infanto-juvenil, a tradutora, todas modelares. Mas vem avultando, desde A donzela e a moura torta até Mapinguari, a cronista admirável. Só que, entre as suas crônicas, sem dúvida, excelentes, há contos da maior estatura. Por que você nunca desencantou explicitamente um livro de contos”?

Rachel de Queiroz:

Porque acho o conto um gênero muito difícil, no qual ele, Ricardo, é que é um mestre. E quando quero contar uma historinha, disfarço numa crônica e não ouso nunca chamar de conto, um gênero que acho realmente muito difícil, porque exige uma concentração de valor que a gente, na prosa mais solta, não precisa ter.  

Marcos Faerman:

O seu contista favorito?

Rachel de Queiroz:

Um deles é o Ricardo Ramos, dos vivos.  

Marcos Faerman:

Na literatura internacional, algum mestre particularmente apreciado?

Rachel de Queiroz:

Não sei, talvez o [Anton Pavlovitch] Tchekhov [(1860-1904) importante escritor e dramaturgo russo, considerado um dos mestres do conto moderno]. 

Gilberto Mansur:

Rachel, e a literatura infantil, juvenil, essa literatura para criança e para jovem? Você escreveu dois livros...

Rachel de Queiroz:

Agora tem um terceiro. O primeiro fiz porque o meu neto, que tinha oito para nove anos, veio me reclamar que  nunca tinha escrito um livro para ele. Então fiz O menino mágico, que aliás fez uma boa carreira, já está com umas dezoito ou vinte edições. E fiz depois uma historinha de uns pintos, tal, a pedido lá da [editora] José Olímpio, que queria um livro infantil naquele período. E agora tenho outra historinha, a história de uma andorinha que foi criada numa família de morcegos e adquiriu hábitos noturnos. E esse está ainda inédito.  

Gilberto Mansur:

Dentro do seu pessimismo, desse seu baixo-astral, escrever para criança lhe dá alguma gratificação?

Rachel de Queiroz:

Pois é, dá muito. Criança é uma das minhas paixões na vida. Você perguntou das coisas de que gosto, criança é uma das minhas paixões. Não tenho filhos, mas tenho netos porque são os filhos de minha irmã Maria Luiza que assumi como avó. E criança realmente... 

Fábio Lucas:

Mas isso foi sempre assim ou só depois que você teve netos?

Rachel de Queiroz:

Não, sempre tive paixão por criança e sempre tive desgosto por não ter filhos. E meus sobrinhos... tenho sobrinhada muito vasta, sou muito ligada a eles todos. Realmente gosto muito de criança. 

Jorge Escosteguy:

Por falar em criança, Rachel, o Paulo Siqueira, da cidade de Campos de Jordão, tem 12 anos, telefonou para cá e gostaria de que você dissesse a ele se uma criança nasce escritor ou se precisa trabalhar muito para se tornar escritor.

Fábio Lucas:

Bela pergunta.  

Rachel de Queiroz:

Vendo, os livros vendem. O quinze está na 45°, 48° edições, todos os outros têm um bocado de edições. [sobreposição de vozes}

Miriam Goldfeder:

Isso a deixa feliz? 

Jorge Escosteguy:

Consegue receber os direitos autorias?

Rachel de Queiroz:

Sim, quando vendem, eles me pagam. 

Miriam Goldfeder:

Isso a deixa feliz, saber que você é lida? Ou isso é indiferente?

Rachel de Queiroz:

Claro que você escreve para ser lida. Além disso, quando você é um escritor profissional, que só sabe escrever, não tem outra profissão, você precisa que renda alguma coisa. Com o livro eu não iria viver, por isso é que sempre fiz jornalismo. Na verdade, é a minha profissão, quando me perguntam, sou jornalista profissionalmente. 

 

Marcos Faerman:

Rachel, você era amiga do José Lins do Rego?

Rachel de Queiroz:

Muito.  

Marcos Faerman:

Mas vocês tinham uma grande briga, pelo menos.

Rachel de Queiroz:

Flamengo e o Vasco.  

Marcos Faerman:

Ah! [rindo e apontando para Rachel] 

Jorge Escosteguy:

Quem era Flamengo e quem era Vasco?

Rachel de Queiroz:

Sou Vasco e José Lins era Flamengo.  

Marcos Faerman:

E dava briga?

Rachel de Queiroz:

Brigas horríveis! 

Marcos Faerman

E como é que era essa coisa, assim, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz discutindo?

Rachel de Queiroz:

Ele escrevia artigos no Globo esportivo me concitando a abandonar aqueles portugueses. 

Marcos Faerman:

Aquele miserável time do Vasco?

