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Grandes entrevistas

RUBENS BORBA DE MORAES

Entrevista realizada em Bragança Paulista-SP, em 15 de agosto de 1982, por Marco Aurélio Andrade de Filgueiras Gomes, publicada na revista "Rua 7", extraída do site www.portalseer.ufba.br/index.php/rua/article/.../2255

A mais antiga lembrança que tenho de Rubens Borba de Moraes é a de um velhinho em uma cadeira de balanço (na realidade, ele não era, na época, tão idoso assim; eu é que era muito jovem), contando histórias para uma atenta platéia de jovens sentados no chão. Isto aconteceu no início dos anos 70, em Brasília, onde eu estudava Arquitetura, na UnB. Um dia, uma amiga, Jardê, chegou dizendo: "Conheci um velhinho que tem histórias extraordinárias para contar. Precisamos organizar uma festa e convidá-lo para ouvi-lo". Dito e feito. A tal festa aconteceu logo depois, no apartamento que Jardê dividia com outra amiga, Vera. No final da noite, sobramos nós e ele. Naquela época, eu não sabia que ele havia sido um personagem importante na história cultural do Brasil do século XX, um dos organizadores da Semana de Arte Moderna, de 1922, participante de uma importante e pioneira experiência de política cultural no Brasil (a do Departamento Cultural de São Paulo, concebida e orquestrada por Mário de Andrade nos anos 30), além de ter sido um dos maiores e, com certeza, o mais erudito dos bibliófilos brasileiros e de ter ocupado cargos, no Brasil e no exterior, da importância de diretor da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, ou da biblioteca da ONU, em Washington. Muitos anos depois, quando preparava uma tese de doutorado, na França, sobre política cultural e intervenção em centros históricos no Brasil, tive o meu segundo e último contato com Rubens de Moraes. Naquela época, já casado com Yêda, sua ex-aluna na UnB e que com ele mantinha correspondência regular, decidimos visitá-Io em Bragança Paulista, no interior de São Paulo. Encontrei-o, então, como na realidade ele era: um misto de intelectual e grand seigneur, cercado por sua preciosa brasiliana, por sua magnífica coleção de mapas antigos e por tantas outras preciosidades que falavam da história da arte e da cultura no Brasil. Foram dias e noites de conversas infindáveis, em que ele, apesar da idade e do cigarro que nunca largava, era o último a manifestar sinais de cansaço. Em uma dessas conversas, não resisti e perguntei: "0 senhor não se incomoda se eu ligar o meu gravador?" A entrevista a seguir é resultado de uma dessas nossas conversas. A última imagem que me ficou dele foi deste encontro em Bragança Paulista, ao se despedir da gente, quando então me pareceu, subitamente, alquebrado, um velho dizendo preferir morrer a perder a visão, na época, um de seus grandes medos. Lembro-me de um aperto no coração ao intuir ser aquele o meu último encontro com a personagem extraordinária.

 

MARCO AURÉLIO. A primeira coisa que eu gostaria que o senhor falasse é sobre o ambiente cultural de São Paulo que precedeu a Semana de Arte Moderna. Como se explica que um centro provinciano, naquela época com uns 300 mil habitantes mais ou menos, fortemente marcado pela presença de imigrantes, com uma elite europeizada, possa ter visto o surgimento de um movimento que, além de romper com o "ranço" acadêmico nas artes e na cultura em geral, se volta para as coisas do Brasil, para as raízes culturais do Brasil?

                                                                                            

RUBENS BORBA DE MORAES. É difícil reconstituir hoje, em poucas palavras, o ambiente de São Paulo daquela época. São Paulo era uma cidade pequena; uma cidade de 350 mil habitantes. Era uma cidade mais ou menos do tamanho da Genebra no tempo em que eu cheguei. Em São Paulo, e como em quase todo o Brasil, existiam duas classes sociais. Existia uma elite, uma classe rica, geralmente composta de fazendeiros, um ou outro industrial de pequenas indústrias de tecidos. A indústria não pesava social ou economicamente; era o café que pesava. No Rio, 90% da elite rural era composta de famílias tradicionais: eram as famílias do século XVII, do século XVIII que eram as donas das fazendas e do cafezal. Agora, em São Paulo, havia uma coisa curiosa: as famílias rurais não eram conservadoras no sentido do progresso, o fazendeiro acreditava em progresso. As fazendas em São Paulo eram muito bem equipadas. Depois da abolição da escravidão, o fazendeiro compreendeu que precisava mecanizar para diminuir a mão-de-obra. De maneira que a filosofia do progresso existiu em São Paulo muito fortemente, mais fortemente do que no norte ou mesmo do que no sul.

 

MA. Inclusive havia um certo trânsito de pessoas ligadas às oligarquias rurais para a indústria.

 

RBM. Para a indústria... Mais tarde, alguns fazendeiros reuniram capital suficiente e fundaram pequenas indústrias. Tinha o Conde Álvares Penteado, o avô do Carlos Prado, e outros, e alguns imigrantes que fizeram grandes indústrias de tecidos: os Crespi, os Matarazzo, etc. Em São Paulo, em 22, a sociedade era assim. Havia, evidentemente, o lúmpen proletariado, que não tinha voz ativa em coisa nenhuma e estava substituindo os escravos. Os italianos que vinham para cá eram em grande número analfabetos, como o eram também os imigrantes portugueses e espanhóis. Portanto eles não tinham cultura nenhuma e eram trabalhadores braçais. Os anarquistas eram uma minoria, mas muito ativa. Eles fundaram os primeiros jomaizinhos, fizeram a primeira propaganda anarquista e socialista, mas eram "caso de polícia", pode-se dizer assim. A tal frase "o problema social no Brasil é um problema de polícia" aplicava-se nessa época. Era uma minoria tão pequena que bastava prender os chefes. A outra pergunta que fazem sempre é por que isso surgiu em São Paulo, e eu respondo, muitas vezes, com essa piada: "Porque Jesus Cristo nasceu em Belém". Em parte explica-se porque havia uma espécie de tradição nas famílias paulistas, sobretudo dos fazendeiros, de mandar o filho estudar na Europa ou nos Estados Unidos. Meu avô, por exemplo, foi estudar nos Estados Unidos, já naquela época. Nos anos 80 começaram a mandar os filhos para os Estados Unidos, enquanto no norte ainda mandavam os filhos estudar em Coimbra. São Paulo rompeu muito cedo com essa tradição de Coimbra; era do temperamento paulista acreditar no progresso. Quando os paulistas viam os Estados Unidos, acreditavam naquilo e mandavam os filhos estudar engenharia lá. Meu avô, meus tios-avós foram estudar em Cornell. Por quê Cornell? Só muito mais tarde fui descobrir por que Cornell: porque uma seita protestante fundou em São Paulo um colégio, o Mackenzie, que era um colégio revolucionário, onde não se fazia um ensino tradicional, de grego e de latim, mas de matemática e outras coisas, um ensino americano. Isso agradou muito aos paulistas, o colégio teve muito sucesso, e muitas famílias paulistas, ao invés de mandar os seus filhos estudarem no Colégio São Bento ou no Colégio São Luís, que eram colégios de jesuítas e beneditinos, começaram a mandá-los estudar no Mackenzie para adquirir aquela mentalidade de progresso, aquela coisa dos Estados Unidos. Um dos professores do Mackenzie aconselhou alguns alunos que fossem estudar nos Estados Unidos e indicou a Universidade de Cornell. Foi um grupo para lá e depois outro, e até hoje há paulista que vai estudar em Cornell. O filho do José Mindlin foi estudar em Cornell. A população brasileira em Cornell era tão grande que fizeram um jomalzinho, um jomalzinho de estudantes, em português, que existe na biblioteca de lá até hoje. Havia, portanto, um contato muito grande. Por outro lado, havia também um contato muito grande com a Europa. O fazendeiro rico ia para a Europa, gastava o seu dinheiro lá, fazia compras, trazia para cá aquelas coisas enormes e tudo. Havia, portanto, um relacionamento grande com o exterior, com a Europa e com os Estados Unidos. Eu mesmo fui estudar na Suíça, meu irmão e meus primos também. Não era só um fenômeno social e intelectual, era um fenômeno econômico também: estudar no Brasil custava muito. Uma família que morasse no interior e que mandasse os filhos estudarem em São Paulo tinha que dar uma mesada para eles morarem numa pensão. E essa mesada era quase a mesma que se dava para o filho que ia estudar na Europa ou nos Estados Unidos. O câmbio permitia isso. Meu pai dizia, por exemplo, que custava mais barato para ele mandar seu filho estudar nos Estados Unidos do que em São Paulo e pagar pensão para eles. E, de fato, eu vivia na Suíça com 150 francos, que era menos do que 150 mil-réis, e de uma maneira muito boa. São Paulo era, então, muito mais internacional do que o Rio. São Paulo estava também muito bem equipada em matéria de livrarias. As livrarias daquela época eram tão boas e tão grandes que não existe hoje em dia livraria igual àquelas. As livrarias, como a Garraux ou como outras do Rio de Janeiro, tinham estoques de 10, 15 mil volumes. Encontrava-se logo o que se queria. Pegue um catálogo da livraria Garraux de São Paulo, de 1917, de 1920; eram catálogos de 200 páginas. Os paulistas tinham onde se informar. A revista Mercure de France não se vendia somente nas livrarias, se vendia também nos postos de jornais. Tinha um posto de jornal ali perto da praça Antonio Prado que tinha diversas revistas francesas: Révue de Paris, Mercure de France e outras. De maneira que havia um contato muito estreito com a Europa. Quando eu e o Sérgio Milliet chegamos da Suíça, em 1919, depois de termos estudado lá durante muitos anos, nós estávamos muito bem informados sobre o Movimento Modernista. Nós éramos modernistas em Genebra. Nós tínhamos lido Cocteau, Aragon; a nossa revista era a Nouvelle Revue Française; estávamos a par de Apollinaire. Quando nós chegamos ao Brasil, fomos procurar os grupos de intelectuais. Eu fui procurar o Mário por relações de famílias; disseram que ele era de Araraquara como eu e tal. Trouxe todos esses livros, os emprestei ao Mário, ao Oswald, e eles ficaram entusiasmados pelo Apollinaire, pelo Aragon, pelo Cocteau, pelo Blaise Cendrars, etc. O Mário se atualizou, então.

