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Conferência 1 (Proferida na ABL em 4/6/2013)

 

Sobre o bom humor na

Academia

Cícero Sandroni

 

Rir não é tema comum nas academias. Jean-Baptiste Poquelin, dito Molière, herdeiro literário das improvisações da  Commedia dell’Arte italiana, zombou delas, na peça As preciosas ridículas. Para Otto Maria Carpeaux “Molière é o clássico cartesiano das comédias, e, além disso, é o maior dos comediógrafos. Revolta-se contra as convenções que violentam a natureza: preciosismo, hipocrisia, a falsa ciência dos médicos, a educação errada”. E a Academia Francesa, nos seus primórdios, não poderia escapar à sua irreverência. Em plena atividade à época da instituição da Academie, Molière não participa dela e só mais tarde é reconhecido quando, segundo nos lembra Eduardo Portella, foi cunhada na base do seu busto, instalado em um dos seus salões, a frase: Rien ne manque à sa gloire, i1 manque la nôtre. Assim a circunspecta instituição prestou sua homenagem à comédia. Alexis Piron, 1689/1773, poeta satírico francês, autor de La Métromanie, tentou ingressar na Academie, mas seu nome foi vetado por Richelieu. Vingou-se deixando um epitáfio onde ri de si mesmo e da Academie: Ici git Piron, que ne fut rien pas même academicien. Piron é autor do epigrama sobre o riso J’ai ri, me voilá desarmé.    

        Portanto, cuidado com o riso. Em seu romance O nome da Rosa, Umberto Eco demonstrou o perigo da alegria, ao provocar uma série de crimes de um assassino de mau humor, o primeiro serial killer da história da ficção, assunto que veremos mais adiante. Monteiro lobato, no conto “O engraçado arrependido”, do livro Urupês, conta a história de um humorista famoso de cidade do interior interessado no emprego do coletor de impostos e planeja matá-lo contando uma piada tão engraçada capaz de levá-lo, ao gargalhar, desta para melhor. consumado o crime, entra em depressão e quando não consegue a nomeação, suicida-se, enforcando-se numa perna da ceroula. Foi engraçado até na morte, comentaram os amigos no seu velório.

          Em recente conferência nesta Academia, a professora Marlene de Castro Correia dedicou alguns minutos à poesia humorística de Àlvares de Azevedo patrono da cadeira nº 2 desta casa ao citar entre outros versos um trecho da poesia “Soneto”. Mas o que é triste e dói ao mundo inteiro / é sentir todo o seio palpitando ...! cheio de amores! E dormir solteiro.

       O acadêmico Afrânio Peixoto, nascido em lençóis, na Bahia, em 1876 e falecido no Rio de Janeiro, em 1947, formado em medicina pela famosa escola da Bahia, segundo Afrânio Coutinho, seu contemporâneo, era dotado de personalidade fascinante, irradiante, animadora, além de ser um grande causer e um primoroso conferencista, capaz de conquistar pessoas e audiências, com uma palavra encantadora. em sua volumosa produção de cientista, historiador, sociólogo, pedagogo, criminalista, um livro, quase esquecido em sua fortuna crítica, refere-se este tema: Houmor antologia universal de humorismo.

       Vale lembrar, pois esta é a Casa da memória, que Afrânio Peixoto era presidente da ABL em 1923, quando o Petit Trianon, pavilhão da França na exposição do Centenário da Independência, em 1922, se encontrava vazio. Amigo do embaixador da França, Alexandre Couty, conseguiu o seu empenho junto ao governo para obter a doação do pequeno palácio à Academia e teve sucesso na sua empreitada. Aquela réplica perfeita do Petit Trianon que se  encontra em Versalhes, construída por Luís XV e onde Maria Antonieta se refugiou com sua corte, para evitar contato com a corte do seu marido luís XVI. Assim, em dezembro de 1923 tornou-se a nossa sede, que em dezembro próximo completará 90 anos no uso da ABL.

