Volta para a capa
Grandes entrevistas

 

Stefan Zweig

 

Entrevista conduzida por Robert Van Gelder, para The New York Times Book Review, de 28/07/1940, e republicada no livro: ALTMAN, Fábio. A arte da entrevista. São Paulo: Scritta, 1995, de onde foi extraída.

 

* * *

 

Stefan Zweig (1881-1942), romancista austríaco, nasceu em Viena fillho de pais judeus. Escreveu biografias populares de Balzac, Dickens, Mary Stuart e Maria Antonieta, além de novelas populares como Carta para uma mulher desconhecida, de 1922, e Momento supremo, de 1939. Dois anos depois desta entrevista para o Times, Zweig, deprimido com a guerra que assolava a Europa, se suicidou no Brasil. Sua autobiografia, O mundo de ontem, publicada postumamente, tornou-se um sucesso mundial. Ele escreveu também Brasil, o país do futuro, resultado de sua vivência no país.

 

Robert Van Gelder (1904-1952) graduou-se em jornalismo pela Universidade de Columbia em 1928, ano em que ingressou no The New York Times. Foi editor do influente The New York Times Book Review entre 1943 e 1946.

 

* * *

 

O artista foi ferido em sua concentração", disse Stefan Zweig. Bateu no peito com os nós dos dedos de sua mão esquerda. "Como os velhos temas podem prender nossa atenção agora? Um homem e uma mulher encontram­se, apaixonam-se, têm um caso - uma vez isso foi uma história. Algum dia será uma história novamente. Mas como podemos viver agora com uma trivialidade dessas?"

 

"Os últimos meses têm sido fatais para a produção literária européia. A lei básica de todo o trabalho criativo ainda continua sendo, invariavelmente, a concentração, e ela nunca tem sido tão difícil para os artistas na Europa. Como a concentração total poderia ser possível no meio de um cataclisma moral? A maioria  dos escritores na Europa, de um modo ou de outro está fazendo trabalhos ligados à guerra, outros tiveram que fugir de seu país e viver no exílio, vagando pelo mundo, e mesmo os poucos felizardos que conseguiram continuar trabalhando em suas escrivaninhas não conseguem escapar ao tumulto de nosso tempo.

 

"A reclusão não é mais possível enquanto nosso mundo está em chamas; a Torre de Marfim da estética não é mais imune às bombas, como disse Irwin Edman. A cada hora que passa ficamos mais apreensivos com as notícias, não conseguimos evitar de ler os jornais, ouvir o rádio, e ao mesmo tempo sentimo-nos angustiados com as preocupações sobre o destino de nossos parentes e amigos próximos. Uns fogem da área ocupada, deixando suas casas, outros são internados e pedem liberdade, outros ficam vagando de um consulado a outro implorando para serem recebidos num país hospitaleiro. Cada um de nós que encontrou abrigo é assediado diariamente por cartas e telegramas pedindo auxílio e interven­ção; cada um de nós vive muito mais as vidas de uma centena de outros do que a nossa própria vida”.

 

Ele falou dos impedimentos externos ocasionados pelo blecaute, pela falta de liberdade de movimentos, pela incapacidade de se obter acesso aos materiais de pesquisa.

 

"Por exemplo, eu estava prestes a dar um último retoque no meu livro favorito, no qual estive trabalhando nos últimos vinte anos, uma grande biogra­fia, realmente a primeira biografia abrangente do grande gênio Balzac. Relutante, tive que abandonar esse volume quase concluído porque a biblioteca de Chantilly, que contém todos os manuscritos de Balzac, foi fechada por causa da guerra e levada a um local desconhecido e inacessível; por outro lado, não pude levar as centenas e milhares de anotações, por causa da censura. Assim como nesse meu caso, o trabalho de muitos anos de milhares de artistas e cientistas foi paralisado, talvez por um longo espaço de tempo, em função de dificuldades puramente técnicas.

 

E as dificuldades internas - quer dizer, a psicologia, a perfeição artística, aquilo que durante séculos tem sido o destino de nosso mundo real e espiritual, está correndo perigo? Eu mesmo, logo depois de terminar meu último livro pre­parei o esboço de outro romance. Então começou a guerra e de repente pareceu-me frívolo demais narrar o destino de pessoas fictícias. Não tive mais coragem de lidar com fatos psicológicos particulares e cada uma das histórias pareceu-me irrelevante em comparação com a história."