 

MA. Ele, o Mário, nunca tinha saído do Brasil, o que não era o caso do Oswald, não é?

 

RBM. O Oswald, naquela época, tinha feito uma viagem à França, onde tomou levemente conhecimento do Movimento Modernista. Ele fez essa primeira viagem ainda muito moço. Ele absorveu aquela cultura: passava em uma galeria e via os quadros de Picasso, ficava sabendo que existia e tal. Acontece que nós formamos logo um grupo. O Mário, com aquela sede de conhecimento, aquela incrível curiosidade intelectual, nos "sugou". A gente ia em casa dele e levava uma pilha de livros franceses, o que eu tinha na biblioteca ou o que eu mandava comprar. E eu levava dele os livros portugueses e brasileiros que eu não conhecia, sobre literatura. O Mário lia aquilo tudo e se atualizava. O Mário já tinha uma formação muito forte. Não quero dizer que fui eu quem doutrinou o Mário, não, pelo contrário. Eu e o Sérgio apenas atualizamos o Mário. Ele tinha uma cultura muito vasta em literatura e em artes clássicas.

 

MA. E com o quê Mário "atualizou" o senhor e Sérgio Milliet em termos de literatura brasileira?

 

RBM. Eu lia Machado de Assis, Os Sertões, José de Alencar, o diabo a quatro! E eu lia aquilo tudo como estudioso, porque aquilo tudo para mim era uma velharia. Aconteceu que nós, também, formávamos um grupo de amigos muito unidos. Alguns literatos, como o Sérgio Milliet, como o Mário, como o Oswald, o Menotti del Picchia e outros que, embora não sendo intelectuais, eram nossos amigos também, amigos que tínhamos conhecido na sociedade, por relações de famílias. Formávamos então esse grupo. O Di Cavalcanti apareceu em São Paulo naquela época. Era um homem com um sentido muito vivo da atualidade. Ele era um caricaturista, um desenhista clássico, mas, quando viu os desenhos de Picasso e outras coisas, logo começou a compreender e se movimentar. O Di estava num "bacalhau" medonho (conto isso numas coisas que eu escrevi). Ele vivia numa pensãozinha muito mixuruca e estava preparando uma exposição para ganhar dinheiro. Discutíamos muito sobre como fazer a exposição do Di e vender seus quadros. Um belo dia, o Di teve essa idéia: "Mas, Deus do céu! Fazer uma exposiçãozinha, não. É preciso revolucionar esse país, essa coisa de parnasianismo, de soneto, de chave de ouro, essa coisa toda". Resolvemos, então, fazer uma manifestação junto à exposição do Di Cavalcanti: fazíamos a exposição do Di Cavalcanti mais umas conferências e coisas desse gênero. Nessa época o Graça Aranha tinha se aposentado como ministro plenipotenciário em Paris (naquele tempo não havia embaixadas), vinha da Europa, era muito moderno em idéias, embora nós não nos déssemos muito com a sua filosofia.

 

MA. Mas ele era de outra geração ...

 

RBM. Era. Já estava aposentado, já era um homem de seus 60 anos, membro da Academia Brasileira de Letras, tinha sido amigo de Machado de Assis. Ele se entusiasmou: "Vamos fazer uma coisa maior". Ele gostou muito daquele grupo e, talvez um pouco por vaidade, queria que nós fôssemos seus discípulos. Ele queria nos "grilar", como se diz, tomar conta daquilo que estávamos fazendo.

 

MA. Vocês eram bem jovens, não?

 

RBM. Nós tínhamos 20, 21, 22 anos. Mário era um pouco mais velho ... Resolvemos, então, fazer uma manifestação muito maior. E eu, que tenho espírito mais prático, logo disse:

- "Mas, para fazer essa coisa, precisamos de dinheiro."

E aí alguém disse:

- "Justamente com o dinheiro não tem importância. Nós vamos falar com o Paulo Prado."

O Paulo Prado era um grande senhor, um homem milionário, que ia todos os anos à Europa, tinha vivido em Paris, tinha conhecido Eça de Queiroz e estava a par do que você falasse sobre Picasso. Ele sabia, conhecia, de maneira que disse:

- "Nós vamos fazer isso. Mas é preciso fazer o seguinte: vamos arranjar o dinheiro com os homens ricos de São Paulo, eu peço para eles, e eles dão esse dinheiro para fazer isso”.

E organizamos a Semana de Arte Moderna, e esses milionários paulistas entraram com o dinheiro. As grandes famílias nos deram o dinheiro para fazer isso e depois ficaram decepcionadas com as manifestações da Semana. "Esses meninos são loucos". Mas eles deram o dinheiro porque, para eles, 3 contos de réis não significava nada. Depois, nós fizemos a revista Klaxon. Mas o que aconteceu é que as finalidades da Semana de Arte Moderna evoluíram muito rapidamente, porque a nossa idéia primitiva não era transformar o Brasil, a nossa idéia primitiva era atualizar o Brasil, atualizar a cultura brasileira.

 

MA. E a primeira idéia "prática" era organizar a exposição do Di com bastante barulho ...

 

RBM. Sim, e nós convidamos. Então, catamos as coisas mais ou menos modernas que podia haver em arquitetura, em pintura, em escultura em São Paulo. O Brecheret já tinha sido descoberto pelo Oswald e o Menotti. Mas, para trazer o público, precisava haver uma grande figura. E a grande figura que nós conhecíamos era a Guiomar Novaes, uma grande pianista. Os concertos da Guiomar enchiam de gente; ela tocava Chopin. E nós convidamos a Guiomar Novaes a vir tocar. Eu, indignado:

- "Então ela não vai tocar Chopin, ela vai tocar Satie."

E, aí, para convencer a Guiomar Novaes a tocar Satie, era meio difícil. Ela recusou-se e tocou Chopin, e tocou não sei mais que; mas acho que ela nem conhecia Satie. De maneira que, na parte musical, não conseguimos vencer. E na Semana de Arte Moderna entraram alguns que eram muito poucos modernos, mas que nós adotamos para fazer número... Bem, feito o escândalo da Semana Moderna, nós resolvemos fundar uma revista, a revista Klaxon. Muita gente me pergunta o que é klaxon. É nome da buzina de automóveis em francês. A buzina fazia aquele barulho, para chamar a atenção. Agora, o que aconteceu comigo, aconteceu com os outros também. Aconteceu com o Mário, com o Oswald e com o Sérgio Milliet. Eu cheguei aqui sem conhecer a cultura brasileira porque tinha ido para a Europa com 9 anos; voltei com 20. De maneira que eu não conhecia a cultura brasileira. Comecei a ler. Passei três meses na fazenda com um monte de livros da biblioteca da fazenda. Os livros que havia na fazenda eram ruins. Tinha muito José de Alencar, tinha Taunay, tinha aqueles autores que meu avô e meu pai liam e gostavam. De maneira que eu me atualizei. Depois, como eu tinha uma inclinação por história, fui estudar história. Eu já via história a partir de umas teorias mais modernas, que eu tinha aprendido na Universidade de Paris. Já não era uma história de fatos, das grandes pessoas e tal. Falei:

- "Mas está tudo errado! está tudo errado! Precisa-se reestudar o Brasil. O que nós temos, o que foi feito, está tudo errado. Precisamos voltar às fontes, precisamos estudar as fontes para ver como é que se evoluiu."

