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Por que escrevo? - Vol. 1
Sumário

I. Prefácio – Fábio Lucas:  De volta à pergunta: Por que escrever
II. Introdução – Daniel Piza: Solos de jazz no deserto
III. Apresentação – Bernardo Ajzenberg: Desafio ao mistério
IV. Princípios – José Domingos de Brito: Dos mistérios da criação literária

Parte I
Depoimentos


Adélia Prado - Adolfo Bioy Casares - Affonso Romano de Sant'Anna - Agustina Bessa-Luíz - Alain Robbe-Grillet - Alberto Moravia - Aldous Huxley Alejo Carpentier - Allen Ginsberg - Amos Oz - Antonio Callado - António Lobo Antunes Antônio Torres - Ariano Suassuna - Armando Freitas Filho - Augusto Abelaira Augusto dos Anjos – Augusto Roa Bastos - Autran Dourado - Bernardo Ajzenberg Blaise Cendrars - Camilo José Cela - Carlos Drummond de Andrade - Carlos Heitor Cony - Clarice Lispector - Cláudio Willer - Daniel Piza - Darcy Ribeiro - Dias Gomes - Don Delillo - Doris lessing – Eduardo Galeano - Érico Veríssimo - Ernesto Sábato - Esdras do Nascimento - Fernando Bonassi - Fernando Gabeira - Fernando Pessoa - Fernando Sabino - Ferreira Gullar - Floriano Martins - Francois Mauriac - Friedrich Dürrenmatt - Gabriel García Márquez - García Lorca - George Orwell - Glauber Rocha - Gore Vidal - Gracliano Ramos - Graham Greene - Günter Grass - Hilda Hilst - Ignácio de Loyola Brandão - Isabel Allende - Italo Calvino - Javier Marías - Jean-Paul Sartre - João Antonio - João Cabral de Melo Neto - João Ubaldo Ribeiro - Jorge Amado - Jorge Luis Borges - José Cardoso Pires - José Donoso - José J. Veiga - José Paulo Paes - José Saramago - Joyce Carol Oates - Juan Carlos Onetti - Juan Geltman - Juan Rulfo - Julio Cortázar - Lawrence Durrell - Lêdo Ivo - Lezama Lima - Lúcio Cardoso - Luiz Antonio de Assis Brasil - Lya Luft - Lygia Fagundes Telles - Manoel de Barros - Manuel Bandeira - Marcelino Freire - Marcelo Rubens Paiva - Márcio de Souza - Marcos Rey - Marguerite Duras - Marilene Felinto - Mario Benedetti - Mário Chamie - Mário de Andrade - Mario Vargas Llosa - Máximo Gorki - Millôr Fernandes - Moacyr Scliar - Monteiro Lobato - Murilo Rubião - Nélida Pinon - Norman Mailer - Octavio Paz - Paul Auster - Paulo Bomfim - Paulo Coelho - Paulo Francis - Pedro Shimose - Rachel de Queiroz - Raduan Nassar - Rafael Alberti - Ricardo Piglia - Roland Barthes - Samuel Beckett - Saul Bellow - Sérgio Milliet - Sidney Sheldon - Truman Capote - Umberto Eco - Valêncio Xavier - Waly Salomão - William Faulkner - William Kennedy - Wole Soyinka

Parte II
Bibliografia resumida


SCHOPENHAUER, Arthur - ALENCAR, José de - BRETON, André - ORWELL, George SARTRE, Jean-Paul - SIMÕES, João Gaspar - ALBALAT, Antonio - ANJOS, Cyro dos - BUENO, Francisco da Silveira - MOSÉS, Massaud, - BENEDETTI, Mario DOURADO, Autran - LUCAS, Fábio - FOGEL, Jean-François RONDEAU, Daniel GALEANO, Eduardo - MILLOT, Catherine - GARANCE, Marie - PERISSÉ, Gabriel MANDIL, Ram Avraham - FORD, Richard - VARGAS LLOSA, Mario - PIZA, Daniel SANT’ANNA, Affonso Romano de - RAMÓN NIETO - MAGALHÃES, Cristina Maria SABINO, Fernando; ANDRADE, Mário de - ATWOOD, Margaret

                                                     Prefácio
                                                                                                 Fábio Lucas  

         Quando me deparo com o paciente trabalho de José Domingos de Brito, a rebuscar nos mais variados autores a resposta plausível à pergunta "por que escrever?", especulo se tal questionamento não estaria ancorado no grande mar das perguntas sem resposta.