 

Ele disse que a maioria dos outros escritores que conhecia sentiram essa mesma confusão em relação ao próprio trabalho. Paul Valéry, Roger Martin du Gard, Duhamel e Romains, todos lhe confessaram não conseguirem mais concentrar-se no trabalho. "Eu suspeitaria de qualquer escritor europeu que pudesse atualmente concentrar-se em seu próprio trabalho. O que permitiu a Arquimedes, o matemático, continuar suas experiências sem sentir-se incomodado com a ocupa­ção de sua cidade parece-me quase não-humano para o poeta e o artista, que não lidam com abstrações, mas cuja missão é sentirem com a maior intensidade possível o destino e o sofrimento de seus semelhantes."

 

Mas, da guerra surgirão vastos campos de experiência com os quais o artista poderá trabalhar, e o senhor Zweig andou de um lado a outro excitado ao falar sobre isso:

 

"Em cada navio, em cada agência de viagem, em cada consulado, podemos ouvir de gente anônima, comum, as histórias de aventuras e peregrinações que não são menos perigosas ou excitantes que as de Ulisses. Se alguém imprimisse, sem alterar uma única palavra, os documentos dos refugiados que agora são guardados nos escritórios de organizações de caridade, da Sociedade de Amigos, no Ministério do Interior em Londres, poderíamos compilar uma centena de volu­mes com histórias mais excitantes e improváveis do que aquelas de Jack London ou Maupassant.

 

Nem mesmo a Primeira Guerra Mundial provocou tantas crises como as desse ano, nunca a existência humana conheceu tantas tensões e apreensões como hoje - tensão demais para ser dissolvida de imediato numa forma artística. É por isso que, na minha opinião, a literatura dos próximos anos terá muito mais um caráter documental do que puramente ficcional e imaginativo.

 

Assistimos à mais decisiva batalha pela liberdade jamais empreendida e tes­temunharemos uma das maiores transformações sociais que o mundo já viu; nós escritores, mais do que ninguém, temos o dever de evidenciar o que aconteceu em nosso tempo. Se reproduzirmos fielmente só a nossa própria vida, nossas experiências - e pretendo fazê-lo numa autobiografia - faremos talvez algo muito mais importante do que só escrever um romance inventado. Nenhum gênio pode hoje em dia inventar algo que supere os dramáticos eventos da atualidade, e até mesmo o melhor poeta tem que voltar a ser um discípulo e um criado do nosso maior mestre de todos os tempos: a história."

 

o senhor Zweig disse que a única coisa em que consegue trabalhar atual­mente é em sua autobiografia, que terá o título de Três Vidas.

 

"Meu avô viveu uma vida, meu pai viveu uma vida. Eu vivi pelo menos três. Vi duas grandes guerras, revoluções, a desvalorização do dinheiro, o exílio, a fome. Nenhuma outra época pode comparar-se às transformações que nós, que estamos atualmente na meia-idade, chegamos a presenciar."

 

Ele comentou que já foi "o autor mais traduzido do mundo".

 

"Meus livros foram publicados até em italiano e japonês, e em praticamente todos os países da Terra. Eles tinham - como podemos dizer - alcance universal. Quando Hitler subiu ao poder, meus livros foram banidos da Alemanha, e agora também da Itália, talvez na semana que vem o sejam da França. Existiam grandes edições finlandesas e polonesas - não existem mais. A cada dia que pas­sa eu perco um país. Mas isso não é tão importante. Enquanto eles puderem ser publicados numa língua, já é suficiente. E eu acredito que aqui vocês resistirão à morte da liberdade por muito tempo. É inconcebível que a liberdade possa ser destruída aqui. Ela será recuperada na França, e aqui ela não se perderá.”

 

O senhor Zweig está aqui só com um visto de turista. Ele pretende viajar em breve para a América do Sul, onde vai lecionar. Depois, voltará à Inglaterra. "Não posso perder o que está acontecendo."

 

Disse estar escrevendo sua autobiografia como escreve todo o resto - "levando quatro vezes mais tempo" .

 

"Escrevi pela primeira vez só para agradar a mim mesmo. Incluí tudo o que pude imaginar. Sou um escritor satisfeito que consegue escrever o dia inteiro e sentir-se feliz. Por isso os primeiros rascunhos de meus livros são muito, muito extensos. Por outro lado, sou um leitor nervoso. Fico muito impaciente quando qual­quer autor - inclusive eu mesmo - se desvia do assunto. Assim, quando leio o que escrevo, costumo cortar o texto em porções grandes. Corto, e corto até que não reste nem uma palavra, ou a sentença que seja dispensável."

_____________

 

 

- Por que escrevo?

- Como escrevo?

- Onde escrevo?

- Política
- História
-