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Grandes entrevistas

          Ariano Suassuna

Entrevista realizada por Renato Rovai e Felipe Mazzon, publicada na revista Forum, em 2005.

Em meio a celebridades festejadas pela mídia como Salman Rushdie, Jô Soares e o “ideólogo” Arnaldo Jabor, ele brilhou sozinho. Sua palestra, que ele prefere chamar de aula, foi de longe a mais concorrida da 3ª Festa Literária Internacional de Paraty, realizada no mês passado. Não apenas na sala do evento, mas do lado de fora e próximo ao telão que transmitia sua fala, Ariano Suassuna, aos 78 anos, completados no último dia 3 de agosto, hipnotizava as pessoas que se aglomeravam para ouvi-lo. Entre estas pessoas estava João Filho, baiano de Bom Jesus da Lapa. O jovem de 30 anos também chamou a atenção do público presente em Paraty e começa a se firmar como uma das promessas da literatura brasileira. Com seu livro Encarniçado, lançado no ano passado, João apresenta ao público um novo e original estilo de narrativa, oralizado, lembrando um pouco a cultura popular do Nordeste. Fórum convidou os dois escritores para estabelecer um diálogo entre duas gerações de artistas com estilos distintos, mas origens semelhantes. Acompanhe abaixo trechos da instigante conversa entre Ariano Suassuna e João Filho.

João Filho — Como o senhor, eu também sou entusiasta do Dom Quixote. (Ariano Suassuna tinha tratado de Dom Quixote em boa parte da palestra — que ele prefere chamar de aula — que ministrara na Flip um pouco antes da entrevista).

Ariano Suassuna – Que maravilha!

Fórum – Seu Ariano, em muitos textos seus e também no Auto da Compadecida, muitos trechos que o senhor utiliza são de cantorias e de literatura de cordel. Fale um pouco dessa sua profunda relação com a cultura popular da sua região.

Ariano Suassuna – Assisti ao primeiro cantador quando ainda era menino lá na minha terra, em Taperoá, sertão da Paraíba. E naquele dia participava um grande cantador, chamado Antonio Marinho, que, além dos improvisos, cantou um folheto, escrito por ele, que me causou grande impressão. Depois, me lembro de um dia na biblioteca de meu pai. Ele era um grande leitor, sabia versos de cor e era amigo de um escritor cearense chamado Leonardo Motta, que foi um dos pioneiros da documentação sobre os poetas populares. E lembro que estava olhando a biblioteca de casa e vi que ele tinha dedicado um dos seus livros ao meu pai. Dedicou a seis pessoas, entre as quais o meu pai, que é citado como uma das fontes que comunicaram versos a ele. Então, você imagine o orgulho que eu tinha. Eu na biblioteca, pego aquele livro e meu pai está lá como personagem. Foi aí que comecei a ver que aqueles cantadores, que eu tinha ouvido com tanta alegria, eram assunto de livros, que o que eles faziam eram coisas importantes. Ficou sacralizado pra mim o cantador. Não é por acaso, talvez, que quando fui escrever O Auto da Compadecida me baseei em três folhetos. Estão todos os três citados no livro de Leonardo Motta. Foi O Enterro do Cachorro, de Leão de Gomes de Barros, O Cavalo que Defecava Dinheiro, que também acho que é dele, e o Castigo da Soberba, que é dado como de autoria de dois autores folclóricos, Anselmo Vieira de Souza e Silvinho de Pirauá. Eu me baseei nesses três folhetos para fazer o Auto da Compadecida.

Fórum – O que o senhor acha que poderia ser feito para que a cultura brasileira fosse melhor trabalhada nas salas de aula, na educação formal?

Ariano Suassuna – Olhe, não sou muito bom nisso, não. Esse é mais um assunto de educador e de sociólogo, sou um escritor. Por acaso me interesso por esse tipo de coisa, mas não sei exatamente o que se pode fazer. Mas uma coisa eu sei, se os meios de comunicação de massa dessem um pouco mais de audição para a nossa cultura isso ajudaria muito.