Rachel de Queiroz:

O Edilberto Coutinho, num livro que ele escreveu sobre o Flamengo, separou os artigos em que o José Lins me faz todas as rogatórias, objugatórias, era uma discórdia permanente.  

Marcos Faerman:

E com o seu marido também?

Rachel de Queiroz

Meu marido era Fluminense, era pó-de-arroz.

  

Marcos Faerman:

E o seu neto?

Rachel de Queiroz:

Meu neto é Flamengo. Tudo é Flamengo.  

Jayme Martins:

Rachel, você costuma dizer que não gosta de ler os seus livros. Mas qual deles é o que mais se aproxima daquele que você gostaria de ler?

Rachel de Queiroz:

Não sei. Não tenho prediletos, não, sou um pouco como [Jean-Jacques] Rousseau [(1712-1778) filósofo iluminista de origem suíça, escreveu O contrato social, importante obra de teoria social e política que influenciou a Revolução Francesa], que enjeitava os filhos na roda. Depois do livro escrito, eu me desinteresso dele e não gosto muito de pensar, porque só me lembro do que não gosto. As coisas de que poderia gostar esqueço, eu só me lembro do que não gosto e tenho aquela cisma. Não gosto de falar sobre eles, porque o pessoal vê em letras vermelhas aquelas coisas que acho horríveis e que não vou dizer ao público.  

Fábio Lucas:

Há pronunciamentos seus muito favoráveis a João Miguel, por exemplo, e a Dora Doralina, não?

Rachel de Queiroz:

Bem, o João Miguel foi um livro muito especial para mim, porque, de certa forma, eu me encarnei no João Miguel. Quando perguntam qual é o personagem meu mais próximo de mim, digo sempre que é o João Miguel. E da Dora Doralina foi um livro que eu já escrevi aos 60 anos de idade, com mais maturidade. Foi um livro maior, de certa forma mais expressivo do que [o que] vinha fazendo, mas não é lá essas coisas, não o defendo.  

Moacir Amâncio:

Rachel, como é isso de não gostar do livro, é senso crítico exagerado? O que é isso? É difícil para a gente entender.

Rachel de Queiroz:

Quem sabe é narcisismo, não sei: a verdade é que queria fazer aquele grande livro que ainda não fiz.  

Gilberto Mansur:

Rachel, quando você diz que a sua verdadeira profissão – já tinha lido sobre isso também–, mais do que cronista, romancista, teatróloga, é jornalista... Agora, você chegou a exercer, exerceria com prazer, como repórter ou...?

Rachel de Queiroz:

Repórter, não. Comecei a trabalhar, fui jornalista de banca, como se chamava naquele tempo, durante uns três ou quatro anos, depois eu fazia o suplemento literário. E nunca fui repórter. 

Gilberto Mansur:

Isso lá no Ceará?

Rachel de Queiroz:

No Ceará. Depois, quando vim para cá, para o Rio, em 39, eu era articulista do Diário de Notícias.  

Marcos Faerman:

Agora, só tenho uma curiosidade, porque nessa coisa de redação de jornal, era muito raro se encontrar uma moça numa redação. 

Rachel de Queiroz:

Não tão raro... 

Marcos Faerman:

Tenho trinta anos de vivência como jornalista...

Rachel de Queiroz:

Porque você estava num lugar atrasado. [risos] No Ceará, em 1927, já tinha três mulheres na redação do meu jornal.  

Marcos Faerman:

Havia três mulheres. Acredito que o Ceará realmente, nesse caso, é recordista no Brasil, porque moças em redação de jornal não era [fato] muito comum assim há 30 anos atrás. E como era a vivência de uma moça dentro de uma redação de jornal com os colegas?  

Rachel de Queiroz:

Comecei... Primeiro, como disse, a minha família era uma família de intelectuais. A gente conhecia todos os intelectuais da terra, a gente se visitava, eram amigos de meus pais quase todos. O dono do jornal em que comecei a trabalhar era amigo fraterno do meu pai. O Demócrito Rocha [1888-1943) poeta e jornalista brasileiro, fundador do jornal O Povo, no Ceará, em 1928] era amigo meu e da minha família, o [dono] do segundo jornal em que trabalhei, que ainda hoje é O Povo. Ainda hoje sou colaboradora do O Povo. De forma que, nos jornais em que eu trabalhava, era aquele ambiente muito amigo, nunca senti... E quando, aos 29, 28 anos, vim trabalhar no Rio, no Diário de Notícias, já tinha várias mulheres trabalhando. 

Fábio Lucas:

Rachel, parece que havia, para o seu ingresso na Academia, um dispositivo proposto pelo Oswaldo Orico [(1900-1981) professor, diplomata, poeta, contista, romancista, biógrafo e ensaísta]. Mas, pela época do seu ingresso, efetivamente ele se opôs. Depois disso você se conciliaram?  