 

MA. Na Semana de 22, a preocupação foi basicamente atualizar, e não atualizar voltando-se para as raízes brasileiras? Não existia essa preocupação?

 

RBM. Não, não. Isso veio depois, durante a Semana, durante a Klaxon. Então nós todos começamos a estudar. Comecei a comprar livros velhos, livros antigos; daí veio a minha bibliofilia, do Guilherme de Almeida Prado e do Mário de Andrade, que também comprava muitos livros antigos. Eu fui ler tudo o que eu pude de história, de livro antigo, de manuscrito. Li o Varnhagen, o Taunay, e achava aquilo tudo antiquado. Fui ler o Simão de Vasconcelos, o Rocha Pita, os viajantes, fui ler isso e aquilo. E como nós éramos muito unidos, nós quase sempre fazíamos leituras conjuntas. Se um lia, por exemplo, o Rocha Pita, então dizia:

- "Você já leu o Rocha Pita? Você precisa lei: E eu te empresto."

E a pessoa lia. De maneira que houve um ímpeto geral muito grande para estudar as fontes e reler o Brasil.

 

MA. Existia então uma grande efervescência ...

 

RBM. Uma efervescência enorme, uma enorme curiosidade. O que nós lemos e o que nós "fuxicamos", durante aqueles anos que vão de 1922 a 1924, foi uma coisa enorme.

 

MA. Mas como é que uma juventude, pertencendo a uma elite tão europeizada, tão a par de tudo que se fazia de mais moderno na Europa, a ponto de passar, como foi o seu caso, anos seguidos na Suíça, se volta, de repente, para as coisas do Brasil? Por que se voltar para as coisas do Brasil?

 

RBM. Pela necessidade que nós sentimos de nos integrarmos ao nosso meio, de explicar aquele mundo no qual nós estávamos vivendo. O primeiro livro do Oliveira Viana, Populações Meridionais, saiu naquela época. Eu devorei esse livro e fiquei assombrado com as suas fontes filosóficas e sociais. O sociólogo que ele citava era um sociólogo do século XIX, ele não conhecia a sociologia moderna. Eu já tinha visto outras coisas, muito mais adiantadas. A vontade que tínhamos de nos integrarmos ao meio, de conhecê-lo, influiu muito. O Mário de Andrade é um caso um pouco especial, porque o Mário sempre teve, desde menino, uma espécie de "instinto de brasilidade" ou coisa desse gênero, que nós não tínhamos. Eu, por exemplo, não me sentia tanto brasileiro; eu queria ficar brasileiro. Ele não, era brasileiro e queria conhecer melhor as suas raízes. O Mário nunca tinha saído do Brasil, nunca quis sair do Brasil. Ele teve todas as possibilidades, convites para ir para os Estados Unidos, a Europa, e sempre recusou. Ele tinha essa coisa, que eu chamava de implicância. Eu dizia:

- "O que você quer Mário, é ter esta distinção: o intelectual hrasileiro moderno que nunca saiu do Brasil."

Mas, aí, aconteceu um fenômeno político que teve um impacto tremendo sobre nós. Estávamos fazendo literatura, estudando história do Brasil, querendo dar explicações - como era a escravidão, por que houve bandeirismo - e achando que estava tudo errado, que as explicações de Oliveira Viana estavam erradas, que aquilo se devia à influência de literatura de historiadores da história de Roma antiga e tal. Naquele tempo havia muitos barzinhos alemães em Santa Ifigênia, e nós éramos fregueses deles. Todas as noites nós nos reuníamos em barzinhos para beber chope. Tínhamos sempre um slogan: "Está tudo errado, é preciso refazer tudo". Todos nós tínhamos consciência de que era preciso se refazer tudo. Em 1924, num belo dia, fomos surpreendidos, num barzinho de São Paulo, por uma revolução. Era um general, o general Isidoro, fazendo uma revolução para derrubar a oligarquia. Nós caímos em nós. Quando começaram a bombardear São Paulo, e uma bomba caiu a 500 metros da minha casa, resolvemos fugir de São Paulo, porque estavam bombardeando a cidade. Bombardearam o bairro do Mário de Andrade também. Então, a população de São Paulo fugiu. Fugiram 200 mil pessoas das 400 (talvez tivesse umas 350 mil). Quem podia, fugia. Foram embora para as fazendas, para o interior, para lugares onde tinham famílias. Acabada a revolução, nós voltamos para São Paulo. No dia em que chegamos a São Paulo, terminada a revolução, nós nos encontramos e ficamos assombrados: "Mas, que coisa essa revolução!" Lembro perfeitamente de ter ouvido esta frase:

- "Nós, fazendo literatura, querendo reformar a literatura e as artes no Brasil, e tem gente que está vendo que não é preciso fazer isso. O que é preciso é reformar o sistema E ficamos, imediatamente, de acordo com o manifesto que os revolucionários tinham publicado em São Paulo, os tenentes e outros. Vimos que estávamos errados, nós estávamos fazendo castelos no ar. Queria-se criar no Brasil uma arte atual, uma literatura atual, Monsieur Blaise Cendrars, Picasso, Apollinaire e essa coisa toda, e não era isso. O problema brasileiro não era isso, era outro, era um problema social. Os manifestos nos abriram os olhos. Achamos que deveríamos tomar uma atitude. No nosso grupo tinha um rapaz que não era absolutamente literato, mas que tinha muita consciência política, era um político: era o Paulo Nogueira Filho. E ele disse:

- "Nós precisamos partir para a política. Nós, querendo fazer qualquer coisa neste país, temos que partir para a política. Partir para a política no sentido desses tenentes revolucionários".

Muito bem! E nós imaginamos então fazer um manifesto para a fundação de uma sociedade que trabalhasse para esclarecer a opinião pública sobre o problema das oligarquias, do coronelismo, da falsificação de votos e essa coisa toda. Levamos muito tempo fazendo esse manifesto. O manifesto foi principalmente redigido pelo Tássio de Almeida, que é irmão do Guilherme de Almeida e que não publicara quase nada, mas possuía uma intelectualidade extraordinária. Fizemos esse manifesto e publicamos n' O Estado de São Paulo, por relações de família. Em São Paulo, naquele tempo, nós nos conhecíamos, nos dávamos muito com Julinho Mesquita, o encontrávamos em festas, em clubes. E o Julinho Mesquita publicou o nosso manifesto, em uma seção livre, sem cobrar nada, com as nossas 12 assinaturas, os 12 fundadores: Mário de Andrade, eu, Sérgio Milliet, Couto de Barros, esse grupo de Klaxon. O manifesto teve tal repercussão que nós dissemos que, quem quisesse assinar, passasse na rua tal, número tal e assinasse. E aí foi uma coisa extraordinária: a elite intelectual de São Paulo, quer dizer, os professores da Faculdade de Direito, os grandes médicos, os grandes intelectuais assinaram o nosso manifesto, aderiram. E o movimento, na primeira reunião após o sucesso do manifesto, já contava com uma centena de pessoas com o que havia, posso dizer, de mais representativo em São Paulo. Foi aí que surgiu a idéia de fazer uma coisa maior: "Vamos fundar um partido político!"

 

MA. É aí que surge a idéia do Partido Democrático?

 

RBM. É. E começamos a procurar uma pessoa para presidente do já Partido Democrático. Nós não queríamos nenhum político do PRP, é claro; não queríamos nenhum político comprometido. Queríamos um homem de prestígio, mas que fosse neutro. Escolhemos o Conselheiro Antonio Prado, pai do Paulo Prado, que estava de acordo conosco, que estava trabalhando conosco. O conselheiro aceitou a chefia do partido, e o Partido Democrático se desenvolveu. Fizemos um estatuto do Partido Democrático, tomamos consciência da necessidade de fazer uma ação política e social. Logo depois, uns 2 ou 3 anos depois, o nosso grupo, o grupo dos moços da Semana de Arte Moderna e alguns outros que aderiram às nossas idéias foram absolutamente absorvidos pelos políticos. Os políticos nos tapearam, "grilaram" o movimento, fizeram daquilo um partido político com todas as porcarias e todas as combinações, com todas as transigências do partido político para conseguir o poder.

 

MA. O Partido Democrático foi criado, então, por uma dissidência das oligarquias rurais e pela facção culta, europeizada dessas mesmas oligarquias?

