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Contos

 

A CASA COLORIDA

Margarete Hülsendeger

Quem disse que eu me mudei?

Não importa que a tenham demolido:

A gente continua morando na velha casa em que nasceu.

Mário Quintana

     Havia uma casa azul. Ela não tinha nada de mais. A sala era espaçosa, com um assoalho de madeira muito bem encerado. No banheiro antigo ainda se podia encontrar um velho e lascado bidê. A cozinha ampla era um ponto de encontro para longas conversas nos dias frios de inverno. Os quartos eram coloridos: um era verde e o outro azul ambos comunicando-se por uma porta que se mantinha quase sempre aberta.

     Nessa casa morava uma família: o pai, a mãe e dois filhos – um menino e uma menina. O quarto verde pertencia aos adultos e o azul às crianças. A menina sonhava com um quarto rosa, como, aliás, a maioria das meninas. No entanto, mesmo triste, ela compreendia a preferência pelo azul, afinal, o menino nascera primeiro.

     O pai, um homem sério, todos os dias saía para o trabalho. A escolha da cor do quarto fora dele: “O verde é uma cor séria para um quarto onde dorme um homem sério”, dizia. A mãe, ao contrário do pai, não era tão séria. Havia sempre um sorriso em seus lábios e uma canção diferente para cada momento. Ela não gostava da cor verde, preferia o amarelo, mas como o pai não quis – “Não é uma cor séria!” – ela acabou se conformando.

     O menino e a menina, mesmo tendo simpatia por cores diferentes, se davam muito bem. No quarto azul havia duas camas, mas, nas noites de temporais e de pesadelos uma sempre ficava esquecida. A mãe várias vezes os encontrou assim, agarradinhos e dormindo sossegadamente. Nunca quis despertá-los, pois ela também temia os temporais e os pesadelos que insistiam em chegar sem dar nenhum aviso.

     Todas as manhãs, os quatro se reuniam na espaçosa cozinha para, juntos, tomarem o café da manhã. A cozinha era toda branca, como convém a uma cozinha. E estando a mãe, a menina e o menino sozinhos, sem a presença séria do pai, ela se tornava um lugar de muitas conversas, risadas e canções.

     A sala era de cor salmão – ou como diziam as crianças “cor-de-burro-quando-foge” – com móveis grandes e um assoalho de madeira muito lustrosa. A mãe encerava o piso todos os dias, pois dizia que “piso bonito é aquele no qual se pode ver o rosto refletido”. As crianças amavam aquela sala. Em noites de inverno, escondidas da mãe, calçavam meias velhas e, com elas nos pés, deslizavam pelo chão encerado, sentindo-se totalmente livres, quase pássaros. Quem não gostava muito dessas brincadeiras era o pai, que após o terceiro ou quarto “vôo” dizia para a esposa dar um jeito. No entanto, em quase todas as noites, novos “vôos” aconteciam para alegria dos irmãos e desespero do pai.

    E, por fim, o banheiro. Era grande para um banheiro. Cabia dentro dele, além do velho bidê, uma enorme e antiga máquina de lavar roupas, tudo absolutamente branco. Nele fazia-se o que se costuma fazer em um banheiro...

     Nessa casa azul a família viveu durante muito tempo. De vez em quando ela passava por algumas reformas, mas nenhuma delas afetou o seu colorido; ao contrário, as cores eram sempre as mesmas, apenas sofriam uma revitalização, ou, como gostava de dizer a mãe, “um rejuvenescimento”.

     No entanto, com a passagem dos anos chegou à hora de se pensar em uma nova casa, dessa vez com um quarto rosa. As crianças já não dormiam, em dias de temporais e pesadelos, na mesma cama. Não que eles tivessem deixado de existir, mas como agora o menino e a menina estavam crescidos sentiam vergonha em reconhecer esses medos infantis.

     A decisão de sair da casa não foi fácil. Abandonar aquele lugar, de tantas lembranças, era doloroso para todos. Contudo, não tinha outro jeito. A velha casa azul havia-se tornado muito pequena.

     Assim, quando o dia da mudança, finalmente, chegou estavam todos muito tristes. O pai – apesar de continuar sendo um homem sério – e a mãe ao se verem sozinhos na casa vazia, choraram abraçados, pois sabiam que ali tinham vivido alguns dos melhores anos de suas vidas. As crianças – já quase adultas – também sentiram, mas como seus olhos estavam voltados para o futuro, logo esqueceram, pois uma nova vida, com novas aventuras, estava esperando por elas.

     E quanto à casa azul?

    Pelo que se soube ela não existe mais. Quando estava muito velha e descolorida, alguém – sem pensar em quantas histórias foram registradas em suas paredes – a demoliu. Hoje naquele mesmo espaço há um grande, novo e desbotado prédio de escritórios. Lá não existem quartos verdes ou azuis, e muito menos uma sala salmão, mas apenas vidro – muito vidro – por onde as pessoas veem a vida passar sem nada sentir.

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Margarete Hülsendeger
Cronista e contista gaúcha, autora de E todavia se move (Epur se muove) publicado em 2011 pela ediPUCRS. Colabora regularmente com as revistas "Entretextos", "Virtual Partes"; os sites "Argumento. Net", "Portal Literal" e "Tiro de Letra

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