João Filho – Eu sou de Bom Jesus da Lapa (interior da Bahia) e também venho dessa tradição. O cordel também está muito vivo em mim, quando começaram a ler meu texto me falaram que ele tinha uma ligação muito forte com rap e eu disse que não. Com o rap não, tem com o repente

Ariano Suassuna – Achei muito bom você falar nisso, porque outro dia assisti colocarem para uma disputa um rapista com um repentista. Mas esse rapista levou uma pisa, uma surra tão grande, que fiquei com pena dele. Vou dizer uma coisa: os repentistas têm uma presença de espírito tão grande, uma riqueza dentro deles tão grande, que faz a diferença. Já o rap não é uma coisa brasileira, é americana, uma coisa de importação, uma deformação. Eu estou habituado a ver o improvisador, mas sempre me surpreendo.

Fórum – Mesmo que você já tenha ouvido uma glosa (*1), por centenas de vezes ela parece sempre nova.


Ariano Suassuna – É que ainda tem o improviso. Uma vez dei um mote a um cantador, “a vida venceu a morte”. Olhe, que não é fácil, né? E foi glosado no momento, porque quem deu o mote fui eu. Veja o que ele me faz:

Na vida material, cumpri o sagrado destino,
O filho de Deus divino, nos deu glória espiritual,
Deu o bem tirou o mal, livrando-nos da má sorte,
Pai de seu suplicio forte, como o maior dos heróis,
Morreu para dar vida a nós, a vida venceu a morte.

João Filho – É uma décima, né?


Ariano Suassuna – É uma décima , exatamente. É uma beleza. Outra vez estava apresentando cantadores. Era a primeira vez que eu apresentava cantadores, no Recife, no Teatro Santa Isabel. Tinha 19 anos e por acaso estavam uns estudantes que começaram a ficar meio enciumados. Eram de fora e eles por ciúme resolveram participar. E fizeram o que hoje se chama de happening, uma performance. Um deles ficou com as mãos nos bolsos e o outro ficou por trás. O de cá discursava e o de lá fazia gestos; quando ele terminou o público aplaudiu educadamente. Mas aí quando os cantadores retomaram, eles estavam cantando um estilo de sextilha (*2) que se chama gemedeira, porque diz “ai, ai, meu Deus” antes da última estrofe. Aí, Lourival Batista, que era um desses cantadores, disse:

João Filho – Ele é um gigante…

Ariano Suassuna – Pois é, ele disse, deixe me ver se eu me lembro da estrofe:

O de trás dava banana,
O da frente discursava,
Quanto mais um se“ inxiria”,
Mas o outro se encostava.
Atrás ainda tinha um jeito,
Ai, ai, meu Deus,
Na frente é que eu não ficava.
(risos).

João Fillho – Tem uma diferença do rap com o repente, que é a riqueza da forma do repente. Não é fácil usar sextilha. A décima é ainda mais complicado

Ariano Suassuna – O pessoal que não conhece a poética não sabe, mas a décima é uma estrofe com dez versos de sete sílabas. O primeiro verso tem de rimar com o quarto e o quinto, o segundo tem de rimar com o terceiro, o sexto e o sétimo têm de rimar com o décimo e o oitavo, com o nono, quer dizer, você tem de improvisar e fazer essas rimas tudo ali, na hora.

João Filho – É algo que parece impossível, né?

Ariano Suassuna – Uma vez estava assistindo a uma cantoria num lugar chamado Santa Luzia de Sabuji e na frente da cantoria estava um camarada, um tal de seu Joventino, com um 38, um revólver desse tamanho aqui, e um cantador quando dá um mote que ele não glosa ele se considera desmoralizado. Então estava um cantador chamado Heleno Belo, estava lá glosando os motes, aí um camarada, um inimigo da humanidade, um camarada que estava lá atrás, abaixou e gritou: seu Joventino é ladrão. Que era pra ele glosar.