 

RBM. Eu creio que há muita coisa de verdade nisso, porque a crise de 29 afetou imediatamente o fazendeiro, o fazendeiro que produzia para exportação e que vivia do café. O café caiu de preço, não se vendia e houve uma crise. E é claro que os fazendeiros, se sentindo por baixo, prejudicados, resolveram apoiar alguma coisa que queria revolucionar e derrubar o governo porque, no Brasil, sempre se culpa o governo por tudo que acontece, inclusive quando são coisas que não são da competência do governo e que se devem a fatores internacionais. É incontestável que houve adesão de grande parte da oligarquia cafeeira, que estava descontente por causa da situação financeira. Muitos fazendeiros entraram no Partido Democrático dizendo que este partido estava fazendo uma política para proteger o café!

 

MA. Foi a "sopa no mel" para a parte da oligarquia cafeeira que estava descontente ... Foi nesse sentido que o senhor disse que os moços preocupados com a cultura foram absorvidos, ludihriados?

 

RBM. Ludibriados. E a nossa teoria, a minha, a do Couto de Barros, do Tássio de Almeida e do próprio Paulo Nogueira Filho era a seguinte: nós víamos o Partido Democrático como um partido que não aspiraria ao poder tão cedo, mas um partido que formaria uma opinião pública tão forte, que pudesse reformar a coisa básica que era o veículo eleitoral, fazer o voto secreto. Porque o voto secreto, por si, resolveria o problema das oligarquias, pois o povo iria votar contra aquela gente.

 

MA. Mas esses jovens esclarecidos, que defendiam a idéia do voto secreto, também pertenciam às oligarquias, não? Qual era a origem de classe deles?

 

RBM. Todos eram de famílias ricas.

 

MA. Ou parentes pobres de famílias ricas ...

 

RBM. Um ou outro. O Mário de Andrade, por exemplo, era parente pobre de uma família rica. O Sérgio Milliet era parente pobre de uma família rica. Minha família estava bem ainda. Naturalmente que a queda do café afetou muito. Eu não trabalhava, vivia, como dizia um do grupo, das liberalidades de uma avó que me adorava. Era disso que eu vivia. Vivia de mesada e da herança de meu pai. Quando a família me dizia:

- "Você precisa trabalhar, você precisa trabalhar. Um paulista que não trabalha!" - e não sei mais o quê.

Eu dizia:

- "Trabalha-se para quê? Para ganhar dinheiro. Eu tenho dinheiro. Para que vou trabalhar?"

Então, eu fazia literatura. Quando acabou minha herança, eu fui trabalhar. Enquanto eu tive herança, eu não trabalhei, eu fazia literatura. Quando vieram as primeiras eleições, foi aquela coisa que toda gente sabe. Foi aquela reação medonha, e o Partido Democrático conseguiu, apesar da falsificação tremenda das eleições, eleger deputados estaduais. O movimento era um movimento triunfante. Tudo isto é tão estudado, tão conhecido que não adianta a gente falar. Agora, o que é preciso compreender é que esse grupo de modernistas teve uma repercussão extraordinária. Parece que chegamos no momento exato, quando a literatura e as artes brasileiras estavam numa crise medonha. Os poetas mais modernos eram os penumbristas. Poetas que ainda estavam em Verlaine, em Mallarmé. Mallarmé não, nem isso. Les Fleurs du Mal era um livro moderníssimo no Brasil. Verlaine só era compreendido por uma elite muito adiantada. De maneira que, em pintura, em escultura, nas artes plásticas era o academicismo. Havia o fenômeno da Anita Malfatti. O sucesso foi muito grande, houve grande repercussão, e logo o pessoal do Rio aderiu, alguns do norte também.

 

MA. Bem, de tudo isso que o senhor falou, se percehe a preocupação que esses jovens, essas pessoas que fundaram a Klaxon, depois o Partido Democrático, tinham com a cultura. Teria sido o primeiro momento em que se pensou na cultura em termos políticos e na institucionalização da cultura.

RBM. Não há dúvida de que foi o primeiro movimento, vamos dizer, artístico que não era somente artístico, mas tinha intenções políticas e sociais. Eu tinha uma formação socialista, pelo fato de ter estudado em Genebra, ter assistido à Revolução Russa, de Genebra, que era um centro formidável. Eu era daquele grupo Clarté, eu assinava a revista Clarté, e as minhas idéias eram as idéias do grupo Clarté, do Barbusse e daquele francês que foi contra a guerra, que se refugiou em Genebra, o Romain Rolland, que eu conheci pessoalmente em Genebra. Eu era Romain Rolland e grupo Clarté e convencia os meus amigos de São Paulo a serem mais ou menos assim, a acreditar naquilo. Eu recebia as publicações do Clarté, passava adiante, do Romain Rolland e tudo isso.

 

MA. E a preocupação política com a cultura fica bastante clara, se acentua depois da Revolução de 30 e do fracasso de 32, não é? Então é aí que se começam a materialar projetos como o Departamento de Cultura, a Escola de Sociologia e Política?

 

RBM. A origem da Escola de Sociologia e Política é bem característica disso. Acabada a Revolução de 30, nós ficamos contra. O nosso grupo estava absorvido pelos políticos do Partido Democrático. Nós não tínhamos mais voz ativa nenhuma no partido. Fundamos, então, o jornal Diário Nacional, que era o órgão do Partido Democrático. Os políticos do partido acharam que deviam nos entregar o jornal, porque nós sabíamos escrever, éramos jornalistas, vamos dizer. Tanto que o diretor do jornal era o Paulo Nogueira Filho, que era do nosso grupo; o redator-chefe era o Couto de Barros, que era de Klaxon; o Sérgio Milliet era o gerente, e eu era um colaborador avulso, porque naquele tempo eu ainda vivia de rendas, não queria ter emprego, com obrigação de levantar cedo, etc. Quando nós vimos a Revolução de 30 triunfar, ficamos decepcionados. Ficamos muito decepcionados porque nós vimos que estávamos substituindo uma política, que nós não tínhamos feito progresso nenhum, que nós tínhamos substituído o senhor Washington Luís, com todos os defeitos dele, pelo senhor Getúlio Vargas, que tinha todos os defeitos daquele.

 

MA. Quando o senhor diz ".nós" , é porque houve adesão do Partido Democrático ao movimento de 30?

 

RBM. Sim. O Partido Democrático é que fez a ligação que preparou a Revolução de 30. O Paulo Nogueira Filho vivia no sul conversando com o Osvaldo Aranha e com o Getúlio e preparando a revolução. Naquela época, o Luís Carlos Prestes estava em Buenos Aires. O Partido Democrático, o grupo intelectual acreditava não ser possível fazer uma revolução no Brasil pelo voto, já que não se admitia o voto secreto e que as eleições que haviam acontecido tinham sido falsificadas, então, nós achamos que só havia uma solução: a revolução. O nosso grupo do Diário Nacional e alguns dos chefes políticos mais adiantados, um pouco mais ligados a nós e que comungavam mais ou menos nas nossas idéias, resolveram me mandar para Buenos Aires conversar com o Luís Carlos Prestes. Ele e quase toda a coluna Prestes estavam em Buenos Aires, em situação financeira pavorosa, passando necessidades. Nós fizemos uma coleta no Partido Democrático e arranjamos 60 contos de réis para ajudar o Luís Carlos Prestes. Eu fui levar o dinheiro para Buenos Aires, passei lá uma semana, creio que até menos. Encontrei-me com o Luís Carlos Prestes e passei três ou quatro dias conversando com ele, dia e noite. Ele me assombrou, porque estava admiravelmente bem informado do que se passava aqui. Ele sabia da Semana, tinha lido o Mário de Andrade, tinha lido o Oswald, tinha lido tudo, tinha lido Klaxon; ele me conhecia, tinha lido coisas minhas. E, com uma clarividência que me assombrou, disse:

- "Vocês são um grupo de intelectuais idealistas e vão ser engolidos pelos políticos. Vocês vão ficar completamente liquidados pelos políticos do Partido Democrático, que é uma outra oligarquia querendo substituir essa oligarquia. Estão embrulhando vocês."

Nós sabíamos que o nosso grupo estava sendo engolido e nós queríamos lutar contra isso. Achávamos que a revolução poderia dar chance a nossas idéias, trazendo ao poder essa nova oligarquia, mas que era incontestavelmente uma oligarquia muito melhor que a oligarquia do PRP. Eu voltei de Buenos Aires e reuni o grupo em São Paulo. Quando eu estava a bordo, recebi um telegrama cifrado do Paulo Nogueira, me dizendo para ir direto para o Rio e não parar em São Paulo. Então, eu continuei no navio até o Rio de Janeiro, e lá estavam me esperando o Paulo Nogueira Filho e o Assis Brasil. O Assis Brasil me levou para casa dele e perguntou:

- "E então?"

Eu contei tintim por tintim o que o Luís tinha dito e disse-lhe:

- "Olhe, DI'. Assis Brasil, o Luís Carlos Prestes não adere à revolução. Ele se recusou a aderir. E eu tenho a impressão de que ele é comunista."