       No prefácio da sua antologia, onde não alude às alegres festas com muita dança, música e risos, organizadas por Maria Antonieta no Petit Trianon original, o nosso grande benemérito demonstra o domínio da cultura clássica e explica as raízes do cômico e do humor, para distinguir entre os dois. O cômico nos leva às gargalhadas, e o

houmor, ao sorriso inteligente ou até à boa risada das quais se dizia antigamente, desopilavam o fígado. Para ele, os ingleses têm senso de houmor, mas não são os donatários deste estilo. Cita R. C. Cartom, segundo o qual o houmor não tem fronteiras e os humoristas são cosmopolitas: Shakespeare, Sterne, Dickens, Tackeray estendem a mão através dos tempos a Rabelais, Molière, Cervantes. E se tivéssemos de indicar o príncipe dos humoristas, não iríamos buscá-lo nas ilhas britânicas. Seria Rabelais, ou, senão a melhor, Cervantes. O Quixote, para Peixoto, é a obra-prima do humorismo.

         E vai além: “Uma antologia do humor deveria começar pela página do Gênesis em que Javeh, tendo criado o mundo, no qual as plantas se parasitam, os animais se entredevoram, o ser humano, Adão, Eva, Caim, Abel, Seth, etc. – praticam a desobediência, a rebeldia, a inveja, o assassinato, o roubo, o incesto e Javeh declara que “tudo está bem”. R. C. Cartom está de acordo: “Não é falta de respeito atribuir à divindade o senso de humor ... é mesmo o único meio de explicar alguns tipos que vemos, em volta de nós ... Portanto, Deus também é humorista. Aliás está dito em todas as letras que Deus se rirá dos homens (salmos II, 4). Os imortais do Olimpo tinham o permanente riso, comunicativo e indiscreto, que abalava os paços celestes. Os habitantes do céu judeu também se riem, dos pobres terrenos.

      No seu livro As razões do coração, Afrânio conta a história de uma viúva inconsolável e ciumenta, que estava causando uma crise no cemitério são João Batista. O marido adquirira duas sepulturas conjugadas, onde enterrara a primeira mulher e onde esperava enterrar-se. Casando com ele, o primeiro ato ciumento da tal viúva foi comprar outras duas sepulturas para si e para ele, onde foi enterrado. Para livrar-se do mau agouro, pois queria casar-se de novo, a boa e fiel viúva comprou terceiro par de sepulturas para ela e para o futuro marido. Já aí estão três túmulos desaproveitados, e, como a população cresce, a moda pega e os viúvos e viúvas que querem casar e são ciumentos dos seus fúnebre amores ... está declarada verdadeira crise funerária no cemitério de Botafogo ...

     Na antologia de Peixoto também encontramos o Padre Antônio Vieira em trecho do Sermão de sexagésima, quando fala dos padres que ficam na corte e os seus irmãos, que andam pelo mundo, a pregar a palavra de deus: “Ah, dia do Juízo! Ah, pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais Paço: os de lá, com mais passos ... e em outro trecho do mesmo tema acusa os do paço de “tomar o alheio, ou seja o do rei, ou dos povos, é a origem da doença: e as várias artes e modos e instrumentos de tomar são os sintomas, que, sendo de sua natureza mui perigosa, a fazem mais mortal.

E se não, pergunto, para que as causas dos sintomas se conheçam melhor. toma nesta (doença) o ministro da Justiça? sim, toma. toma o ministro da Fazenda? sim, toma. toma o ministro da república: sim, toma. toma o ministro da milícia? sim, toma. toma o ministro do estado? sim, toma. ecom tantos sintomas lhe sobrevêm ao pobre enfermo milagre é que não tenha expirado”.

      “Rir é o melhor remédio”, serve como título de algumas seções de humorismo de revistas e jornais. Hoje, médicos e palhaços frequentam hospitais para adotar a risoterapia, isto é, o paciente já está pra lá de Bagdá, mas, depois de ouvir algumas piadas, morre de rir, no caso, literalmente. A expressão só dói quando eu rio, é absolutamente verdadeira, pois se alguém tem dores na região abdominal, e ouve uma história engraçada, o riso chacoalha os mús-

culos daquela parte da anatomia humana e, se a vítima gargalha (no caso da piada boa), as dores aumentam. se a piada for longa e ruim, e vier em dois volumes, ao rir, mesmo de forma hipócrita, a vítima chora lágrimas de esguicho, na expressão do sempre lembrado e saudoso Nelson Rodrigues.