João Filho – Isso é a morte…

Ariano Suassuna – É a morte, rapaz. Aí ele com uma baita presença de espírito, disse:

Só deixando de glosar,
embora seja um defeito,
quem glosa fica sujeito,
a ferir ou melindrar,
agora eu vou me arriscar,
ofendendo ao cidadão,
que com calma e educação,
podia ser meu amigo,
você diz, mas eu não digo,
seu joventino é um ladrão.
(risos)

Fórum – A cultura popular, e o repente mais especificamente, tem perdido espaço no Nordeste?

Ariano Suassuna – Eu já vi muita gente ir lá para o Nordeste profetizar o fim do repente. E já vi muitos dos que profetizaram irem embora para o outro lado e o repente continuar lá. Agora, evidentemente, com a falta de atenção que se tem aqui no Brasil, é difícil. Mas hoje mesmo existem grandes cantadores por lá, grandes improvisadores, grandes repentistas

João Filho – Tem um poeta de São Paulo, o Glauco Mattoso, que pegou a forma do repente e está fazendo repente de muita qualidade, só que urbano. Mas não perdeu a forma.

Ariano Suassuna – Não tem problema de ser urbano, é a mesma coisa.

Fórum – Antes da entrevista estávamos conversando um pouco a respeito da aula do senhor e ela é a demonstração de que não é um anseio da população abrir mão de sua tradição, de sua cultura. A prova de que não é, é que a aula do senhor foi a mais concorrida, a mais aplaudida e a que teve a maior fila para autografar um livro nesta Flip.

Ariano Suassuna – Olha, meu amigo Capiba, que era um grande compositor, uma figura extraordinária, ficava indignado quando diziam que cachorro gosta de osso. Ele dizia, só dão osso ao cachorro, depois dizem que ele só gosta de osso. Ele adora comida como todo mundo. Ele dizia, bote um osso e bote um filé para ver qual é que ele escolhe. Agora não estão deixando a juventude brasileira entrar em contato com o filé. Só estão lhes dando osso.

Fórum – E o senhor atribui isso principalmente aos meios de comunicação?

Ariano Suassuna – Às vezes as pessoas pensam que sou contra a televisão. Digo, não, sou contra é o modo como a estão fazendo. A televisão é uma coisa maravilhosa, mas o que tem de arte ali é muito pouco. Tem noticiário, entretenimento, negócio e só de repente aparece uma obra de arte. Em geral, eles só mostram o que não presta e depois fazem uma enquete e perguntam: o que o senhor acha dos programas? E as pessoas dizem que gostam do que não presta. Claro, eles só vêem o que não presta.

Fórum – Da adaptação do Auto da Compadecida o senhor gostou bastante.

Ariano Suassuna – Gostei muito, tenho muita sorte. Antes do Auto da Compadecida, eu tive duas peças encenadas na televisão, por Luis Fernando Carvalho, que é um diretor que admiro muito. Ele adaptou duas peças minhas, A Fada da Boa Preguiça e uma Mulher Vestida de Sol. Dois espetáculos belíssimos. E gostei muito da adaptação do Guel (Arraes) também, do Auto da Compadecida.

João Filho – Voltando ao começo, quero lhe agradecer uma coisa, de o senhor falar tanto a respeito do Dom Quixote e da leitura clássica. Sabe, eu lá longe, em Bom Jesus da Lapa, às vezes fico me sentindo muito só, me achando meio arcaico. Fico lá lendo Quixote e clássicos e escrevendo minhas coisas e me sinto longe. Mas com essa sua aula de hoje e agora vendo essa entrevista, lavei a alma…

Ariano Suassuna – Fico muito contente, até porque Cervantes não é arcaico nem nunca será. Aquele ali é contemporâneo, eterno e será sempre para todas as gerações. E o Quixote ainda hoje é romance de vanguarda. E vai ser até o fim dos tempos. E esses que querem olhar pra ele por cima do ombro, não vão longe. Nunca vão chegar lá.