Rachel de Queiroz:

O Oswaldo Orico ficou safado da vida de não ser a Dinah, que era a candidata dele. Ele era um homem brigão e a Dinah tinha lutado lá na Academia pela candidatura. Eu também queria que ela fosse a primeira candidata, nós éramos muito amigas; até ela morrer, a Dinah e eu éramos amigas unidíssimas, amigas fraternas, e queria que fosse ela a primeira candidata.

Fábio Lucas:

Era um parentesco?  

Rachel de Queiroz:

O primeiro marido dela era meu primo-irmão, o Narcélio [de Queiroz, advogado e literato]. E nós ficamos amigas, cheguei a brigar com o Narcélio. Quando ela brigava com o Narcélio, eu ficava ao lado dela, porque o casamento foi muito difícil, eles tinham muitos problemas. Então a minha candidata era a Dinah, mas ela tinha criado aquele ambiente meio adverso por causa da luta dela para ingressar na Academia e  veio me pedir: “Rachel, pelo amor de Deus, aceite essa candidatura, porque a única maneira de eu entrar é você entrar primeiro”. De forma que...

Fábio Lucas:

E o Oswaldo Orico? 

Rachel de Queiroz:

O Oswaldo Orico, depois ficamos grandes amigos, ele até... Ele sentava junto de mim nas sessões, ficamos grandes amigos. Sou justamente a relatora do Prêmio Oswaldo Orico.

Jorge Escosteguy:

Podia ser para vigiar você na sessão.  

Rachel de Queiroz:

Pois é.

Jayme Martins:

Isto não ficou claro nas entrevistas que li a seu respeito: ocê chegou a ser candidata a deputada estadual pelo Partido Socialista em 1934 no Ceará?  

Rachel de Queiroz:

Sim, senhor.

Jayme Martins:

E foi eleita?  

Rachel de Queiroz:

Não fui eleita porque, segundo nós alegávamos, a eleição foi roubada. Pode ter sido por falta de voto mesmo, mas a alegação do Partido Socialista é que a eleição tinha sido roubada. As eleições naquele tempo eram muito bravas.

Jayme Martins:

Entre as confidências que você guarda do general Castelo Branco, especialmente daquele último encontro na fazenda Não me deixes, qual a mais marcante e que talvez ainda não tenha sido revelada? Qual o segredo desse período que é do seu conhecimento e ainda não foi revelado?  

Rachel de Queiroz:

É muito curiosa a revolução que o Castelo Branco fez... ele nunca conspirou. A gente conspirava durante o governo do Jango, porque nós tínhamos apoiado o Jânio Quadros – eu e o meu grupo de amigos, a gente tinha apoiado o Jânio Quadros. O Jânio foi praticamente deposto, o Jânio saiu porque obrigaram. A gente sabe, não precisa discutir uma história velha. E ficamos na moita. Aí veio o Jango com todo o seu esplendor caudilhista e fascista, na nossa opinião. E a gente estava vendo começar de novo aquela história de pelego, e começamos a conspirar, os antigos democratas diante de pré-Getúlio e durante Getúlio. E o Castelo, não, ele não entrava. Ele dizia que era general na ativa e general na ativa tem que obedecer e não entra em motins e revolução. [sobreposição de vozes]

Jorge Escosteguy:

Um de cada vez, por favor.  

Jayme Martins:

Mas há alguma confidência que revelasse o desgosto dele com relação ao rumo que tomou 64?

Rachel de Queiroz:

Tenho depoimentos dele nisso. Ele lutou bravamente contra isso e aceitou a eleição do Costa e Silva para não haver uma cisão completa nas Forças Armadas. E creio que ele, praticamente, seria deposto se não tivessem chegado a uma acomodação. 

 

Caio Fernando Abreu:

Quero falar uma última coisa. Estou me sentindo muito constrangido de estar aqui.

Rachel de Queiroz:

Por quê? 

Caio Fernando Abreu:

E a última coisa, não vou me tornar constrangedor. Por várias coisas que você falou, concluo que você colaborou para coisas muito negativas nesse país, no meu ponto de vista. Compreendo que todos nós somos humanos, erramos, nos equivocamos e tal, mas estou me sentindo extremamente constrangido de estar na posição de render homenagem a um tipo de ideologia que profundamente desprezo.  

Jorge Escosteguy:

Caio, você tem que fazer perguntas, e não render homenagem, desculpe.

Caio Fernando Abreu:

Está certo. 

Jorge Escosteguy:

A entrevistada é a escritora Rachel de Queiroz.

Caio Fernando Abreu:

Só queria dizer isto: não tenho mais perguntas a fazer. Minha participação se encerra aqui. 