      Para Henry Bergson, o filósofo francês autor do livro Le Rire, não existe o cômico no que não for humano. cito Bergson, consciente da advertência do jornalista e humorista norte-americano Ambrose Bierce (1842-1913), portanto contemporâneo de  Machado de Assis, que define citação como o ato de repetir de forma errada as palavras alheias. Bierce é também autor da frase:  “A guerra foi a maneira que deus escolheu para que os americanos aprendessem geografia.” mas voltando a Bergson, e na tentativa de não errar, “uma paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; jamais será engraçada ou risível”. Ainda Bergson:

       “Podemos rir de um animal porque surpreendemos nele uma atitude ou uma expressão humana. riremos de um chapéu; mas o que nos faz achar graça não é um pedaço de feltro ou de palha, é a forma que os homens deram a ele, é o modo com o qual ele foi arrumado na cabeça de alguém. muitos definiram o homem como um animal que ri. Poderíamos defini-lo como um animal que faz rir, – porque, se qualquer outro animal o consegue, ou qualquer objeto leva-o a isso, é sempre por uma semelhança com o humano, pela marca queo homem imprime nele ou pelo uso que faz dele.”

     Machado de Assis, fundador, ocupante da cadeira número 23, presidente por 13 anos e consolidador desta casa, escreveu crônicas para o jornal Gazeta de Notícias, na seção intitulada Balas de estalo, todas com a pena da galhofa sem molhá-las na tinta da melancolia. Em uma delas, comenta as dificuldades de um cidadão para viajar num bonde com um tom quase surrealista.

     Ao analisar esta crônica, a professora sônia Brayner ressalta o fato do texto se tomar tanto mais humorístico quanto mais despropositadas são suas indicações, desconstruindo o discurso sério institucional até o limite de sua negação e de seu contrário. Para ela, na referida crônica “vê-se o um Xavier de Maistre não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra  de finado. escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta de melancolia e não é difícil antever o que sairá desse conúbio”.

         Brayner ainda vê nessa crônica e nas do período compreendido entre 1877 e 1883 “a época de gestação e modificação decisiva da ficção machadiana e dessa perspectiva dialógica crescente em que se instaura o seu discurso narrativo” .

      Quer dizer, ao narrar um simples passeio de bonde, o “Bruxo” faz humorismo de primeira água. Gênio? Ou leitor de Laurence Sterne, de Xavier de maistre, de Almeida Garret? Quem nos guia nessa resposta é o acadêmico Sergio Paulo Rouanet. No seu livro Riso e melancolia, lemos que “a palavra shandean, no Webster’s International Dictionary, significa ‘alguém que tem o espírito de Tristram Shandy’ e shandism é definido como ‘a filosofia de Tristram Shandy’. Ela designa uma atitude entre libertina e sentimental, um sensualismo risonho, um humor afável e tolerante, capaz de perdoar transgressões próprias e alheias, mas também de zombar, sem excessiva malícia, dos grandes e pequenos ridículos do mundo. (...) Proponho usar o termo para designar uma forma literária – a forma shandiana. sterne a criou, mas não a defmiu. Quem a definiu, dando-lhe contornos conceituais, foi um dos mais perfeitos cultores da forma shandiana, nascido 126 anos depois de Sterne e há muitos milhares de quilômetros de sua Irlanda natal: Machado de Assis”.

       Rouanet prossegue: no prefácio “Ao leitor”, das Memórias Póstumas, diz Machado de Assis: “ trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de para vencer na vida, é preciso, como o deus Janus, manter as duas faces do medalhão, a exterior, falsa e hipócrita, e a interna, onde viceja, recôndito, o verdadeiro interesse do indivíduo.”