Fórum – Dom Quixote tem um peso mais próximo da Ilíada, de Homero. É algo mais clássico. Dá para dizer que é mais algo de um pensador do que um romance de fato.

Ariano Suassuna – Eu concordo.

João Filho – E o senhor sempre defende que é necessário sonhar, como o Dom Quixote, né?

Ariano Suassuna – Eu acho, claro. O sonho é que leva a gente para a frente. Se a gente for seguir a razão, fica aquietado, acomodado.

Fórum – Um dos seus grandes sonhos era que a esquerda chegasse ao poder no Brasil, não é verdade? Como o senhor está avaliando o governo Lula?

Ariano Suassuna – A esquerda não chegou ao poder, a esquerda chegou ao governo, que é outra coisa muito diferente. Isso ainda vai demorar muito, se é que vem. É outra coisa. Vocês se lembram daquilo que eu disse hoje a respeito de meu pai. Meu pai viveu um drama, né? Porque ele tinha essa vocação política, que graças a Deus não tenho. E imagino as decepções e o sofrimento que ele passou. E estou vendo Lula na mesma situação. Quando falei de meu pai na aula de hoje, estava fazendo uma referência a Lula. (Na palestra que realizou antes da entrevista, Ariano contou que seu pai era político e idealista, mas sofreu muito no poder por ter de lidar com aqueles que usam o poder público para interesses particulares.) Você imagine que desgosto Lula não está, porque ele é um homem honrado.

Fórum – Mas o senhor considera que é possível um partido de esquerda chegar ao poder e não ao governo, como o senhor disse, disputando dentro da lógica capitalista?

Ariano Suassuna – Vocês têm razão, acho que não. A tendência é esse povo acabar sempre sendo vitorioso, porque eles é que valem e correspondem às coisas mais baixas, ao interesse, ao egoísmo, coisas desse tipo. E nós, nós pensamos em uma idéia de justiça, coisa assim. É difícil, é difícil.

Fórum – O senhor considera o Lula uma figura quixotesca?

Ariano Suassuna – Veja que engraçado, uma vez eu estive num ato público de apoio a Lula e um amigo, de quem gosto muito, ao ver meu retrato com Lula, disse que era Dom Quixote e Sancho. Eu seria Dom Quixote e Lula seria Sancho, porque o Lula é baixinho e gordinho (risos)… Bom, aí eu disse, pode até ser, porque quando chegou a hora de dar o governo da ilha, Dom Quixote deu a responsabilidade a Sancho, que fez um bom governo. O político era Sancho. Mas, mesmo assim, depois de um desgosto muito grande, ele terminou saindo, quando descobriu o que tinha ao redor. Ele saiu e foi chorar com o jumento. Eu acho que Lula está mais ou menos nessa situação. Acho que ele já está chorando com o jumento.

Fórum – Nesse caso, quem seria o jumento?

Ariano Suassuna – Olha, não sei. O jumento é uma figura fraterna junto de Sancho… Existe um padre, uma pessoa muito boa do Recife, padre Daniel Lima, e ele uma vez fez uma conferência, e disse que Dom Quixote representava o sol, a generosidade e a justiça. E que Sancho era a burguesia. Eu disse não, não é. Sancho é o povo, o povo espanhol. O que representa alguma coisa que se pode dizer burguesia são aqueles proprietários espancadores, aqueles que ficam zombando de Dom Quixote e de Sancho, fingindo. Até fingem que dão a ilha a eles, o que não é verdade. E os dois acreditam. Esses é que são a burguesia. Pois bem, pronto, essas figuras que ficam cercando o Lula, representam esse povo, os espancadores. Infelizmente é isso. Agora, imagino o desgosto e a surpresa de Lula ao descobrir isso. Eu que estou aqui mais longe, estou com vergonha. Você, imagine ele. É a primeira vez que um filho pobre do Brasil real chega ao governo e passa um desgosto desses.

João Filho – Acho bonito que suas idéias, sua defesa cultural esteja influenciando gente mais nova lá de Pernambuco. O Antônio Nóbrega é um deles, não é verdade?