Rachel de Queiroz:

Gostaria de responder a você que nós estamos num país democrático, eu respeito as suas posições e espero que você respeite as minhas.  

Caio Fernando Abreu:

Respeito, tanto que me calo.

Rachel de Queiroz:

Pois é, se as minhas posições são constrangedoras, acho as suas também muito constrangedoras para mim. E realmente estou sendo exigida a me pronunciar sobre esses temas que eu não gostaria de ser, para não ser descortês com você, de forma que é recíproca a nossa posição.  

Marcos Faerman:

Teve um episódio com o general Lott, superatritado.

Rachel de Queiroz:

Tive. 

Marcos Faerman:

Como é que foi esse episódio?

Rachel de Queiroz:

Mas nós nunca nos falamos, o Lott e eu, não.  

Marcos Faerman:

Tinha uma carta sua?

Rachel de Queiroz:

Fiz um artigo sobre ele em que dizia... Escrevi um artigo sobre o Lott e não soube nem da reação dele contra, não, ele devia me detestar. Mas nós nunca chegamos a nos encontrar.  

Jorge Escosteguy:

O que você tinha contra o general Lott?

Marcos Faerman:

A sua relação com o Jânio Quadros chegou a ser uma relação pessoal?  

[...]: Chegou-se a falar que você seria ministra da Educação, não é?

Rachel de Queiroz:

Foi muito curta a minha relação com o Jânio Quadros. Quando o Juarez Távora [(1898-1975) militar e político, destacou-se como atuantes em movimentos políticos como Revolução de 30, Coluna Prestes. Participou do golpe militar de 64 e tornou-se ministro no governo Castelo Branco], que era meu amigo, adotou a candidatura do Jânio, ele nos convenceu a todos, da roda dele, a apoiarmos o Jânio para não apoiar o Lott. Nós apoiamos o Jânio. Eu, a princípio, meio cismada, porque o Jânio tinha aquela figura meio popularesca, daquela coisa toda, que eu nunca fui muito dessa demagogia. Quando o Jânio se elegeu, eu recebi um telegrama dele, pedindo para eu ir com o meu marido [a Brasília, onde Jânio foi o primeiro presidente a ser empossado], porque ele precisava, poucos dias antes da posse dele, em janeiro de 61. O presidente chamou, a gente veio. E ele me convidou para ser ministra da Educação. Não aceitei, não queria saber.  

Marcos Faerman:

Por que razão?          

Rachel de Queiroz:                                                                             Porque não quero ser ministra, nunca quis ter posição política. Em toda a minha longa carreira nunca tive uma posição. Acha que não tive oportunidades? Tinha muita oportunidade. Muita gente me convidou para muita coisa, mas eu brincava e dizia: “meu reino não é deste mundo” [citação de Jesus Cristo no Evangelho de João 18:36]. E o Jânio é uma pessoa, era – não sei como ele está agora – fascinantemente inteligente, uma das pessoas mais inteligentes... É demoníaco o homem, mesmo!

Marcos Faerman:

E o dicionário do Jânio?

Rachel de Queiroz:

O dicionário foi posterior.  

Marcos Faerman:

Você chegou a conhecer a obra literária de Jânio Quadros?

Rachel de Queiroz:

Não era literária, era uma obra didática. 

 

Marcos Faerman:

Obra cultural do Jânio.

Rachel de Queiroz:

Era uma obra didática, não é? Conheci dele acho que uma gramática, o dicionário não.  

Gilberto Mansur:

Era uma gramática. Ele tem um livro de contos também.

Rachel de Queiroz:

Isso não conheci. Não aceitei ser ministra, mas ele ficou me procurando, indicando nomes para ver se eu apoiava, na área da cultura, ele ficou tendo muita comunicação comigo. Como alguns dos ministros dele eram meus grandes amigos, como Afonso Arinos [(1905-1990) foi ministro das Relações Exteriores, no governo Jânio Quadros], de forma que a gente tinha alguma comunicação. Ele me mandava recadinhos etc. Depois ele renunciou, foi embora e aí perdemos todo o contato, nunca mais falei com o Jânio nem vi o Jânio.  

Jayme Martins:

Rachel, onde você se sente melhor realizada: como escritora, como cozinheira, como bisavó, como que outra coisa?

Rachel de Queiroz:

Realizada como escritora acho que seria uma presunção  alguém se achar, nem o Machado se achava realizado, nem nenhum desses grandes, quanto mais eu. E como avó, tenho poucos netos, isso é uma coisa que me faz falta. Só tenho uma bisneta, uma única bisneta, muito chorada, muito disputada. 

 

Jayme Martins:

E como cozinheira?