     Para Rouanet, nessas linhas, “machado define uma forma e enumera os que a adotaram. ele dá todos os elementos para definir a forma do seu livro. Ao fazê-lo, contribui de modo decisivo para definir uma forma genérica a que se filia esse livro, e que ele diz ter ‘adotado’. O que estou chamando de ‘forma shandiana’.”

      Poderíamos, então, percorrer toda a obra de Machado de Assis para ilustrar o texto escrito com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, mas prefiro resumi-lo naquele período com início no capítulo 16 de Memórias Póstumas de Brás Cubas, “Uma reflexão imoral”: “O que eu quero dizer é que a mais bela testa do mundo não fica menos bela, se a cingir um diadema de

pedras finas; nem menos bela, nem menos amada. marcela, por exemplo, que era bem bonita, marcela amou-me...” e conclui no capítulo 17: “Do trapézio e outras cousas” (...) “Marcela amou-me durante 15 meses e onze contos de réis.

     ”No conto “Teoria do medalhão”, o mestre nós dá um exemplo notável da sua ironia, no diálogo do pai ao aconselhar o filho a vencer na vida sem fazer força. Pleno de humor cáustico, delicioso libelo do escritor contra a mediocridade intelectual e social da capital de um país escravocrata e elitista, onde viceja uma sociedade burguesa, retrógrada e arrogante. Na conversa, os conselhos paternos ensinam fórmula cínica para alcançar o sucesso na vida: cultivar a mediocridade condecorada, a troca de favores, a hipocrisia e a capacidade de adular os poderosos. Machado retrata neste conto o Brasil de sua época e de hoje, ao ver um país onde exercício pleno do contra-senso que (ambivalentemente) tenta inverter as posições da normalidade, mas demonstra, no confronto dos enunciados, a própria crise da situação, isto é, as dificuldades e percalços de um cidadão desprevenido e educado, dentro de uma condução coletiva.  

      Dessa forma, explicado o conto, perde um pouco do humor genuíno do ridendo castigat mores machadiano. Millôr Fernandes resumiu e parodiou o conto neste conselho do pai ao filho em pleno século XXI: “Fique certo de uma coisa, meu filho: se você mantiver seus princípios com firmeza, caráter íntegro, dignidade e honradez, esteja certo de que um dia aparecerá alguém oferecendo excelentes condições para abdicar deles.” citei aqui o ridendo, mas não é um provérbio latino, mas sim expressão do latinista francês Jean de Santeul (1630-1697), contemporâneo de Molière. Os latinos riam, sim, dos costumes e não posso deixar de citar aqui o poeta satírico Juvenal, o décimus Junis Juvenalis, de verve poderosa, autor das Sátiras, onde ataca os poderosos e os vícios da sua época no último século antes de cristo. Por sua força moral, foi convidado por alguns cidadãos probos de Roma para integrar o Senado. Resposta de Juvenal: “Não posso ir para o Senado. Não sei mentir.”

     Mas desde quando o homem começou a rir? Para responder a esta pergunta devo ingressar em um texto supostamente mais erudito, sem risadas, e quem quiser aproveitar uns cinco minutos para um cochilo a hora é esta. Vou citar a Paideia, a

formação do homem grego, de Werner Jaeger, no qual ele afirma: “Não há um evento mais expressivo do desenvolvimento das formas superiores do espírito a partir das raízes naturais e telúricas do que a história da comédia. Suas origens eram obscuras, até o apogeu da arte de Sófocles, mas esteve desde o início no centro do interesse público. O komos, isto é, a embriaguês das festas dionisíacas campestres, com as suas primitivas canções fálicas, (depois significando komodós o ator cômico, e então komódia poesia satírica) não pertenciam à esfera da criação espiritual, à poiesis propriamente dita. Na comédia literária, tal como a conhecemos em Aristófanes, fundem-se os elementos mais diversos, provenientes das mais antigas festas dionísicas. Ao lado da exal-tação festiva do komo, que lhe deu o nome, encontrava-se a parábase, a procissão do coro, que, diante do público que primitivamente o rodeava dava curso livre a troças mordazes e pessoais e até, na sua mais antiga forma apontava a dedo para um ou outro dos espectadores. daí a mania...

