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Crônica

Ladrões de cemitério

Jorge Fernando dos Santos

Nesses tempos nada amistosos em que os bandidos não respeitam nem mesmo os freqüentadores de velórios nos cemitérios da cidade, meu compadre Juventino teve que se valer literalmente da presença de espírito para escapar de um esparrela.

Ele havia recebido a notícia da morte do Alencar, codinome Peixoto, velho companheiro dos tempos de militância no antigo Partidão. Juventino fez questão de levar ao amigo seu último adeus e, à viúva e aos filhos, os votos de pêsames.

O velório estava sendo realizado na capela do Cemitério da Paz, no bairro Caiçara, onde o morto seria sepultado na manhã do dia seguinte. Acostumado às velhas tradições que já começavam a ser esquecidas, Juventino chegou tarde ao local justamente para virar a noite conversando com os familiares do Alencar e com amigos que há muito tempo não via.

Lá pelas tantas da madrugada, quando já não havia muita gente em torno do caixão, dois rapazes mal-encarados adentraram o velório armados até os dentes.

- Isso aqui é um assalto - anunciou aos gritos o mais nervoso dos dois.

- Vão passando tudo o que for de valor: dinheiro, celulares, relógios, correntes de ouro… - emendou o outro num tom de voz não menos agressivo.

Apavorados diante dos revólveres, os poucos presentes não tiveram alternativa senão obedecer aos bandidos.

Juventino estava encostado numa parede ao fundo e, por um momento, chegou a pensar que os dois assaltantes não o tinham visto ali, quieto no seu canto. Mas, para sua surpresa, depois de limparem todo mundo, ambos caminharam em sua direção.

- Você é surdo ou o quê, vovô? - perguntou-lhe o mais nervoso.

- Vai passando a grana e o celular - ordenou o outro.

Nesse momento, sentindo-se totalmente acuado e temendo pela própria vida, já que não tinha celular nem dinheiro no bolso, Juventino viu-se obrigado a improvisar.

- Da última vez, fui assassinado pelos bandidos. Agora, vocês dois querem roubar o meu fantasma?

Surpreendidos, os dois meliantes trocaram olhares, o primeiro com expressão de pavor e o segundo, nitidamente pasmado.

- Puts, Beleleu, eu avisei que esse negócio de assaltar cemitério não ia dar certo - disse o primeiro, já com os cabelos em pé.

- Esconjuro! - gritou o outro, antes de passarem sebo nas canelas.

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Jorge Fernando dos Santos é

Jornalista, escritor e compositor, tem 28 livros publicados, dentre os quais: Palmeira seca (Prêmio Guimarães Rosa, 1989) e Sumidouro das almas. Site: www.jorgefernandosantos.com.br

 

Outros textos de Jorge Fernando dos Santos:

O impostor

Sonhos de um cachorro

A linguagem oculta de Guimarães Rosa