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Capítulos da novela

Parte 2

                                                 O Livro

Capítulo

                           

 

                                        XVII

  

     Difícil saber se é a vida que imita a arte ou se é a arte que, teimosamente, insiste em imitar a vida. Há quem considere a recíproca verdadeira. Afinal, quem poderia acreditar na história do sujeito que começou a fazer fortuna emprestando dinheiro aos colegas do curso de Medicina e se tornou um dos maiores proprietários de terras do país, dono de redes de hotéis, cinemas e casas noturnas? E pra completar o exagero, sua maior façanha foi ter deflorado mais de duas mil jovens, gerando quase 40 filhos, um deles com a própria filha.

     O famoso Antonio Luciano não era personagem de uma peça de Nelson Rodrigues ou William Shakespeare. Existiu de fato, em Minas Gerais, sendo um homem influente em sua época. Deputado por dois mandatos, ele colaborou com políticos iminentes, alguns dos quais chegariam à Presidência da República. Quando morreu, sua fortuna, calculada em milhões de dólares, foi dividida num tumultuado processo entre seus descendentes, incluindo os três filhos que tivera com a legítima esposa.

      E o que dizer do austríaco Josef Fritzl, que manteve a filha Elisabeth presa num porão sem janelas durante 24 anos, gerando com ela sete filhos, com a cumplicidade da própria mulher e sem que nenhum vizinho desconfiasse? Quando foi preso, aos 73 anos, parecia um cidadão comum, acima de qualquer suspeita. Josef não era personagem de uma história de horrores de Edgard Allan Poe ou Stephen King, por exemplo. Era um homem real, de carne e osso.

      Também poderia citar as oito mortes desencadeadas pelo assassinato do prefeito Celso Daniel, da cidade de Santo André, no ABC Paulista, numa trama que incluiu denúncias de corrupção envolvendo homens ligados ao presidente da República e membros do seu partido. Mesmo com a ampla cobertura da imprensa e as pressões exercidas por forças oposicionistas, o caso nunca foi totalmente esclarecido e tampouco havia brotado da pena de uma Agatha Christie ou de um romancista como Rubem Fonseca.

       Tudo isso comprova que pessoas normais e personagens de ficção têm mais pontos em comum do que pode supor a vã filosofia dos críticos literários. Acontecimentos da vida real muitas vezes superam a imaginação dos melhores ficcionistas de plantão. Por isso, os leitores que chegaram até aqui só resistiram à tentação de abandonar a leitura porque uma história como esta parece tão absurda quanto uma obra de Kafka ou Ionesco – ressalvando o fato de estar a quilômetros de distância do estilo narrativo de ambos e o mais perto possível da verdade.

       Como escreveu Borges, “não seremos nós também um livro que Alguém lê? E não será nossa vida o tempo da Leitura?” – as maiúsculas são por conta dele. Outro argentino, Ernesto Sabato, no livro O escritor e seus fantasmas, afirma que o homem de hoje – do nosso tempo – “vive em alta tensão, diante do perigo da aniquilação e da morte, da tortura e da solidão. É um homem de situações extremas, chegou aos limites últimos de sua existência ou está diante deles. A literatura que o descreve e o interroga só pode ser, portanto, uma literatura de situações excepcionais”.

       Longe deste humilde ghost writer a pretensão de se comparar aos mestres da escrita, mas se não tentamos aprender com eles, com quem mais haveríamos de aprender? Este livro sem nome – e há uma boa razão pra que seja assim – narra exatamente a verdade dos fatos, se é que existe de fato alguma verdade ou algum fato que mereça nossa atenção.

      Como geralmente ocorre em casos semelhantes que alimentam as manchetes do noticiário, nenhuma das mortes relacionadas à firma seria esclarecida pelas autoridades (in) competentes. Pior que isso, aquele que havia deflagrado o processo não sobreviveria por muito tempo.

      O epílogo deste romance, que mistura ficção e memória, não traz nenhuma novidade. Portanto, qualquer semelhança com fatos reais e pessoas vivas ou mortas não terá sido mera coincidência. Lembro que durante a Segunda Guerra, na Europa, Guimarães Rosa havia saído de pijamas pra comprar cigarros e, ao retornar, o prédio onde morava havia sido bombardeado. Por isso ele dizia que o vício havia salvado sua vida.

       Com Jota se daria justamente o contrário. Saiu do meu apartamento pra comprar cigarros no início da noite. Devido às tensões dos últimos dias, havia sucumbido ao vício que interrompera havia mais de seis anos. Ao sair do prédio, enquanto eu permanecia debruçado sobre o notebook no esforço de fechar mais um capítulo da narrativa, ele foi interceptado por dois sujeitos de capacetes, montados numa motocicleta. Provavelmente nem chegou a olhá-los direito, pois o homem da garupa disparou à queima-roupa dois tiros de pistola contra sua cabeça.

      Ouvi os estampidos, estupefato, e olhei pela janela a tempo de ver a motocicleta empinar feito um cavalo de ferro e sair cantando pneus. Jota agonizava no asfalto e tudo o que eu disse foi “puta merda”. Saí correndo do apartamento e desci os três lances de escada que me separavam da rua e corri ao seu encontro, a exemplo de algumas pessoas que se aproximavam sem saber direito o que havia acontecido. Ajoelhei-me ao seu lado e gritei pra que chamassem o serviço de emergência, mas logo constatei que os para-médicos nada poderiam fazer. Jota estava morto e seu livro, inacabado.

      Não preciso dizer que o crime sequer seria associado aos fatos anteriores. A polícia descartou a hipótese de que as três mortes ocorridas após o assassinato da ex-secretária tivessem algum tipo de ligação. “Acidentes acontecem e a violência está à espreita em cada esquina das grandes cidades”, declarou peremptório o delegado de homicídios durante uma entrevista coletiva. No dia do enterro, antes de ser suicidado ou alvejado por uma bala perdida, tratei de fazer as malas e fui passar uma longa temporada na casa da minha irmã, em Buenos Aires.

      Pouco a pouco, as notícias sobre a firma perderam espaço na mídia. Li num blog de notícias que o gerente de produção havia sido efetivado no cargo de diretor-executivo, depois de fechar acordo com seu antecessor. Este resolvera permanecer na política, “pelo bem do povo”, enquanto os eleitores assim quisessem. A polícia não descobriu nada que pudesse ligá-lo à morte das duas secretárias e os processos foram arquivados por falta de provas.

     O governador do estado candidatou-se à Presidência da República e convidou o prefeito da cidade pra disputar sua sucessão no antigo cargo pelo mesmo partido. O livro que Jota havia escrito sob encomenda do consultor comportamental, agora deputado federal, tornou-se um best-seller e o autor chegou a ser cogitado pra ocupar o cargo de ministro da Cultura e também seria eleito para a Academia Brasileira de Letras, ocupando justamente a cadeira do fundador.

      Diante de tudo isso, desisti da sórdida ideia de me apropriar da autoria deste relato. Dessa forma estou protegido e, ao mesmo tempo, presto um justo tributo à memória do cliente que se tornara meu amigo. Trata-se do testemunho da existência de Jota e de sua ingênua cumplicidade com o poder. A ironia é que ele sequer teve tempo de sugerir um título. No entanto, posso garantir que o escritor cujo nome está impresso na capa e na folha de rosto deste livro foi desde o início seu único e legítimo autor.

 

PS: Qualquer semelhança desta obra com personagens ou histórias reais não terá sido mera coincidência.

 

 

                                                             FIM

 

                                             

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