      As vestes fálicas dos atores e os disfarces do coro, especialmente por meio de máscaras e animais – rãs, vespas, pássaros – provêm de uma antiquíssima  tradição, pois já se encontram presentes em velhos autores cômicos, em quem esta memória se mantém bem viva, ao passo que é débil ainda o seu espírito próprio.”

        Se este fosse um texto científico de antropologia, o autor poderia até arriscar-se a dizer que a origem dos nossos desfiles de escola de samba “estão nas antigas festas dionisíacas”, envolvidas em ritos africanos, embora as vestes fálicas, que, segundo Houaiss, nas tais festas se levava como símbolo da geração, nos sambódromos de hoje, o símbolo esteja invertido.

      No capítulo da Poética, onde trata da comédia, Aristóteles considera-a gênero menor, ao voltar-se para as ações ignóbeis, vitupérios, enquanto as tragédias tratam de hinos e encômios. Aristóteles alude ao poema Margites, atribuído a Homero, supremo poeta no gênero sério, o primeiro a traçar as linhas fundamentais da comédia, dramatizando, não o vitupério, mas o ridículo. Para o filósofo, o Margites representa para a comédia o que a Iliada e a

Odisséia representam para a tragédia”.

      Mas, mesmo com tal comparação, segundo Aristóteles a comédia é a imitação de homens inferiores (ou levados a uma situação inferior, escorregar numa casca de banana, por exemplo, ou então vide Charles Chaplin, o Carlitos) não quanto aos vícios, mas só quanto ao ridículo. O ridículo é apenas perto do

feito, torpeza anódina e inocente e bem o demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem (expressão de) dor.

      Mas Aristóteles com todo o seu gênio e saber, esqueceu-se de um ponto, não na Poética, mas na Metafisica, e assim provou

Machado de Assis, no capítulo XLII nas Memórias póstumas, intitulado “Que escapou a Aristóteles”:

    “Outra cousa que também me parece metafísica é isto – dá-se movimento a uma bola, por exemplo; rola esta, encontra outra bola, transmite-lhe o impulso, e eis a segunda bola a rolar como a primeira rolou. Suponhamos que a primeira bola se chama ... Marcela, – é uma simples suposição; a segunda, Brás cubas; – a terceira, Virgília. Temos que Marcela, recebendo um piparote do passado rolou até tocar em Brás Cubas, – o qual, cedendo à força impulsiva, entrou a rolar também até esbarrar em Virgília, que não tinha nada com a primeira bola; e eis aí como, pela simples transmissão de uma força, se tocam os extremos sociais, e se estabelece uma cousa que poderemos chamar – solidariedade do aborrecimento humano. como é que este capítulo escapou a Aristóteles ?”

        Eis aí como Machado, pela simples força do seu talento, consegue parodiar a Filosofia e lançar uma dúvida, em tom de chiste, sobre a obra do Estagirita. (Por falar em chiste, Freud estudou o tema, eu pretendia analizá-lo aqui, mas desanimei diante da tarefa, pois, ao pretender, seria muita pretensão da minha parte. Então deixo aqui apenas a anedota narrada por Freud como exemplo de chiste: “Um rei percorria o seu reino e encontrou um lavrador parecidíssimo com ele, uma verdadeira cópia, parecia até seu irmão. E então perguntou-lhe: ‘sua mãe andou pela corte?’

      E o lavrador respondeu: ‘minha mãe, não, mas meu pai, sim’”.