Rachel de Queiroz:

Como cozinheira, eu me sinto um pouco bem, mas ainda tenho algumas conquistas e não tenho tanto tempo mais para me dedicar, mas sou uma boa cozinheira.  

Jorge Escosteguy:

Rachel, o Jovino Ribeiro, aqui de São Paulo, pergunta: “A senhora se diz contra o striptease do memorialismo. O que dizer do seu primo, Pedro Nava [(1903-1984) autor de valiosa obra memorialística, que começou a ser escrita em 68 sobre o período histórico  situado entre 1840 e 1860], que fez um imenso striptease”?

Rachel de Queiroz:

Bem, recuso o meu striptease por questões pessoais, mas a obra do Nava é um monumento. E ele fez um striptease [de] que eu não teria jamais coragem. Nós discutimos muito isso, como é que ele contava aquelas histórias da avó dele e dos padrinhos da avó dele.  

Jorge Escosteguy:

E ele dizia o quê?

Rachel de Queiroz:

Ele dizia que estava ali para contar mesmo. E enfrentou, não é?  

Marcos Faerman:

O Pedro Nava tem uma memória prodigiosa, é deslumbrante a obra de memória dele. Aquilo tudo é verdade, quando o Pedro Nava conta aquelas minúcias da infância?

Rachel de Queiroz:

Ele tinha uma memória diabólica, tinha. 

Marcos Faerman:

Isso é que queria saber.

Rachel de Queiroz:

E ele colecionou notas, a gente não sabia para quê. 

Marcos Faerman:

Ele anotava tudo, né?

Rachel de Queiroz:

Tudo, ele tinha um arquivo imenso. Todo bilhete que a gente fazia para ele... Eu convivia [com ele], era o meu melhor amigo na época, era o meu primo, foi ele que me apresentou ao Oyama, de forma que nós tínhamos uma grande ligação.  

Marcos Faerman:

Ele lhe apresentou ao seu marido?

Rachel de Queiroz: 

Apresentou-me ao meu marido. E era o meu escort [acompanhante] quando estava divorciada, o meu escort, porque naquele tempo uma senhora não andava sozinha. O meu escort era o Nava.  

Marcos Faerman:

E o Pedro Nava tinha obsessão por anotar coisas?

Rachel de Queiroz:

E a gente não sabia para quê. E ele começou a escrever aos 70 anos.  

Marcos Faerman:

E como escreveu!

Rachel de Queiroz:

Como escreveu! Que maravilha, não é? 

Marcos Faerman:

Um escritor deslumbrante.

Jorge Escosteguy:

Rachel, a Tânia de Melo, aqui de São Paulo, pede que você diga que cinco livros você levaria para uma ilha deserta. 

 

Rachel de Queiroz:

Bem, nenhum meu.

Miriam Goldfeder:

Você já leu algum?  

Rachel de Queiroz:

Peço sugestões. Nunca pensei em ir para uma ilha deserta, não vejo com simpatia essa idéia, de forma que nunca pensei, mas peço sugestões. São os que a gente... O quê? Talvez O morro dos ventos uivantes, da Emily Brontë [(1818-1848)], talvez um [Fiódor] Dostoiévski [(1821-1881) um dos maiores escritores da literatura russa], talvez o Machado [de Assis]...

Jorge Escosteguy:

Brasileiro, só o Machado, um bem antigo? 

Rachel de Queiroz:

Não. Talvez o Angústia, do Graça [Graciliano Ramos].

Jorge Escosteguy:

Mais perto. Nenhum? 

Rachel de Queiroz:

Mais perto?

Jorge Escosteguy:

Poeta. 

Rachel de Queiroz:

Poeta, o Manuel [Bandeira (1886-1968). Poeta e cronista modernista, foi também crítico de arte, professor e pesquisador. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras]. Eu levava mais de cinco. Se pudesse, levava mais cem para me abastecer.  Se era uma ilha deserta, tinha muito tempo para ler.

Gilberto Mansur:

Rachel, como é que foi essa experiência de escrever um livro, O mistério dos MMM, um livro a várias mãos, um livro policial?  

Rachel de Queiroz:

Foi muito divertido, porque cada escritor só se preocupava com uma coisa: enrascar o próximo.

Gilberto Mansur:                                                                                          E você foi a última dos dez escritores... 

Rachel de Queiroz: 

Fizeram o emaranhado todo e me deram o abacaxi. E tive que assassinar uma porção de pessoas. 

Gilberto Mansur:

E aí não lhe deu vontade de seguir nessa literatura policial?  

Rachel de Queiroz:

Era mais uma brincadeira.

Maria Alice Barroso:

Esse livro está esgotado, Rachel? 