         José Domingos de Brito colecionou, para publicação, respostas surpreendentes dos maiores escritores do mundo, depois de uma pesquisa que se aproxima de 700 amostras.

         Mas, a um segundo pensamento, cogito se a vida não será tecida eternamente em torno de querelas sem solução.

         Escreve-se desde que se estabeleceram os primeiros sinais de comunicação por intermédio de traços convencionais. Talvez, na escrita, o ser humano tenha sentido, pela primeira vez, o espetáculo da transcendência. Na escrita, tal como no parto, dá-se vida a um corpo externo, de duração presumivelmente mais duradoura do que do corpo gerador. Tem-se o mistério pelo qual, mediante o objetivo, o sujeito procura lograr um pouco mais de sobrevida.

         Roland Barthes acredita que "escrever é sacudir o sentido do mundo, propor-lhe uma interrogação indireta, à qual o escritor, em última análise, se abstém de responder. A resposta é cada um de nós que dá, agregando-lhe sua história, sua linguagem, sua liberdade; mas como história, linguagem e liberdade mudam infinitamente, a resposta do mundo ao escritor é infinita; não se pára nunca de responder ao que foi escrito fora de toda resposta: afirmados, depois postos em discórdia, depois substituídos, os sentidos passam, a questão perdura".

         "Assim" - prossegue Barthes - "se explica sem dúvida que há um ser transhistórico da literatura; este ser é um sistema funcional de que um termo é fixo (a obra) e o outro, variável (o mundo e o tempo que consomem esta obra)" (Sur Racine. Paris: Editions du Seuil, 1963).

         Outro círculo de especulação se põe quando se estuda o sistema de comunicação. Quem escreve é, ao mesmo tempo, exemplo e intérprete, fonte e seqüência, começo e continuidade, convergência e expansão, emissor e destinatário.

         Escreve-se para dar sentido à vida, ou mesmo para se saber a razão por que se escreve. Escreve-se para se descobrir o motivo de se escrever. Entra-se numa petição de princípio indevassável, numa tautologia sem termo, até que se descobre que não escrever é impossível. Mas há gradações. Há escritores que se põem (ou são postos) no horizonte da missão. Sentem-se tão necessários quanto os profetas. Tão acreditados quanto esses.

         O espírito romântico, baseado na projeção da individualidade, exaltou o escritor como agente demiúrgico, criador de novos horizontes para as esperanças da humanidade. E essa aura de liderança cercou-o até o advento da modernidade, quando o intelectual, como ser excepcional a ser reverenciado pelo grupo, entrou em hibernação. Perdeu parte do prestígio e da auréola da distinção que o qualificava.

         Não obstante, ainda hoje há uma convivência ambígua entre a escrita e as personalidades bafejadas pela glória terrena. Tendo os meios de comunicação se deslocado da era da imprensa para a era da eletrônica, criaram-se os deuses massificados: esportistas, políticos, artistas de cinema, da TV e da música popular. No entanto a revanche da escrita é muito sutil. Apesar do volume de aplausos e honrarias que cerca os agentes favorecidos pela mídia, em cada um deles adormece o desejo íntimo de ultrapassar-se ou de, pelo menos, ultrapassar o diminuto ciclo vital. Aspiram à escrita, quer sob a ação direta de escrever, quer sob a garantia de traduzir a fama em obras biográficas ou depoimentos passados para o papel. O problema está em romper o silêncio post mortem.

         Maurice Blanchot (A parte do fogo. Tradução de Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.) percorre o diário de Kafka para investigar o que é literatura, assim como as tormentas do ofício de escrever. E detém-se em Mallarmé para dignificar o papel do silêncio, dos "brancos" no interior da escrita. No dizer de Blanchot, um dos desejos mais antigos da literatura é justamente "escrever para chegar ao silêncio, escrever sem perturbar o silêncio". Sim, o silêncio faz parte da linguagem, segundo ele. Se nos calamos, esta será uma das maneiras de nos expressarmos.