Ariano Suassuna – Nóbrega foi meu companheiro desde o Quinteto Armorial (*3). Quer dizer, desde que eu era diretor do departamento de extensão cultural da universidade. Foi aí que ele começou. Ele e o Antonio Madureira, que era o coordenador do quinteto, um senhor músico.

Fórum – E com o movimento Mangue Beat, o senhor teve alguma relação?

Ariano Suassuna – Tive, mas olhe bem, eu inclusive….

Fórum – Esse beat no nome complica, né? (risos)

Ariano Suassuna – Pois é, o líder deles, eu gostava muito, o Chico. Ele chegou junto de mim dizendo, mestre, ele me chamava de mestre, e me disse que era um armorial. E respondi, então por que você se chama Chico Science? Eu dizia a ele: gosto muito da sua parte Chico, mas com a sua parte Science eu não quero negócio não (risos.) Mude o nome para Chico Ciência que eu subo com você no palco.

João Filho – E o Cordel do Fogo Encantado?

Ariano Suassuna – Outro dia o líder do Cordel disse que eles começaram a se reunir depois que eu fui fazer o armorial lá na terra deles, em Arco Verde. Eles pegaram o touro na unha e resolveram fazer também. Agora, eu sinto falta de um movimento mais amplo. Dou muita importância ao movimento modernista porque ele deu o romance de Mário de Andrade, a poesia do Drummond, a escultura de Brecheret e Bruno Giorgi, a música de Villa Lobos. Aí eu vejo o movimento mangue, cadê a escultura de lá? Cadê o romance? É uma coisa que só pega um setor da música, acho pouco. Não tem uma amplitude, não tem um embasamento de pensamento.

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(*1) De acordo com o dicionário Hoauiss, “décima (vrs) única, na qual se inclui o mote de um ou de dois versos”
(*2) Estrofe que segue o esquema de rima abcbdb
(*3): “A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos ‘folhetos’ do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus ‘cantares’, e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados”. Essa é a definição a respeito do movimento dada pelo próprio Ariano Suassuna, no Jornal da Semana, Recife, 20 maio 1975.
Quanto ao Quinteto Armorial, trata-se de um grupo formado em Recife, em 1970. Foi o mais importante grupo a criar uma música de câmara erudita brasileira de raízes populares. Ligado ao Movimento Armorial, de Ariano Suassuna, o grupo era composto tanto por rabeca, pífano, viola caipira, violão e zabumba quanto por violino, viola e flauta transversal. Seus integrantes eram Antônio José Madureira, Egildo Vieira do Nascimento, Antonio Nóbrega, Fernando Torres Barbosa e Edison Eulálio Cabral. Gravaram quatro LPs até o fim do grupo, em 1980. Antônio Nóbrega seguiu carreira solo e seu trabalho mantém profundas relações com o armorial.

x.x.x

Escritor e dramaturgo paraibano declarou sua admiração pelo ser humano em conversa com reportagem do Correio Braziliense em março de 2014

A saúde

Foram dois sustos. No espaço de uma semana, eu tive um infarto e um AVC. Mas escapei bonito. Não acreditava em praga, agora estou acreditando. Praga de médico, sobretudo. Uns cinco dias antes, eu fui participar de um encontro de médicos em Ribeirão Preto (SP), era um congresso de cardiologia e o foco era hipertensão. Dei aula, mas pediram para eu participar de uma mesa redonda. Não sabia o que estava fazendo lá. Não sou médico e não tinha problema de pressão. Estou com 86 anos e minha pressão é 12 por 8. Disse: “Eu nunca vou ter um problema de coração. O meu problema pode ser câncer. Jamais terei nada no coração”. Voltei para casa e, em cinco dias, tive um infarto. Então, só pode ter sido praga (risos). Eu parei a rotina de trabalho, evidentemente, mas estou retomando agora.