Eu me lembro perfeitamente da cara do Leão da Metro, como se chamava ele, dizendo:

- "Ora, Rubens não diga isso! Ele não é comunista."

E eu:

- "Ele é comunista, ele tem uma argumentação, prega termos marxistas. Eu conheço isso porque vi isso em Genebra. Eu vivi nesse ambiente marxista de Genebra como estudante."

- "Ah! Não, Rubens!"

Por fim, uma coisinha engraçada: o Luís Carlos Prestes tinha perdido dois dentes na frente, e isso preocupava muito o Assis Brasil. Disse que lhe dava um aspecto ruim. Então,

ele perguntou:

- "O Luís Carlos Prestes já pôs os dentes?"

- "Pôs, sim senhor."

- "Ah! sim, porque estava muito feio ..."

A Revolução de 30 veio e nós, no dia seguinte, ficamos contra.

 

MA. E os políticos "tradicionais" do Partido Democrático aderiram imediatamente, compuseram com o novo governo?

 

RBM. Aderiram imediatamente, mas quando o João Alberto tornou conta de São Paulo, ocupou São Paulo, porque foi uma ocupação do Estado de São Paulo, houve demissão de tudo que era posto, colocando no lugar gente do Rio Grande. Isso, em São Paulo, não se admite; São Paulo ser governado por outra gente que não paulista, isso não se admite, corno os mineiros não admitem, corno os pernambucanos não admitem! De maneira que se criou um ambiente de revolta contra o governo ditatorial. E nós vimos que o Getúlio não saía da ditadura. Nós vimos que estávamos perdidos. Nós tínhamos substituído um homem chamado Washington Luís por um homem chamado Getúlio, mas os dois eram iguais. Eram dois ditadores iguais. E aí, fazer o quê? A indignação dos paulistas foi tão grande que surgiu, naquela época, o movimento separatista.

 

MA. Que deu em 32.

 

RBM. Que deu em 32. Nesse movimento separatista, eu fiquei separatista fanático. Todo nosso grupo ficou, menos o Mário de Andrade. O Mário de Andrade não aderiu às minhas atividades separatistas. Eu até comecei a escrever um livro chamado “Só Separando”. Escrevi o primeiro capítulo e contava corno era o segundo. Publiquei num jornal clandestino, chamado O Separatista. Ainda tenho alguns números dele aí. Fizemos urna campanha separatista enorme. Olhe, nas vésperas de 32, eu não exagero dizendo que 80% da população de São Paulo era separatista. A revolução de 32 foi aquele fracasso. Eu, naquela época, fundei a Liga de Defesa Paulista, que era justamente para defender São Paulo. Ela organizava comícios, fazia publicações, jogava coisas clandestinas, etc. Depois nós fundamos o Batalhão da Liga de Defesa Paulista. Eu, corno um dos fundadores da Liga de Defesa Paulista, me inscrevi no batalhão, fiz a revolução inteira, o diabo a quatro. Escapei, porque tive que escapar; morreu muita gente. Acabada a revolução de 32, nós ficamos absolutamente liquidados. Fazer o quê? Aí então, conversando, refletindo, nós voltamos à nossa velha idéia.

 

MA. À idéia de preparar a opinião pública?

 

RBM. À idéia original: é preciso preparar a opinião pública, é preciso formar urna nova elite cultural, é preciso mudar os quadros, porque nesse país não se estuda sociologia, não há cadeira de Sociologia, não há cadeira de Política, não há urna cadeira de Estatística, não há urna cadeira de Ciências Econômicas. E nós então, principalmente o Sérgio Milliet, o Tássio de Almeida, o Ciro Berlinque, a quem nós ficamos ligados por causa da revolução de 32 (na revolução de 32 ele teve um papel muito saliente corno engenheiro, inventando bombas e coisas assim), fizemos um programa. Mas cadê o dinheiro? O Ciro Berlinque, que era industrial, fabricava tinta para jornal e era fornecedor do nosso jornal O Diário Nacional, falou:

- "Mas aqui tem um homem, um grande industrial, o Simonsen, que topa uma idéia desta. Ele é um homem muito adiantado."

Nós ficamos meio assim, porque o Simonsen era um homem que tinha ganho dinheiro com contratos de governo, tinha construído os quartéis (aquele grande plano de construir quartéis), tinha enriquecido nisso e era representante dos banqueiros ingleses aqui. Mas era um homem comprometido, de idéias muito liberais, muito adiantado em questões econômicas. Nós fornos falar com ele. O Roberto Simonsen não hesitou um minuto. Disse:

- "Façam e me digam de quanto vocês precisam."

Então fundamos a Escola de Sociologia e Política, mas havia dificuldade em encontrar professores para as coisas que nós queríamos fazer. Importamos gente dos Estados Unidos, da Europa e fizemos a Escola de Sociologia, que foi um sucesso. Muitos se inscreveram, principalmente gente já formada, muito advogado, muito médico. E a Escola de Sociologia e Política durou bastante tempo, existe até hoje e formou de fato. . Eu me lembro das gargalhadas de um primo meu, que era o tipo de coronel do PRP. Lá em Araraquara era ele quem mandava nas eleições, quem mandava falsificar as eleições e fazia tudo isso, mas era muito meu amigo, era um homem muito gente, corno são geralmente esses coronéis quando a gente não vai contra os interesses deles. Eu fui a Araraquara visitar a família, e ele então encontrou-se comigo e falou:

- "Ah! vocês estão fundando uma escola onde se ensina política! Quá, quá, quá!"

Ele dava gargalhadas.

- "Mande eles para cá, para Araraquara, que eu ensino como é que se fazem eleições!"

Era esta a concepção que se tinha de política naquela época. Nosso professor de política, que nós importamos dos Estados Unidos, era comunista. Nós não sabíamos. Ele era um expert, e as aulas dele eram extraordinárias, muito boas, mas positivamente marxistas. Aí o Roberto Simonse achou que nós estávamos exagerando

- "Vocês virem pregar comunismo aqui, tamhém não, rapazes!"

E mandou o homem de volta. Veio um inglês, liberal. O professor de sociologia era um americano excelente, que ensinou a sociologia moderna. Nós fizemos também uma cadeira de Biologia, porque não se estudava biologia. Estudava-se medicina, mas não biologia. E havia em São Paulo o Dreifuss, um professor de biologia, que depois foi também professor da USP. Era ele que dava o curso de Biologia. Havia cursos de Teoria da Educação; o professor era o Almeida Júnior, um grande professor, professor da Faculdade de Letras, um homem esplêndido. Enfim, na Escola de Sociologia, fez-se a experiência de formar gente com uma visão diferente. Acontece que a política evoluiu, e nós não estávamos satisfeitos com aquilo. Estávamos pensando que precisávamos fazer uma coisa menos teórica, uma coisa mais ativa. Nós nos reuníamos sempre à noite. Íamos muito ao apartamento do Paulo Duarte, que era um homem político, do Partido Democrático, e que tinha sido preso diversas vezes pelo PRP. Ele teve um papel muito importante na revolução de 24. Era do nosso grupo, nosso amigo. Nós nos reuníamos lá e resolvemos fazer uma instituição governamental que cuidasse da cultura.

 

MA. E isso era possível: uma instituição dentro de um governo ao qual vocês se opunham?

 

RBM. Nós fizemos o projeto, mas ninguém queria executar, é claro. Nós não tínhamos força para fazer o governo adotar um departamento de cultura. E o Paulo Duarte dizia:

- "Não tem importância. Vamos fazer porque um dia vai surgir um governador de São Paulo que vai topar isso."

E nós fomos aperfeiçoando aquilo, até distribuirmos os cargos. Eu, por exemplo, fui para a Biblioteca; o Mário de Andrade, para diretor-geral do Departamento; o Sérgio Milliet, para o Departamento Social; um outro, para o Departamento de Parques Infantis. Um belo dia, em uma reviravolta no governo, surge o Armando Salles de Oliveira como governador, como interventor. Ele era nosso amigo, sobretudo amigo do Paulo Duarte. Fomos procurá-lo  expusemos a coisa, e ele falou:

- "É uma idéia genial. Nós precisamos fazer isso!"

 

MA. Ele era genro do Mesquita, não?

 

RBM. Ele era genro do Mesquita, daí nossas relações. Nós nos conhecíamos porque o Julinho Mesquita acabou sendo muito nosso amigo. O Estado de São Paulo sempre nos apoiou e apoiou o Partido Democrático. Então, ele disse:

- "Mas é o diaho! Acontece o seguinte: eu estou assumindo o governo de São Paulo com os cofres vazios, e não tenho dinheiro para fazer isso. Pegarmos isso sem dinheiro para investir, vai ser um fracasso. Mas eu nomeei o Prado para Prefeito - o Fáhio Prado -, e eu vou falar com ele. Conversem com ele também."