          A escrita e, em conseqüência, a literatura são tanto um meio heurístico, quanto comunicação de estado emocional. A obra assim se oferece como poder epistemológico de descoberta e aquisição do conhecimento, dotado, ainda, de energia para o estabelecimento do homem na sociedade e no universo. A obra, portanto, instrui e comove. Determina o papel do humano na torrente das palavras. Provê misteriosa segurança emocional que outrora se denominou catarse.

         Mas isso não é tudo. A literatura pode ser também fonte de prazer singular, situado no jogo ou no riso. Alternativa ou conjuntamente, jogo e riso, pois proporciona ora euforia lúdica, ora descontração jocosa.

         A palavra, no eixo de sua contextualização, achegou-se ao conceito, ou ao símbolo, e até ao mito. Variando entre tantas esferas, serve ao homem no seu eterno ímpeto de ultrapassar-se na duração dos anos. Eu me pergunto por que José Domingos de Brito se propôs a investigar esta questão: por que escrever? É uma indagação filosófica. E nenhuma literatura progride sem que se proponham perguntas sem resposta, pois o esforço de alcançá-la redunda numa aproximação sucessiva ao núcleo da verdade. José Domingos de Brito colecionou centenas de respostas e a questão continua aberta. Não é estimulante continuar? A busca é a literatura e a busca não tem fim.  

                        

Introdução

Daniel Piza

Uma vez perguntaram a Louis Armstrong o que era jazz, e o grande Satchmo respondeu: “Se você precisa perguntar, não vai entender nunca”. Às vezes me pergunto se a mesma resposta não valeria para a pergunta “por que escrever?”. Mas, quando se lêem as frases tão diligentemente colhidas para este livro, descobre-se que tentar responder é tão natural e produtivo quanto querer perguntar. Talvez haja uma diferença entre música e literatura aí: aquela se afirma imediatamente, pela força de sua própria imaterialidade; esta precisa ser sempre posta em dúvida, senão não terá sua força própria. Literatura nasce da autocrítica, e é por isso que este volume é indispensável: autocríticas só fazem sentido quando partem da pergunta fundamental.

É curioso notar como há os mais diversos tipos de resposta. Há os que desconversam, os que justificam, os que sentimentalizam, os que racionalizam, os que tergiversam e os que versificam – há, enfim, os que aumentam e os que diminuem sua própria utilidade. A resposta final deve estar em algum lugar na soma de todas essas, ou em seu intervalo. Alguém disse que autocrítica é fácil? Porém não é em busca de uma definição precisa que se deve ler esta obra, pois isso seria negar seu espírito motivador. E há aquela formulação do jornalista e escritor austríaco Karl Krauss, autor das frases espirituosas e provocantes de Ditos e desditos, sobre o poder de uma explicação verbal sintética: “Um aforismo ou é uma meia-verdade ou uma verdade e meia”. Certamente essa idéia também vale para os aforismos deste livro – sobretudo para ele.

Também se deve manter uma suspeita quanto à possibilidade de uma frase das reunidas aqui iluminar diretamente a literatura de seu autor. Quando alguém diz que escreve “para os amigos”, por exemplo, sua obra pode não mostrar o valor e prazer da amizade – às vezes, mostra até o contrário. Em outros casos, um paralelo fértil poderá se esboçar, como quando um escritor de alta produtividade, que sabemos vive em dificuldades financeiras, afirma escrever por dinheiro. Mas sua resposta está longe de explicar tudo; afinal, para obter dinheiro existem caminhos bem menos espinhosos.

Há também os que querem atribuir ao escrever um impulso irreprimível, organicamente necessário, como fechar os olhos diante de uma explosão ou ter vontade de fazer xixi. Bem, se assim fosse, nossas livrarias estariam ainda mais abarrotadas de obras medíocres e ridículas, porque o número de escritores seria muito maior. Felizmente não é. E há aqueles que sentem uma vocação divina, missionária – mas não explicam por que ela precisa ser tão atormentada ou por que é preciso publicar livros e vendê-los e vê-los resenhados.