Rachel de Queiroz:

Acho que está. Mas tinha um outro [livro], teve outro [Brandão entre o mar e o amor], com Aníbal [Machado], Jorge Amado, José Lins, creio, e eu. Éramos cinco, não me lembro quem era o quinto.

Fábio Lucas:

Graciliano? 

Rachel de Queiroz:

Foi Graciliano.

Marcos Faerman:

Alguma outra brincadeira literária desse tipo? Você participou de algum outro jogo literário como esse? 

Rachel de Queiroz:

Acho que só esses dois livros sim que a gente fez foi mais uma brincadeira. O do MMM foi invenção de João Condé [(1912-1996) jornalista pernambucano]...

Jorge Escosteguy

[interrompendo]:         

Rachel, o Edson Oliveira, aqui de São Paulo – você manifestou durante a entrevista várias vezes o seu pessimismo –, pergunta o que você acha dessa frase do Mario Quintana, que não conseguiu entrar para a Academia...

Rachel de Queiroz

[interrompendo]: Que reverencio.

Jorge Escosteguy:

“A experiência na vida só serve para ver o tempo perdido”.  

Rachel de Queiroz:

Excelente, é lapidar, admiro muito o Quintana e gosto muito da poesia dele e votei nele quando quis entrar na Academia.  

Jorge Escosteguy:

Por que a experiência na vida só serve para ver o tempo perdido?

Rachel de Queiroz:

Porque é o que fica na memória. O que a gente fez, o que realizou sempre tem um travo [vestígio, impressão desagradável], nunca é uma coisa completa. E o tempo perdido, uma noção geral.  

Jorge Escosteguy:

Com todo esse seu baixo-astral, eu lhe perguntaria: qual seria o seu epitáfio?

Rachel de Queiroz:

“Afinal, descansei”. 

 

Jorge Escosteguy:

Bom, nós agradecemos então a presença hoje à noite, no Roda Viva, da escritora Rachel de Queiroz. Antes, eu gostaria de ler dois telefonemas que deram para você. O José Olímpio Neto diz que está feliz de ver uma amiga de tanto tempo na televisão e a prima de Beberibe, no Ceará, Maria José Bessa, telefonou. Agradecemos também aos companheiros escritores e jornalistas que ajudaram a entrevistar a Rachel de Queiroz, aos telespectadores, lembrando que as perguntas que não puderam ser feitas por telefone serão entregues à Rachel após o programa.

[A escritora faleceu em 04/11/2003, aos 93 anos, em consequência de um infarto, enquanto dormia em sua rede na cidade do Rio de Janeiro]

 

Rachel de Queiroz

                     Entrevistada pela revista Veja, de 02/10/1996

 

VEJA — A senhora acaba de ganhar o Prêmio Moinho Santista, no valor de 50 000 reais. O que vai fazer com todo esse dinheiro?
Rachel —
Vou comprar um automóvel, porque o meu está velho como o diabo.


Este é o segundo ano em que a Academia Brasileira de Letras, da qual a senhora faz parte, distribui o prêmio Senador José Ermírio de Moraes, também de 50 000 reais. Por que o premiado foi o escritor Evaldo Cabral de Mello?
A Fronda dos Mazombos coloca Evaldo na categoria de Sérgio Buarque e de Gilberto Freyre. O livro é um romance sobre a Guerra dos Mascates, em Pernambuco. É engraçado, o Evaldo é muito parecido com o irmão, João Cabral, só que mais bonito.


Neste ano não houve polêmica na escolha do premiado, como no ano passado?
Não. No ano passado nós conseguimos, a pau e corda, premiar Roberto Campos, pelo seu A Lanterna na Popa. O Chatô, de Fernando Morais, não ganhou porque o livro de Roberto Campos é muito melhor. Chatô, como best-seller, é um livro mais lido, mas apresenta a figura de Assis Chateaubriand diferente do que era. Eu trabalhei quarenta anos com Chatô. Ele era aquele irresponsável, mas não era vilão. Todo mundo que queria bem ao Chatô ficou magoado.


Como Roberto Campos acabou vencendo?
A maioria dos acadêmicos quis dar o prêmio a Roberto Campos. Mas há na academia uma minoria ruidosa de esquerdistas, que são Antonio Callado, Antonio Houaiss, Dias Gomes, Nélida Piñon, João Ubaldo Ribeiro. Então, se formou a confusão. As celeumas da Academia nunca acontecem lá dentro. O sujeito dá uma entrevista no jornal e diz o diabo. Aí quando chega à Academia a gente pergunta: como você foi falar isso? Ele responde: não foi bem assim, não foi isso que falei, e a coisa morre.