O livro


O processo de criação é meio estranho. Por exemplo, vou ter que colocar o episódio do infarto. O texto já está pronto. Estou fazendo mudanças e colocando ilustrações que são todas feitas à mão. O livro também é escrito à mão. Eu só tenho prazer de escrever à mão. Sobre o livro, Quaderna vai voltar. Eu criei um personagem que é o protagonista do romance e Quaderna é o antagonista. Pretendo usar pessoas reais também. Quanto ao uso de figuras reais no meu livro, como minha literatura é muito fantástica, isso contribui para prender um pouco o universo do livro à realidade e dar uma certa credibilidade (risos). O livro foi feito em forma de castelo, que é um gênero literário criado pelos cantadores e folhetistas do Nordeste. O que eles chamam também de obra, marco ou fortaleza. Pois o meu romance pretende ser um castelo desses. Ninguém vai derrubar não. São sete volumes. Mas levo 30 anos para terminar o primeiro (risos) e tem que ser assim, não dá para se limitar. Estou aprontando e Deus queira que eu não bula mais.

Samico


Olha, homenagem tem várias a Samico. Inclusive, em um volume posterior, tem um personagem chamado Gilvano Silmarco. Éramos amigos fraternos e, além da grande amizade que nos unia, tem a admiração política, artística. Para mim, foi um dos maiores gravadores de todos os tempos. Eu reclamo sempre quando vejo o uso leviano de certas palavras. Outro dia, reclamei muito porque saiu no jornal que um guitarrista que tem por aí era genial. Discordo. Sou um escritor brasileiro e escrevo em português e a língua me dá trabalho, então, se eu uso um adjetivo com Chimbinha, o que vou dizer de Beethoven, ou de Vivaldi, ou de Mozart? Reclamei. Mas quando morreu Samico, eu li no jornal, que dentro da minha tristeza me deixou alegre: “Mundo perde a genialidade de Samico”. Aí, eu disse: “Agora sim, a palavra ‘genial’ está bem empregada”. E outra coisa: foi o mundo que perdeu. E, realmente, não há artista igual a ele no mundo todinho. Agora, ele nasceu em um país que não tem essa força de afirmação dos seus artistas.

Cultura popular


Da gravura, vou citar dois: J. Borges e José Costa Leite. Dentro da música popular, o mestre Salustiano, que não está mais vivo, e o alagoano Nelson da Rabeca, um grande músico popular. Da literatura, vivo não tem mais nenhum. A literatura de cordel considero um gênero importante da cultura popular. Morreu a pouco tempo, infelizmente, um que se chamava Francisco Sales Areda. Achava ele um poeta extraordinário, autor de um folheto chamado O homem da vaca e o poder da fortuna, que me levou a escrever A farsa da boa preguiça. Sem se falar no maior de todos, que houve até agora, o paraibano Leandro Gomes de Barros. Genial, extraordinário.

Com Deus


Converso muito com Deus, todos os dias. E entra muito assunto, muitos pedidos. Vergonhosamente, acho que tem mais pedido que agradecimento. Quando acho que estou incomodando muito, recorro a medianeira de todas as graças, que me acompanha a todo momento e para todo o lugar que vou, levo (segura a medalha de Nossa Senhora).

Militância artística


Eu procuro separar, porque não gosto da chamada arte engajada. Não gosto de colocar meu trabalho a serviço das minhas ideias. Acho que as ideias de um escritor podem e até devem aparecer no que ele escreve, mas ele não deve colocar a sua obra a serviço dessas ideias. Gosto muito quando aparecem as ideias no romance, mas ele não pode colocar o romance a serviço. Procuro separar. A minha militância em defesa da cultura brasileira acho que é a própria obra que deve sustentar. Gostaria de fazer do me
u romance, antes de tudo, uma obra literária. Os mestres tinham essa tendência. Tenho vários mestres, inclusive na literatura brasileira, dos quais destacaria Euclides da Cunha e Lima Barreto. Gostaria muito que meu romance fosse uma continuação de Os sertões e de O triste fim de Policarpo Quaresma, que acho uma maravilha.