Calma, leitor, não estou preparando você para entrar num emaranhado de desculpas. Nem mesmo usei essa palavrinha complicada. Se toda atividade humana – tida como nobre ou vil, não importa – fosse redutível a uma questão de culpa ou desculpa, a vida seria apenas uma escolha entre sofrimento e prazer. Mas todos sabemos que essas duas entidades não dependem apenas de nossa decisão individual para que existam, se manifestem em nós e nos lancem em dúvidas.

Na verdade, se eu fosse tomar uma única frase desta compilação, não como resposta definitiva à pergunta “por que escrever?”, mas como expressão representativa de todas as outras, eu ficaria com a opção de William Faulkner, pela dor em prejuízo do nada. No nada
não existem perguntas e muito menos respostas.

“Por que viver?”, claro, é uma pergunta convencional, mas para fazê-la é preciso estar vivo. Um escritor só escreve se quiser, e o mais complicado é que a essa intenção não corresponde uma simples responsabilidade individual ou social. Escritores fazem mal ou fazem bem, depende de quem os leia ou não os leia. Só que não existem livros sobre “por que ler?”. O escritor não é uma voz no deserto, mas, de certo modo, se sente assim – ou precisa se sentir assim. Mas eu, se fosse você, leria este livro. É tão vital quanto o jazz.

Daniel Piza
Crítico de arte e literatura, escritor e editor
de cultura d’O Estado de S.Paulo

 

Apresentação

Bernardo Ajzenberg

Como a pedra e suas camadas, tudo aquilo que funda o gesto criador é fruto de acumulação. Nada surge do nada. Se todo ofício tem sua carga de mistérios, é inegável que certos empreendimentos fincam raízes que a terra esconde menos, formam um tronco transparente e ramos cristalinos, a folhagem sempre identificável. E que outros, por sua vez, nascem e vivem difusos, nos interstícios do ar, do húmus, das paredes. Sem necessidade de qualquer julgamento ou exclusão de mérito, cabe, no entanto, constatar as diferenças. E, entre os ofícios da última leva – aqueles mais cavilosos, meio plúmbeos –, está, sem dúvida, o de escritor.

Por que se escrevem livros? Como se escrevem? Para quem se escrevem? Em sã consciência, nem mesmo a mais sofisticada das mentes ousaria enquadrar tais interrogações de modo definitivo com respostas cabais. No entanto, essas perguntas, velhas perguntas, por mais que sejam irrespondíveis peremptoriamente, não se deixam enterrar. O trabalho realizado neste projeto por José Domingos de Brito tem importante valor, seja para escritores, seja para leitores, para quem se interesse por literatura. Não somente por seu aspecto documental, de ampla compilação, mas também pelas interrogações que suscita – e como são bem-vindas as dúvidas, em se tratando de literatura! – ao lado dos esclarecimentos que proporciona.

Neste primeiro volume – Por que escrevo? –, o pesquisador não só reproduz as “explicações” de escritores, como também indica material teórico sobre o tema. E assim, como está em seu projeto, será feito com o tema como escrevo?, volume com dicas e conselhos de escritores consagrados para novos escritores, encerrando-se a coleção com mais quatro volumes que relacionam Literatura com Cinema, Jornalismo, Sociedade e Religião, respectivamente.

Quaisquer que sejam as perguntas, na verdade, as respostas dos autores sempre terão algo de incompleto, certa hipocrisia, exageros e cinismo, um quê de fantasioso – e até alguma mentira saborosa (por que não?). É incontornável, e é o que, no fundo, lhes confere graça. Não porque escritores sejam necessariamente falsários ou enganadores, mas porque seriam, sim, enganadores e falsários – ludibriariam a si mesmos – se mantivessem uma única e linear resposta por muito tempo a qualquer uma daquelas indagações.

Experimente o leitor responder de pronto a seguinte questão, de aparência banal: “por que leio?” ou esta: “como leio?”. Não é tão simples quanto possa parecer à primeira vista. Provavelmente a resposta dada pela manhã sofrerá mudanças à tarde e será reelaborada, pela segunda vez, na mesma noite. Mas, por trás dessas possíveis ambigüidades ou ironias, uma leitura atenta das respostas reunidas neste livro saberá filtrar delas a essência genuína – eis o desafio lançado pelos próprios escritores com seus motivos mascarados –, o que confere à antologia um tom de suspense intelectual.