Nós conhecíamos o Fábio de relações sociais. Nós freqüentávamos as mesmas casas, os mesmos salões, os mesmos bailes, as mesmas festas. Nós o conhecíamos como um homem muito rico, muito inteligente, muito a par das coisas. Você conversava com ele sobre Picasso, e ele sabia quem era. Ele estava a par porque ia freqüentemente à Europa. Fomos procurar o Fábio Prado, aliás foi o Paulo Duarte quem foi procurá-lo. E o Fábio então disse:

- "Eu já conversei com Armando e estou de perfeito acordo. Façam os decretos, façam as leis. Tragam que eu assino."

Ele, então, criou o Departamento de Cultura. E nós entramos no Departamento de Cultura.

 

MA. Isso foi em 36 ...

  

RBM. Em 36, mais ou menos. Entramos no Departamento de Cultura com uma gana tremenda de fazer coisas, tendo o prefeito na mão, nos apoiando em gênero, número e caso e nos apoiando contra a política. Nós tínhamos carta branca para as nomeações; ele não discutia. Os jornais começaram até a nos atacar porque achavam que nós estávamos nomeando gente de outros partidos, mas nós não tínhamos nada com isso. Muitos jornais nos atacavam: "Foi nomeado ontem para chefe da divisão de não sei que, o senhor Fulano de tal, que é um PRPista sem vergonha, e esses meninos estão aí fazendo ..." O impacto do Departamento de Cultura foi tão grande que, hoje em dia, é que a gente vê a importância que ele teve. Era a primeira vez, no Brasil, que um governo se interessava pela cultura e não pelo poder, não só pela cultura mas também pelos problemas sociais. Por exemplo, os parques infantis foram criação nossa. A merenda, a merenda escolar que existe hoje, foi iniciativa nossa. Nos parques infantis tinha merenda. As bibliotecas, então, foi uma revolução. Depois, eu fundei a Escola de Biblioteconomia, que foi a primeira Escola de Biblioteconomia do Brasil, de maneira que nós inovamos muito nessa coisa, e com uma gana! Nós trabalhávamos 12, 14 horas por dia, não tinha hora para trabalhar, era aquele entusiasmo! E sendo sempre apoiados. Eu chegava para o Fábio e dizia:

- "Dr. Fáhio, eu preciso de 200 contos."

- "Mas para quê você quer 200 contos?"

- "Ah! eu preciso reformar isso, preciso fazer isso”

Ele dizia:

- "Pois não."

Ele me dava. Era assim.

 

MA. Vocês tinham o prefeito e o interventor?

 

RBM. Tínhamos o prefeito e o governador. Então a gente podia fazer a cultura que queria. O Mário de Andrade chegou a fazer coisas que alguns de nós achavam que não eram prioritárias, como, por exemplo, o congresso da língua brasileira falada. Dizíamos:

- "Mário, tenha paciência! Há coisas mais importantes!"

Mas o Mário queria fazer isso, resolver esse problema que para os músicos era da maior importância, a língua que se deve falar cantando. De maneira que foi um sucesso o Departamento de Cultura. Sucesso! E a parte, vamos dizer, social que nós fizemos ficou muito enraizada, tanto que a criação de parques infantis, de uma maneira pedagógica e ao mesmo tempo de assistência social, com merenda, tudo isso pegou. As populações dos bairros, todas queriam ter parque infantil. O Fábio Prado dizia:

- "Não é possível! Eu não tenho dinheiro para fazer tanto parque infantil!"

E nós fazíamos aquilo baseados não em injunções políticas. O Departamento de Sociologia do Departamento de Cultura fazia um estudo sobre a população, via onde havia necessidade mais premente para colocar uma biblioteca, colocar isso, fazer aquilo. E foi um sucesso.

 

MA. Parece que, mais ou menos nessa época, vocês tinham a idéia de fundar um Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico, que acabou não dando em nada.

 

RBM. Tínhamos. Há duas coisas que acabamos não realizando: uma foi o Departamento de Patrimônio Histórico. Tínhamos essa idéia e chegamos a estudá-la muito. O Mário estudou muito a questão, e nós começamos, naquela época, a ver o que havia em São Paulo que precisava ser preservado. Não só em São Paulo, mas na periferia de cidade também. Mas nada conseguimos realizar, porque não havia dinheiro.

 

MA. Então não era uma coisa prioritária?

 

RBM. Não, outras coisas eram prioritárias. O problema das bibliotecas era prioritário, o dos parques infantis era prioritário também. A outra coisa que nós não conseguimos – só fundamos "no papel" - era uma Rádio Educadora. Até já tinha um diretor, nós achamos que o Guilherme de Almeida é que devia ser o diretor de uma Rádio Cultura da Prefeitura de São Paulo. Não pudemos fazê-la porque o equipamento para uma estação de rádio como nós queríamos custava muito caro. Então, o Fábio disse:

- "Não, vamos deixar isso para mais tarde. Nós não podemos fazer agora, o patrimônio também não podemos fazer agora, não temos dinheiro."

Deixamos guardado, veio o golpe de 37 e liquidou tudo.

 

MA. No caso do Patrimônio Histórico, por exemplo, se vocês tivessem tido condições de realizar o projeto, o que teria sido feito? Como vocês encaravam esta questão?

 

RBM. O que nós pensávamos era mais ou menos o que foi feito para o Patrimônio Histórico pelo Mário de Andrade e o Rodrigo de Mel10 Franco; exatamente aquilo. Nós começamos a viajar, a ver o que existia. Como nós éramos de nível municipal, nós não podíamos ir além do Município de São Paulo. Nós tínhamos, todos, a idéia de que, no dia em que o Armando subisse e endireitasse as finanças do estado, ele faria o Departamento de Cultura do Estado, e nós teríamos uma ação muito maior, e todas as funções seriam maiores. Não conseguimos fazer isso. Naquela época, eu não participei muito disso, porque estava assoberbado com os problemas das bibliotecas. O Mário de Andrade é que estudou melhor isso.

 

MA. Foi nessa época que o Capanema o convida para redigir o projeto do que seria o SPHAN?

 

RBM. Foi. O Mário de Andrade tinha estudado o problema. Nós fazíamos pequenas viagens aos sábados e domingos; nós saíamos no Fordeck do Paulo Duarte e íamos ver o que havia em São Paulo. A dificuldade para se descobrir o que havia de histórico em São Paulo era tremenda! Ninguém sabia nada. Mas havia em São Paulo um homem do Instituto Histórico, o senhor Aguirre, um desses historiadores muito simpáticos, que sabem de tudo, mas que sabem só na cabeça, nunca escrevem nada. Se você precisava, por exemplo, saber do inventário de um descendente de Borba Gato, ele falava assim:

- "Ah! esse inventário está em Itu, no Cartório do Primeiro Ofício."

Você dizia:

- "Mas me diga uma coisa, onde é o lugar exato onde Pedro I proclamou a Independência?"

Ele dizia:

- "Foi aqui, exatamente aqui, por causa disso e tal."

Era um homem assim. Nós íamos ao Aguirre, e ele nos dizia:

- "Ah! vocês precisam ir ver uma casa que tem, do século XVI."

Íamos, às vezes por estradas incríveis, às vezes andando a pé, descobrindo coisas. Descobríamos aquelas coisas e tomávamos as decisões do que iríamos fazer, o que tombar, etc.

 

MA. Mas por que vocês se preocupavam com o passado, com o que havia restado do passado?

RBM. Porque no fundo éramos um pouco historiadores. A preocupação com o passado era muito grande; em mim, era tremenda. O que me interessou sempre na vida foi história. O Mário de Andrade também. Ele tinha ido a Minas ver as coisas antigas, e nós todos tínhamos essa preocupação. Nós éramos de famílias muito antigas, de maneira que esse passado nos dizia qualquer coisa. Ir ver a casa do Borba Gato em Sabará, para mim, era emocionante, porque eu sou descendente dele. O Mário de Andrade via o sítio de não sei que lá e dizia:

- "Isso pertenceu a Fulano."

Tinha essa coisa do paulista de 400 anos. Ele tinha curiosidade, como se fosse uma coisa da sua família.

 

MA. Era, de certa forma, uma busca das próprias origens.

 

RBM. Uma busca das próprias origens. Isso eu sentia muito em mim, e os outros sentiam. Tanto que os que não eram de famílias tão antigas não ficavam entusiasmados com isso, como o Couto de Barros, que não se emocionava tanto com isto. O golpe de 37 liquidou tudo, e o Prestes Maia veio e liquidou o Departamento de Cultura com a maior violência. O Mário foi a ele e falou:

- "Bem, nesse caso eu acho melhor pedir demissão."

Ele respondeu:

- "Já devia ter feiro antes."

Demitiu o Mário de Andrade como se despede um ...