Em 1993, a senhora foi a primeira mulher a ganhar o prêmio Camões, o maior da língua portuguesa. Como aconteceu?
Isso foi porque eu era a mais velha. Num ano o Brasil ganha o Camões, no outro ganha um português, e, quando Deus permite, ganha um africano. A primeira vez em que o prêmio seria concedido a um brasileiro foi em 1990. Fomos escolhidos para eleitores, eu, dom Marcos Barbosa e Américo Jacobina Lacombe. Nós já tínhamos tramado a candidatura de João Cabral, escondido de Jorge Amado. Isso porque tudo que era prêmio ia para o Jorge Amado. Já em 1993, quando o prêmio seria novamente concedido ao Brasil, o lobby do Jorge Amado estava muito forte. Os portugueses estavam pelo Jorge e os brasileiros por mim. Jorge tinha saído de um infarto e mesmo assim foi para Portugal fazer o lobby dele. Ficou hospedado no hotel onde haveria a eleição. Josué Montello, que achava que deveria ganhar o prêmio, escreveu um artigo explicando que quem tinha direito ao prêmio era ele. O artigo era imenso, com todo o currículo dele.


Como funciona a Academia Brasileira de Letras?
A Academia é uma sociedade particular. Dizia o Olavo Bilac que a gente se intitulava imortal porque não tínhamos onde cair mortos. Mas hoje a Academia é uma instituição muito rica. Ela confraterniza, porque lá não se trata de política. O general Lyra Tavares fica aos cochichos e gargalhadas com o Dias Gomes. Não é curioso?


A Academia dá dinheiro aos imortais?
Dá um jetom muito pequeno, de 50 reais, para a gente pagar o táxi. No tempo do Athaíde, que era conhecido por ser pão-duro, o jetom era uma miséria. Não dava nem para pagar bonde, quanto mais táxi.


O senador José Sarney quer ser o próximo presidente da Academia?
Há uma corrente que quer fazer do Sarney o próximo presidente.


Por que a senhora não gostou das adaptações para a televisão de seus romances As Três Marias e Memorial de Maria Moura?
Com As Três Marias eu tive uma grande briga com o doutor Roberto Marinho, durante a qual ele se manifestava com grande cordialidade. Eu falava: “O senhor mande parar essa porcaria”. Ele me respondia: “Mas, Rachel, eu não posso. Já está gravada toda a novela”. Eu compreendia. Mas quando aparecia outra iniqüidade eu dava outra esculhambação amigável no doutor Roberto. Ele agüentava com a maior paciência. Em Maria Moura, eu exigi deles um atestado que dizia que era uma adaptação livre do original homônimo. Aceitei tudo porque eles pagavam in cash para a gente, e em dólar. De uma única vez, foram 60 000 dólares. Eles abusaram de duas coisas de que eu não gosto, sexo e violência, que não existem no meu romance.


Jorge Amado não costuma queixar-se das adaptações das obras dele para a TV.
Jorge Amado me disse que nunca viu uma adaptação dos livros dele porque sabia que ia se aborrecer muito. Só não sei se é mentira, porque o Jorge às vezes mente.


O que a senhora acha dos escritores brasileiros que têm feito sucesso nos últimos anos?
Em geral, aqueles que têm nome o conquistaram com seu valor. Fora o caso do Paulo Coelho. Ele vende milhões, é um fenômeno e também um mistério porque não pode ser pior. Tentei ler um livro dele e, honestamente, não consegui passar da página 8.


A senhora acha que hoje o marketing é tão importante quanto o talento para o sucesso de um escritor?
Eu não acredito em marketing como algo fundamental na literatura. Se houver talento, o sujeito rebenta. Monteiro Lobato só fez sucesso depois de muito tempo. Fica difícil sobreviver um longo período só do marketing. A não ser no caso do Paulo Coelho, que é um fenômeno à parte.


Há hoje na literatura brasileira uma onda de livros-reportagem. O que a senhora acha desse tipo de literatura?
Acho muito interessante porque a gente passa a ver o fato a distância. Tenho lido alguns livros nessa linha. O livro do Joel Silveira, Viagem com o Presidente Eleito, a respeito de Jânio Quadros, é uma delícia. Depende muito do talento do repórter. As histórias de guerra do Rubem Braga são ótimas. Toda onda literária, como qualquer movimento, depende dos participantes.