Não se trata de imaginar o ofício de escritor como algo acima do bem e do mal. Pelo contrário, se nele existem lados obscuros, são os mesmos obscuros que costumam povoar as mentes de qualquer mortal. A diferença é o modo de lidar com isso: alguns fazem ciência, outros, esporte; e outros escrevem livros!

Bergson, citado por Cyro dos Anjos num pequeno livro chamado A criação literária (1956), via nos romancistas e dramaturgos uma exacerbação da chamada “função fabuladora”, que todos temos em grau maior ou menor. Em busca de respostas para a velha pergunta “para que escrever?”, Cyro cita ainda Eduardo Frieiro: “Para quê? Para nada. Mas justamente esse nada – a ilusão literária – é tudo para certa raça de imaginativos. É dessa ilusão que se alimentam os indivíduos de curso lento, os introvertidos, os que aborrecem a vida frenética e cobiçosa dos indivíduos voltados para fora e só pedem lhes seja permitido saborear devagarinho as doçuras e branduras das coisas inúteis”. Não é curioso? Pois é nesse tear que o pesquisador constrói suas peças.

José Domingos de Brito é um colecionador de entrevistas e depoimentos, como ele mesmo afirma. Trabalho de anos, também ele, com certeza, resultado de (muita) acumulação e de verdadeira dissecação do ser literário. Tal pesquisa exaustiva, que se planeja desdobrar em diversos volumes ao longo dos próximos meses, reúne sem dúvida elementos que contribuem para consolidar a produção literária e sua existência real no mercado cultural brasileiro. Tudo isso, sem considerar o lado lúdico e divertido do empreendimento, o jogo de sutilezas e o entretenimento com que presenteia o leitor, o estudioso ou o escritor, enfim, quem sinta atração pela criação literária e seus mistérios.

Bernardo Ajzenberg
Romancista, jornalista e assessor executivo
do Instituto Moreira Salles

 

Princípios

José Domingos de Brito

Coleciono entrevistas de escritores há 25 anos. A pergunta constante, repetida em inúmeras entrevistas, é “por quê?”, ou “para que escrever?”. Uma indagação que não se costuma fazer a outros artistas. Não se pergunta ao músico por que compõe, ao pintor por que pinta, ao cineasta por que filma etc. O que diferencia a literatura de outras artes para propiciar essa pergunta tantas vezes reiterada e até objeto de levantamento mundial para reunir as respostas? Aqui começam os mistérios da criação literária, que me propus a especular a partir de uma coleção de quase três mil entrevistas.

Ao constatar o volume de respostas, iniciei uma subcoleção dedicada a essa “simplória” e intrigante questão. Em meados de 1980, já contando com uma centena de respostas, deparei-me com a notícia do lançamento de um livro francês intitulado Pourquoi écrivez-vouz? (Libération, 1985), publicado pelos editores do jornal Libération. A nota não informou do que se tratava, mas obviamente o título me interessou. Providenciei a importação e, três meses depois, ao recebê-lo, quase caí da cadeira. Tratava-se de um “mapeamento da literatura mundial”, no dizer dos autores, sobre o ato de escrever na opinião dos mais ilustres escritores do mundo, com mais de 400 respostas.

Com isso, pensei, o que estou colecionando há algum tempo já foi objeto de interesse de outras mentes distantes, muito bem executado e editado em livro. Concluí, assim, que agora poderia aposentar minha coleção. No entanto, ao folhear o livro com mais vagar, deparei-me com outra surpresa: o interesse pela pergunta é mais antigo, vem de 1919, com os escritores surrealistas. Nessa época, a revista Litterature, de Paris, publicou um levantamento com 75 respostas. Assim, animei-me a obter essas respostas antes de aposentar a coleção, que àquela altura já contava com quase 600 respostas
.
Enquanto lia as respostas no livro recém-adquirido, passei a questionar com mais firmeza se continuava ou não a coleção. Verificando as respostas, percebi – através de Drummond, que deu uma resposta evasiva aos franceses – que uma coisa é fazer a pergunta única a um mundo de escritores para compor um livro, e outra é fazer a pergunta no clima de uma entrevista mais ou menos descontraída. Foi o caso do próprio Drummond, de quem obtive respostas mais satisfatórias em entrevistas.