 

MA. Mas, ao mesmo tempo em que isso foi um golpe fatal nos planos e nas realizações de vocês, por outro lado houve uma recuperação, uma retomada de tudo isso pelo Estado Novo, não? Os Departamentos de Cultura, por exemplo, foram criados em outras cidades.

RM. Em outras cidades, a exemplo do que se criou em São Paulo. De maneira que a nossa semente frutificou, embora se tivesse destruído a vitalidade, a importância que tinha o Departamento de Cultura. Uma porção de estados viu aquilo, achou interessante e começou a fazer; alguns, por questões eleitorais, por questões de política, para que se ganhasse prestígio ou voto e coisa e tal. Mas frutificou. O movimento de bibliotecas teve uma repercussão enorme no Brasil inteiro. Eu fiquei conhecido nesses meios, tanto que, quando eu saí da Biblioteca Municipal de São Paulo, quando fui demitido pelo Prestes Maia, imediatamente me chamaram para o Rio de Janeiro, para ver o problema da Biblioteca Nacional. A destruição do Departamento de Cultura teve repercussão tão grande que, quando fui demitido, o Gilberto Freyre escreveu um artigo nos jornais protestando contra a minha deposição, falando do que eu estava fazendo em São Paulo. Quer dizer que já tinha uma repercussão nacional, não era mais uma coisa municipal. O Capanema então mandou me chamar, e eu fui fazer aquela coisa lá, que acabou não dando em nada também, por questões políticas. Mas o Capanema era um homem muito curioso, um homem de grandes idéias, muito culto. Contam uma anedota que define bem o Capanema. Dizem que, uma vez, uma comissão de matemáticos, astrônomos, etc., foi expor para o Getúlio a necessidade de reformar o Observatório Nacional do Rio de Janeiro, que estava em mísero estado, e de criar um planetário no Rio de Janeiro. E o Getúlio disse:

- "Mas, senhores, nós já temos o planetário aqui no Brasil, aqui no Rio de Janeiro. É a cabeça do Capanema. A cabeça do Capanema é o planetário."

O Capanema era isso. Ele tinha um mentor, que era o Carlos Drummond de Andrade, chefe de gabinete dele. Evidentemente, ele estava muito bem orientado.

 

MA. Ele era mineiro também.

 

RBM. Ele era mineiro também. Como você sabe, você, que é mineiro, os mineiros são unidos, são muito mais unidos do que os paulistas, quase tanto quanto os pemambucanos. E

aqueles mineiros que rodeavam o Capanema eram todos da Semana de Arte Moderna em Minas, vamos dizer. Eram os modernistas de Minas. E o Carlos Drummond de Andrade, dizia:

- "Não, para isto precisa chamar o Rubens em São Paulo, precisa chamar o Mário de Andrade."

Então o Capanema encomendou ao Mário de Andrade um projeto do Patrimônio Histórico Nacional. O Mário debruçou-se sobre aquilo, pegando o nosso departamento, o departamento que nós nunca realizamos em São Paulo. Discutiu com o Rodrigo, e tudo isso. Mudou-se para o Rio de Janeiro. O Capanema pagava para ele um pró-Iabore por mês para ele se sustentar, para poder trabalhar para ele.

 

MA. Quer dizer que, quando ele faz o projeto encomendado pelo Capanema, ele se baseia no projeto inicial de vocês?

 

RBM. No que nós pretendíamos fazer em São Paulo, nas idéias iniciais do que nós pretendíamos fazer em São Paulo e que ficou apenas em idéias. Então, ele faz aquele anteprojeto, discute com Rodrigo, que era um homem extraordinário, não só como mentalidade, como intelectualidade, mas também como capacidade de organização, e com aquela habilidade mineira de manejar apolítica. Ele conseguiu fazer coisas extraordinárias, apesar de toda a inércia, da burocracia e da má vontade dos ministros que sucederam ao Capanema.

 

MA. Quer dizer então que, de opositores a Vargas, vocês viram posteriormente a possibilidade de desenvolver uma ação na área da cultura, dentro do próprio governo Vargas?

 

RBM. Dentro do próprio governo de Getúlio Vargas. Quando eu fui para o Rio de Janeiro, fui xingado, principalmente por minha família, que me dizia:

- "Mas você sempre foi contra Getúlio e agora você está aceitando uma nomeação pelo Getúlio Vargas!"

Eu falei:

- "Não me interessa quem está no governo, me interessa que o que eu quero fazer são as bibliotecas no Brasil. É isso que me interessa. Agora, se este governo quer fazer isto, eu sou um técnico a serviço dele." O Mário raciocinava da mesma maneira. Ele era tremendamente contra Getúlio também. Mas nós não estávamos servindo a um governo; nós estávamos servindo a uma idéia, a uma cultura, a uma coisa superior a governo. E quando o Getúlio caiu, veio o General Dutra, eu continuei.

 

MA. Em 45.

 

RBM. Em 45. Eu pedi demissão, o novo ministro que veio me confirmou no cargo. Eu não estava de acordo com Getúlio, estava de acordo em derrubar o Getúlio, mas não estava de acordo em botar o General Dutra. Estava de acordo com outra coisa. Mas eu queria fazer as bibliotecas, era o que me interessava. Eu queria, como nós todos, me servir da política para realizar nossas idéias. E nós conseguíamos apoio. Conseguimos apoio. Todos os ministros que sucederam a Capanema sempre me deram o maior apoio, até o último que, querendo ser governador da Bahia, precisava do apoio do senador Freire, que queria dar o cargo de diretor da Biblioteca Nacional a um apadrinhado dele. Então me botou na rua. No momento em que eu fui posto na rua, renunciei a tudo, larguei mão de tudo e fui embora para o estrangeiro. Então falei:

- "Não tem mais remédio neste país, né? A política intervém em tudo."

A minha demissão teve uma repercussão que eu não imaginava. Os jornais americanos deram a notícia. Uma revista publicou um artigo dizendo que a situação da Biblioteca Nacional era calamitosa, que eu estava fazendo uma administração extraordinária, tinha realizado isso e isso e que, agora, por questões políticas, eu estava na rua, e que ia voltar tudo pra trás. O jornal americano tem uma grande força na opinião pública (em um jornal de Boston sai um artigo sobre mim também), e souberam nas Nações Unidas que eu estava disponível. Imediatamente a ONU, que tinha sido fundada nas vésperas, em 48, escreveu uma carta perguntando se eu queria ir para a Biblioteca da ONU. Eu então resolvi largar o Brasil. E disse:

- "Não há esperança de se realizar qualquer coisa séria neste país, porque a política vai atrapalhar tudo. Vou trabalhar num outro nível, num nível internacional, onde não há politiquinha." Fui para a ONU e fiquei 1O anos lá, até me aposentar. Agora, os outros, depois do golpe de 37, quase todos abandonaram, porque já tínhamos 20 anos de luta, estávamos cansados. O Tássio de Almeida foi fazer advocacia; o Mário de Andrade foi cuidar de patrimônio e, depois que acabou esse negócio de patrimônio, ele ficou no Patrimônio de São Paulo até morrer, mais ou menos como um consultor, não como um executivo. O Mário também já estava cansado e muito doente. O Couto de Barros, que era uma cabeça, nós não o víamos muito, largou mão de tudo, comprou uma fazendinha aqui em Campinas, foi morar na fazenda. E assim, quase todos se dispersaram, acabou aquele movimento, aquele grupo se desfez.

MA. Essa dispersão aconteceu mais ou menos na segunda metade dos anos 40?

 

RBM. É, depois da guerra.

 

MA. Mas, na época do Estado Novo, vocês ainda estavam mais ou menos juntos e trabalhando. Nessa época, como a questão da cultura era encarada pelo governo?

 

RBM. O governo de Getúlio fazia cultura como um elemento de propaganda, disso não há dúvida. O Getúlio era um homem que não tinha nenhuma ideologia, nenhuma preocupação, senão a de se manter no poder, de fazer a política dele, de chefete gaúcho, de caudilho gaúcho. Ele dava pouco dinheiro ao Capanema, achando graça. Apoiava os projetos do Capanema, dizendo que a cabeça dele era um planetário. Era isso! Dentro dessa margem, a gente conseguia alguma coisa. Eu consegui muito dinheiro para a Biblioteca Nacional, o Mário conseguiu tocar o Departamento de Cultura, e o Rodrigo conseguiu tocar o Departamento do Patrimônio. Não como ele queria, é claro, mas com os recursos que ele obtinha. O que aconteceu no fenômeno cultura no Brasil foi o seguinte: nós compreendemos muito cedo que nós não poderíamos fazer, particularmente, cultura no Brasil. A cultura no Brasil precisava ser apoiada. Não havia fundações, não havia milionários no Brasil que dessem dinheiro para fazer uma biblioteca, ou para fazer um auditório para concertos, ou que criassem parques infantis, ou que resolvessem dar dinheiro para fazer lanches nas fábricas e tudo isso. Nós vimos que isto só podia ser feito pelo governo. Então, nós utilizamos o governo, sem nos interessarmos absolutamente com a ideologia dele. O que nós queríamos era a nossa ideologia de fazer cultura e nos servimos do governo. O governo, por sua vez, serviu-se muito de nós para fazer a sua propaganda. O Capanema arrotava grosso com o seu Patrimônio Histórico, também o Getúlio, e tudo isso às nossas custas. A nós não nos interessava, o que nós queríamos era fazer aquela cultura.