Em sua opinião, apareceu algum bom escritor nos últimos tempos no Brasil?
Tenho lido pouco por causa da vista. Na verdade, não gosto de citar nomes, porque, como sou muito conhecida, os amigos ficam me cobrando. Gostei muito de dois livros do Ruy Castro: Estrela Solitária e O Anjo Pornográfico. Nesse último, o Ruy fez um retrato muito fiel de Nelson Rodrigues. O livro O Último Tenente, de José Alberto Gueiros, que conta a vida do tenente Juracy Magalhães, também aprovei. Mas o que gosto mesmo é de romance, e é preciso aparecer novos bons romancistas. A gente vai ficando velha e esperando a safra nova. É verdade que quando a minha geração começou a escrever ninguém falava nada da gente. Era um grupo bom. Tinha o Graciliano Ramos, o melhor de todos, eu, o José Lins do Rego, o Jorge Amado. Só depois de algum tempo conseguimos espaço na crítica. Acho que pode surgir uma forte geração de romancistas paulistas com temas urbanos. Isso porque desde Mário de Andrade a literatura paulista não cresceu. Atualmente destacaria a Lygia Fagundes Telles, que é muito boa. Ela é de uma geração intermediária. Mas não é preciso pressa. A literatura é como floração — rebenta espontaneamente.


Qual a importância de um bom agente para o escritor?
Um bom agente nos valoriza, vende os nossos livros pelo melhor preço. No meu caso, para ir para a editora Siciliano, minha agente literária, Lúcia Riff, me colocou em leilão. Fui para a editora que pagou mais. Só a luva foi de 120 000 dólares.


Como é a vida de escritora?
Se for levar essa vida a sério, é bastante chata. Mas vivo nela toda satisfeita. Não vou a conferências nem a festas literárias. Gosto mesmo é de cozinhar e de assistir a futebol e boxe. Fico até tarde da noite para assistir a uma luta do Mike Tyson.


O boxe não é um esporte muito violento?
É, mas eles são guerreiros.


A senhora leva tanto tempo para escrever um livro que dizem que tem preguiça de escrever.
Romance é como gravidez. Aquilo fica dentro de você, crescendo, incomodando, até sair. Quando falo que meus livros saem em intervalos de quinze anos, não estou fazendo charme. Esse é o meu tempo. Memorial de Maria Moura, meu último livro, é de 1992. Antes dele, tinha publicado Dora, Doralina, em 1975. Foram, portanto, dezessete anos de intervalo. Outro romance, agora, só daqui a quinze anos.


Um livro que demora mais para ser escrito não fica melhor? O Jorge Amado, por exemplo, não acaba se repetindo?
A Tieta do Agreste, Tereza Batista, a personagem central de Tocaia Grande — são as mesmas personagens com vários nomes. Jorge Amado se repete. É muito escravo do êxito que conquistou. Depois, ele teve aquele apoio maciço do comunismo do mundo inteiro. E Jorge tem talento para fazer grandes livros. Mas ele é um personagem muito curioso. Um amigo leal, mas um homem que quer fazer a carreira dele a todo custo.


Por que a senhora não usa computador para escrever?
Sempre me perguntam, e respondo que é porque Deus não quer. Agora recebi um computador de presente e estou começando a aprender. Já havia mexido em outro, de um amigo meu, em Paris, e me dei bem com o computador francês, naturalmente atrasado, porque francês não vai colocar fora um computador só porque é de outra geração.


E por que a senhora demorou a aprender?
Eu até tentei comprar um computador. Tinha um dinheiro separado e estava decidida a gastá-lo com isso. Não demorou três dias e a Zélia Cardoso de Mello nos deixou com apenas 50 000 réis. Depois disso, eu tinha uns dólares que sobraram de uma viagem à Europa. Então disse: “Vou gastá-los com um computador”. Aí veio um ladrão aqui em casa e colocou um três oitão na minha cabeça. Ele dizia as mesmas frases da Zélia: “Estamos sem liquidez, só queremos ouro e dólares”. Rasparam a minha gaveta. Então desisti do computador. Mais recentemente, o escritor Mário Palmério, que era muito meu amigo, inclusive fui eu quem o descobri, soube da história de que eu tinha sido roubada e disse: “Rachel, eu também quero um computador e arranjei um contrabandista. Eu vou mandar buscar um para mim e outro para você”. Depois ele me ligou avisando que o contrabandista tinha sido preso.


É verdade que a senhora só dorme em rede?
Durmo em rede desde pequena. Aprendi no Ceará. A cama do meu quarto é chamada de a cama do Capistrano. Isso porque o Capistrano de Abreu também dormia numa rede e tinha uma cama ao lado. Usava-a para empilhar livros e um dia quase morreu porque os livros caíram por cima da rede dele. Minha cama também serve para guardar livros. É um depósito ótimo.


Dormir em rede não faz mal para a coluna?
Não. Nós, os inventores e usuários de redes, só nos deitamos na diagonal, porque assim ela fica rígida. Só os ignorantes aqui do Rio de Janeiro é que se deitam ao comprido na rede. Eu nunca caí de rede. Pelo contrário, caí de cama. Meu marido e eu dormíamos em duas camas paralelas. Quando ele conciliava o sono, eu fugia devagarzinho e ia dormir na minha rede.

 

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