     Fechado o parêntese, talvez encontrássemos a resposta à pergunta de Machado no segundo texto sobre a comédia, prometido por Aristóteles, não só na Poética, mas também na Retórica, texto dado por perdido, ou ele não escreveu, por considerá-la um gênero menor. Para Umberto Eco, no seu romance O nome da Rosa, Aristóteles não só escreveu um segundo texto sobre a comédia, encontrado em grego e na tradução para o latim, e escondido na biblioteca do mosteiro pelo bibliotecário, o monge Jorge de Burgos. Quando os monges tentam ler o livro, ocorrem os assassinatos, que vão ser desvendados pelo franciscano Guilherme de Baskerville e seu aluno Adso, referência de Eco ao detetive de Conan Doyle no conto O Cão dos Baskerville e ao doutor Watson, onarrador das histórias de Sherlock Holmes. Adso, como se sabe, é o narrador da história de Eco. E a fúria contra o riso e a alegria do bibliotecário, que eco jura não ter sido inspirado no escritor Jorge Luis Borges, leva-o a cometer os crimes para condenar o riso: O riso é a fraqueza, a corrupção, a insipidez da nossa carne. É o folguedo para o camponês, a licença para o embriagado, mas aqui, aqui ... Jorge batia agora o dedo em cima da mesa, perto do livro que Guilherme tinha diante de si, aqui a função do riso é invertida, elevada à arte, abrem-se-lhe as portas do mundo dos doutos. Faz-se dele objeto da filosofia e de pérfida teologia... O riso libera o aldeão do medo do diabo porque na festa dos tolos também o Diabo aparece pobre e tolo, portanto controlável. Mas este livro poderia ensinar que libertar-se do medo do Diabo é sabedoria. Quando ri, enquanto o vinho borbulha em sua garganta, o aldeão sente-se patrão porque inverteu as relações de senhoria: mas este livro poderia ensinar aos doutos os artifícios argutos e desde então ilustre, com que legitimar a inversão. O riso distrai, por alguns instantes, o aldeão do medo. Mas a lei é imposta pelo medo cujo nome verdadeiro é temor a deus. E deste livro poderia partir a fagulha luciferina que atearia no mundo inteiro um novo incêndio:

e o riso seria designado como arte nova, desconhecida até de Prometeu, para anular o medo.

      Tudo isso seria obra de Aristóteles, se tivesse escrito a segunda parte da comédia. Assim, segundo Humberto Eco, quase todos os fundadores e patronos da nossa Academia estariam no índex do monge porque escreveram texto de humor a exemplo de Álvares de Azevedo citado acima. muitos se dedicaram ao humor, à sátira e à paródia, entre os quais eu poderia citar, por exemplo, Gregório de Mattos.

     Outros patronos, nos encantam com sua prosa humorística e verso satíricos, e tomo com exemplos Manuel Antônio de Almeida, com o seu Memórias de um Sargento de Milícias, e Joaquim Serra, autor quase desconhecido. Joaquim Manuel de Macedo sempre lembrado por seu romance A moreninha, mas também autor de comédias e livros de humor, a exemplo de Conversas com meu tio. Mas na época da fundação, registramos a presença de um quarteto de autores humoristas, composto de Urbano Duarte, fundador da cadeira que escolheu para patrono seu amigo e parceiro França Júnior e Artur Azevedo cuja escolha recaiu no fundador do teatro brasileiro: Martins Pena.

     Na área da Paródia, vamos encontrar, como prometi no início, Monteiro lobato, no conto “O centaurinho”, do livro Histórias diversas, ao narrar o ingresso do Visconde de Sabugosa na Academia Brasileira de letras:

    “Havendo o Visconde de Sabugosa entrado para a Academia Brasileira de letras, dona Benta fez questão de ir ao rio, com todo o pessoal do sítio, a fim de assistir à cerimônia da posse. A eleição do Visconde correra muito barulhenta graças à oposição dos ‘imortais’ que não tinham em casa filhos crianças e, portanto, ignoravam quem fosse o tal sabugo-cientista. Emília, empenhadíssima na vitória do Visconde, teve de desenvolver uma atividade prodigiosa na remessa de leitões assados, cestas de jabuticabas, linguiças de lombo, farinha de milho de beijuzinho, quartos de paca, pencas de codornas e perdizes – e até de cambadas de lambaris de rabo vermelho (com algumas praquitingas entremeadas), a fim de conseguir votos. ‘É pela boca que se pega o ‘imortal’ – dizia ela.”

      Será mesmo?

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