 

MA. Quer dizer que, tanto quanto vocês, depois do fracasso de 32, encaravam a cultura a partir de uma perspectiva política, também o governo de Getúlio e o Estado Novo, em um outro sentido,faziam a mesma coisa. Foi o primeiro momento em que o Estado pensou politicamente a questão da cultura no Brasil.

 

RM. Foi nessa época e por uma razão muito simples. Existia no Brasil, antes disso, instrução pública, a instrução pública e as faculdades - Faculdade de Direito, Medicina, Odontologia e outras. O Armando, com a influência do Mesquita, resolveu fundar a Universidade de São Paulo, que já é produto de uma mentalidade nova. Foi a primeira universidade que se montou como universidade estadual, com dinheiro estadual e com carta branca para se fazer o que se quisesse.

 

MA. Com amplos recursos!

 

RBM. Com amplos recursos. O Armando abriu a bolsa para fazer a Universidade de São Paulo. E, para grande escândalo da população de São Paulo e do Brasil, que se chocou, mandou vir professores do estrangeiro, quando se achava que no Brasil tinha gente capaz. Ele mandou um dos companheiros, diretor ou reitor da Universidade de São Paulo, antes da sua fundação, ir à Europa escolher gente. E esse homem teve o bom senso de não trazer figurões da Europa. Para a Universidade de São Paulo ele não quis figurões; queria jovens professores, capazes, com futuro, que viessem para São Paulo trazer uma coisa nova. Ele trouxe o Lévi-Strauss, o Mombeig, que se tornaram figurões depois. Trouxe gente da Itália, trouxe gente da França, principalmente da França, porque nossa cultura foi uma cultura do passado francês.

 

MA. Mas, Professor Rubens, depois da Semana, na época da Klaxon, nos anos 30, quando vocês iniciam uma ação mais concreta na área da cultura, que "cultura brasileira" vocês pretendiam defender, incentivar? O que era considerado por vocês "cultura brasileira" ?

 

RBM. A questão aí é a seguinte: nós nunca fomos muito nacionalistas. Hoje estão transformando o movimento da Semana da Arte em um movimento nacionalista. Não é bem verdade. Nós éramos muito internacionalistas. Muito. Pela própria experiência de cada um, nós éramos muito internacionalistas. O que nós queríamos era botar o Brasil num campo "normal", não ficar 40 ou 50 anos atrasados. Mas, o fato de nos interessarmos por cultura, de querermos reformar, nos fez estudar o passado. Nesse sentido, nós fomos nacionalistas, porque fomos procurar ver se encontrávamos as origens e a evolução e ver como é que tinha se passado e como é que se podia reformar isso ou aquilo. O Mário de Andrade compreendeu esse problema muito bem. Ele começou a fazer até uma reforma da língua e a ver o que havia de genuíno no Brasil, o que era a cultura popular no Brasil. Ele foi um dos primeiros homens a estudar seriamente, cientificamente, o folclore, a música folclórica brasileira. Estudou como músico, como musicólogo, e viu que aquilo representava alguma coisa. Então, ele queria fazer aquilo surgir; ao invés de tocarmos jazz, uma coisa importada. Nesse sentido, é que nós fomos nacionalistas.

 

MA. Mas muitos autores contestam essa idéia de que exista uma cultura brasileira única, una.

 

RBM. De fato não existia, nem nunca existiu uma cultura brasileira no sentido do Brasil como um todo. E isso era compreensível. O próprio Mário de Andrade ia ao norte estudar o norte, via que o norte era diferente, possuía uma cultura diferente, um folclore diferente. Ele, então, quis incentivar o ressurgimento daquela coisa como um capital cultural que estava morto. É nesse sentido que éramos nacionalistas. Ressuscitar o que era nosso e o que representava e dizia qualquer coisa. Ao mesmo tempo, o que eu sempre dizia era que nós não tínhamos chances de nos salientarmos no panorama internacional, senão mostrando o que nós temos, o que é nosso. É nesse sentido que nós somos universais. Era esse um dos pontos pelos quais nos batíamos naquele tempo. Muitas das idéias daquela época, hoje em dia são absolutamente óbvias. Mas, naquele tempo, era novo e era revolucionário, porque a cultura brasileira sempre viveu aux dépenses da cultura francesa, principalmente. Nós achávamos que não tínhamos chances, por exemplo, de fazer um romance de acordo com as teorias do romance francês, porque nós não sentíamos aquilo. Nós precisávamos procurar fazer uma coisa nossa, que estivéssemos de fato sentindo, poder fazer uma coisa que seria internacional, sendo tremendamente brasileira.

 

MA. Os críticos da história da cultura brasileira consideram que a busca de uma "cultura brasileira" eclipsava o fato de que a cultura estaria ligada a uma questão de classe. Por exemplo, se se pega o exemplo de São Paulo, vocês percebiam que existiriam, eventualmente, passados diferentes, segundo as classes, e também culturas diferentes?

 

RBM. Nós tínhamos consciência disso, porque tínhamos uma noção de sociologia. Na Escola de Sociologia estávamos vendo as teorias modernas. Compreendíamos perfeitamente esse ponto de vista. Mas era problema que não nos interessava, porque não éramos teóricos. Quem era um pouco mais teórico era o Mário. Os outros não eram teóricos. Nós éramos, sobretudo, executivos; nós queríamos executar a coisa. Eu sempre dizia:

- "O que me interessa é fazer, eu quero fazer e não escrever, fazer teoria." Eu nunca escrevi um romance; eu escrevi um ou dois contos, como uma moléstia de jovem, que eu publiquei, mas nunca me interessou. O que me interessava não era escrever uma história do Brasil. O que me interessava era fazer a coisa. E nós éramos muito pragmáticos. Isso é uma característica do paulista. O paulista é muito pragmático. Ele é muito mais pragmático do que os outros brasileiros. Os outros brasileiros são muito mais de teoria. Tanto que não existem na cultura paulista grandes teóricos, mas excelentes executores. O paulista é muito pragmático. Mesmo os economistas paulistas são pragmáticos, não são teóricos. O próprio Delfim Neto, tão atacado por ser pragmático, mudou sua política três ou quatro vezes. Está sendo xingado, porque ele muda. Ele é pragmático. Ele vê que as coisas mudaram; ele muda. Isso é uma característica muito paulista. Não somos teóricos. E eu confesso que sempre fui muito cético com respeito teorias, desde o tempo de estudante, talvez por influência de meus professores, que eram, alguns deles, muito céticos e me influenciaram muito, mostraram a grandeza, decadência e morte das teorias. Por exemplo, o Brasil não precisava de homens que fizessem um livro sobre as bibliotecas universitárias, precisava era de quem fizesse bibliotecas.

 

MA. As carências eram muito grandes.

 

RBM. Tão grandes que é preciso fazer, né? Até hoje eu tenho essa idéia. O Brasil só tem bibliotecários teóricos. Não tem nenhum executivo, que faça a coisa. Eles ficam discutindo meses e meses, fazem planos mirabolantes que, tecnicamente, ideologicamente, são perfeitos, mas não executam nada. Nós éramos muito pragmáticos; as teorias, a filosofia das

coisas interessava muito pouco. Nenhum de nós era filósofo. Talvez o Couto de Barros, que era o mais filósofo, no sentido de estudar teoricamente. Tanto que nós passávamos pitos nele. Ver o quê? Precisa fazer e depois ver como é que está.

 

MA. Enfim, vocês tinham o élan de fazer grandes coisas.

 

RM. De querer fazer. E eu acho que foi uma vantagem, porque nós fizemos coisas. Se nós tivéssemos sido marxistas, ou socialistas, ou sei lá o quê, nós não teríamos realizado nada. Teríamos publicado uma porção de livros, que hoje estariam antiquados e não teríamos realizado nada. Entretanto, sendo pragmáticos, sem teorias e com pouca teoria, com o mínimo de teoria, nós fizemos muita coisa que ainda existe, que está aí.

 

MA. Quer dizer que o balanço que o senhor faz hoje, 60 anos depois da Semana de Arte Moderna, é esse: ficaram essas coisas?

 

RM. Ficaram essas coisas que ninguém derrubou, principalmente porque nós não fizemos tudo.

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