Televisão


Meus filhos dizem que eu não assisto a televisão, não. Que eu arengo, brigo com a televisão. Porque normalmente só existe coisa ruim, exatamente pela quantidade. Mas outro dia liguei a televisão, veja que beleza, que eu jamais teria oportunidade de ver, porque não saio do Brasil. Os músicos eram austríacos, a orquestra sinfônica de Viena, o regente era judeu e o pianista era um chinês endiabrado, tocando música ocidental, inclusive. Uma maravilha. Aí, a televisão me ajudou. Eu ia morrer sem ter visto.

Processo criativo


Prefiro escrever de manhã. De noite, não gosto porque perco o sono, minha cabeça continua trabalhando pensando nos problemas do romance e perco o sono, coisa que tenho horror. Mesmo quando viajo fico pensando sobre o romance. Ele não me abandona nunca, tomo notas porque senão posso esquecer. Para escrever, preciso do silêncio. Mas não tem mistério nenhum, não. (Honoré de) Balzac disse que só escrevia vestido de fraque. Eu me visto civilmente. Mas ele era uma figura engraçadíssima. No meu romance, o personagem diz para Quaderna que a humildade fica muito bem no santo, mas o escritor precisa ser ambicioso.

Traje “clássico”


Isso partiu de uma brincadeira. Eu recebi uma comenda portuguesa, A Ordem do Infante do Henrique, que me foi dada pelo ex-presidente Mário Soares e, quando a comenda me foi entregue no Recife, eu tinha lido o artigo de Gandhi e ele dizia que o indiano pertencente às classes poderosas, mas que amasse o seu país e o seu povo, não devia nunca vestir roupa feita pelos ingleses, pois seria cúmplice dos invasores e estaria tirando das mulheres pobres da Índia um dos poucos mercados de trabalho que elas tinham, que era a costura. Desde esse momento, decidi que não usaria mais paletó e gravata e que só vestiria roupa feita por uma costureira popular. Zélia, minha mulher, me apresentou a uma costureira extraordinária chamada Edite Minervina de Lima. Queria um tipo de roupa que fosse a média de trabalho de um brasileiro comum. Passei a usar mescla azul, caqui e branco. Aí eu fui eleito para a Academia Pernambucana de Letras, não queria chocar todo mundo e chamei Edite e disse: “Você faça uma roupa daquele jeito mesmo, mas preto com camisa branca. Ela fez e eu fui e não choquei ninguém e deu para tomar posse” (risos). E foi quando recebi a comenda. Quando chegou o convite, estava escrito assim: “Traje esporte fino”. Foi quando me lembrei que meu time é o Sport e resolvi colocar a roupa preta da Academia Pernambucana, preta, e uma camisa vermelha. Desse modo, fica a finura e o esporte. No caso: Sport Fino.

Perdas da vida


As perdas, comigo, começaram muito mal. Aos 3 anos de idade eu tive meu pai assassinado e isso me marcou pelo resto da vida. E outras perdas familiares, eu sempre fui muito ligado à família. Éramos nove irmãos e hoje somos quatro, ou seja, eu perdi cinco irmãos e de homem só resto eu. Como presentes, também ganhei a família. Tive uma família maravilhosa, inclusive, meu pai exerceu uma grande influência, apesar de ter convivido tão pouco. Primeiro, porque ele era um grande leitor e herdei dele uma biblioteca que não era comum no Sertão da Paraíba, se ainda hoje não é comum, imagina nos anos 1930. Herdei uma biblioteca extraordinária. Depois, essa personalidade que Deus me deu que me faz interessar muito pelo ser humano. O meu primeiro impulso, quando não conheço a pessoa, é gostar da pessoa. Acho a vida um espetáculo maravilhoso, tem momentos muito duros, mas a convivência com o ser humano é muito enriquecedora, muito boa. E, depois, qualquer que seja a dimensão dele, o talento que Deus me deu para transformar as coisas em história, seja no teatro ou na literatura.


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