Isso se deve às diferenças entre “falar” e “escrever”. Foi pedido a Drummond um texto para ser remetido a Paris, ao passo que na entrevista solicitou-se apenas que ele falasse sobre suas motivações para escrever. Desse modo, fui verificando as distinções entre as respostas extraídas das entrevistas e aquelas incluídas no livrinho francês (trata- se de um rechonchudo “livre de poche”). Outra diferença é que os franceses incluíram apenas escritores contemporâneos, enquanto minha coleção apresentava escritores já falecidos, bem como toda pessoa que escreve ou tem a escrita como ferramenta básica de seu
trabalho, tais como cineastas, compositores, jornalistas etc.

Esses dois fatores seriam suficientes para justificar a continuidade da coleção. Mas, para o colecionador, havia mais uma razão: a duplicidade de respostas. As diversas entrevistas de alguns escritores ao longo do tempo continham respostas diferenciadas para a mesma pergunta, e tal fato veio a enriquecer a coleção, propiciando melhor conhecimento das motivações do escritor. Com isso, chegamos ao resultado cumulativo dos levantamentos de 1919, 1985 e as respostas obtidas pelas entrevistas: um acervo organizado, com mais de 700 respostas.

O que se apresenta neste trabalho é uma seleção das respostas extraídas dos levantamentos citados e da coleção de entrevistas publicadas em revistas, jornais e coletâneas editadas em livro. Tendo em vista o universo de respostas e a quantidade incluída neste volume, pode-se dizer que temos aqui uma amostra representativa de todo o material encontrado. Vale ressaltar que um levantamento desse tipo nunca se completa, e que a busca de respostas à pergunta continua agora com empenho redobrado, dado o fato de se dirigir a uma obra mais
completa. Espero que numa terceira edição sejam incluídas novas respostas encontradas, novos escritores não citados e, certamente, algumas das respostas não incluídas nesta edição.

Antes de qualquer pretensão ou ambição desmesurada, quero deixar claro que o objetivo da obra não é, de modo algum, desvendar os mistérios da criação literária. Acho até que o leitor poderá ficar mais confuso ainda após o conhecimento de tais “mistérios” revelados de forma e modo tão pessoais. Neste ponto estou de acordo com Fausto Cunha, quando diz na “orelha” de Escritores em ação: as famosas entrevistas à Paris Review (Paz e Terra, 1968) que “os mistérios da criação literária não são explicados neste livro, porque ela é apenas um dos mistérios que rodeiam a grandeza do homem”. Assim, o propósito aqui é apresentar ao público o resultado de amplo levantamento sobre os mistérios da criação literária, enfocando primeiro a pergunta “por que escrever?”.

Para complementar o trabalho, dando-lhe mais consistência em termos de pesquisa, apresenta-se um resumo dos estudos que se debruçaram sobre o tema e ensaiaram uma resposta. São reflexões de literatos preocupados com sua atividade, que fornecem uma visão particular de seu exercício. São, também, críticos, teóricos e psicanalistas tecendo considerações sobre a fatídica questão. Já que, não sendo romancistas, podem falar e falam sobre “por que escrever?” com maior eloqüência. Na condição de “não-escritores” podem falar mais à distância dessa atividade que lhes é bem familiar.

Tal é o objetivo deste primeiro volume. A obra não acaba aí e tem como finalidade explorar mais os mistérios da criação literária. No curso do trabalho de esmiuçar quase três mil entrevistas, encontrei outras questões que se repetem exaustivamente aos escritores, as quais integram a série Mistérios da Criação Literária. Assim, continua a busca de depoimentos e bibliografia sobre os mistérios dessa arte mentora de outras, como o teatro, o cinema, a música e o próprio desenvolvimento cultural, ou seja, o próprio desenvolvimento da humanidade. Numa época em que o aspecto visual é muito mais (vale a reiteração) valorizado que o textual, há de se estimular o interesse pela literatura, promover o conhecimento da matéria e propiciar o exercício literário.

José Domingos de Brito
Editor do site www.tirodeletra.com.br