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Romance inédito

 

        Primavera dos mortos

                                                 Jorge Fernando dos Santos

                                          Parte 2

                               Capítulo 19 - Arlindo de Moura

 

O POVO DIZIA que padre Herculano tinha o corpo fechado, pois havia sobrevivido a duas emboscadas.

Da primeira vez, um sujeito que morava na parte baixa do lugarejo, numa das margens do Ribeirão das Mortes, meteu-lhe a faca no bucho depois de ser repreendido pelo fato de ter espancando a mulher.

Pelo visto, a pobre se queixara durante a confissão e o vigário tentou aconselhar o matuto, que, além de não trabalhar, passava a maior parte do tempo bebendo cachaça e arranjando confusão.

Juscelino Baptista, primo da Helena em segundo grau, foi quem costurou as tripas do vigário lá na sua farmácia. E em menos de um mês, olha o estripado celebrando missa, totalmente restabelecido!

Dizem que depois de sarar da bebedeira e se lembrar do que havia feito ao homem de Deus, o cachaceiro abandonou a mulher e sumiu de Morro do Calvário para nunca mais voltar. Na certa, temia ser preso pela Força Pública ou praguejado pelo sacerdote. A crendice popular ensina que pior que maldição de padre só mesmo praga de mãe, não é mesmo?

De outra feita, padre Herculano se meteu numa pendenga rural, lá pelos lados do Velho Chico. Um primo dele, conhecido como Sinfrão, era pequeno fazendeiro na região de Pirapora e teve parte de suas terras invadida por ordem do grileiro Ubaldino Bezerra.

Destemido feito ele só, e confiante nos poderes de Deus, lá foi o padreco tentar resolver a questão na base da boa prosa. Visitou o rancho do cujo e o aconselhou a retirar o arame farpado que impedia que o gado do primo Sinfrão fosse beber água fresca no rio.

O tom da conversa ninguém me contou. Só sei que na hora em que ele pegou a estrada de volta montado em seu burro laranjo, um jagunço do tal Ubaldino armou tocaia à sombra de uma gameleira e o arrancou da sela com um tiro de papo-amarelo. O povo conta que o vigário ficou estendido no chão, com a cara na poeira, até o cair da noite.

Aí um cigano, que passava pelo lugar numa carroça enfeitada, o encontrou e percebeu que ainda respirava. Levou-o para o acampamento à beira do rio e lá ficou sabendo que a bala da carabina havia alvejado o crucifixo de prata, o que diminuiu o impacto do disparo em seu peito, fazendo a bala estilhaçar.

Uma velha cigana extraiu os resquícios de chumbo e cauterizou a ferida com um punhal avermelhado em brasas. Alguns dias depois, olha o vigário de volta a Morro do Calvário, para a alegria das beatas!

Desde menino, sempre freqüentei o templo do Rosário, onde fui batizado e me casei com a Helena. Lá também batizei meus filhos, como manda a Santa Madre Igreja. No entanto, nunca fui de acreditar em milagre ou nessa história de corpo fechado que o povo contava.

 

Naquela naquela noite, durante a festa do casório em minha fazenda, padre Herculano passou dos limites. Teve o desplante de dizer que eu havia cometido um grave pecado aos olhos de Deus por obrigar o tropeiro Leôncio a se casar com a Zizinha contra a vontade de ambos.

Eu disse a ele que não era homem de dar satisfações dos meus atos a ninguém. O padreco se destemperou na presença dos convidados e ameaçou até me excomungar.

Naquele ato, o meu sangue talhou nas veias e a matuaba me confundiu as idéias. Mandei que ele se retirasse com as próprias pernas, se não quisesse sair dali carregado na horizontal, indo direto para o cemitério e sem direito a um velório cristão.

Padre Herculano entendeu o recado, colocou a viola no saco e foi cantar noutra freguesia. O problema é que, depois daquele dia, passou a fazer sermões contra a minha pessoa e Morro do Calvário todo começou a falar no assunto.

No mundo em que a gente vive quem não é temido não é respeitado e foi aí que eu queimei no golpe. Mandei chamar em casa o Valdivino Pimenta, vulgo Vino de Rosa, também conhecido como Esquerdo. Era um mulato da minha total confiança e encomendei a ele a morte do vigário.

O problema é que o sujeito, mesmo depois de ter perdido a conta de quantos já havia despachado para o outro mundo, ainda era temente a Deus e se confessou receoso de que o padreco tivesse mesmo o corpo fechado.

Mas você não é matador profissional?

Isso lá eu sou, meu coronel, e aprendi com o meu pai, ele respondeu. Mas só mato pra mo’de ganhar a vida. Se o padre sobrevive e manda me prender, quem é que vai dar sustento à Rosa mais as crianças, heim? Além do mais, eu mesmo tenho o corpo fechado por graça de São Damião, a quem sempre rezo e peço que me proteja contra meus inimigos.

E dizendo isso, segurou o escapulário que trazia pendurado no pescoço e pôs-se a rezar com fervor sua reza de jagunço crente:

 

Fechai, ó São Damião,

Fechai o meu corpo com as sete escamas de ferro do dragão,

Vesti o meu espírito com as sete penas cortadas da asa do Cramulhão,

Soprai em meu peito os sete fôlegos de fogo do Arcanjo Gabriel,

Soai nos meus ouvidos as sete trombetas que tocam nas portas do céu… 

 

O homem era pai de cinco filhos e tinha mais um a caminho. Quando terminou a oração, eu disse a ele que, se fizesse o serviço direito, conforme o desejado, receberia o dobro do valor combinado para ajudar no enxoval do caçula que estava por vir ao mundo.

Aí ele coçou a cabeça com ares pensativos, andou de um lado para o outro como se estivesse no mundo da lua, retinindo as esporas no assoalho da minha sala.

 

Depois de um minuto, acariciou com o indicador uma verruga na venta direita e declarou que talvez pudesse fazer a coisa do modo certo.

E como vai ser?

Deixa comigo, seu Arlindo, deixa comigo e meu São Damião.

Olha, é nessas horas que eu vejo a capacidade do nosso povo. Mesmo sendo um homem simples descendente de escravos, criado na roça e incapaz de desenhar a letra Ó com o fundo de uma garrafa, o danado do Valdivino Pimenta, que só assinava a caderneta da venda com o polegar esquerdo, encontrou solução geniosa para o dilema. E olha só quanta imaginação a do caboclo...

Domingo cedo, pouco antes da missa das oito, o danado deu jeito de entrar às espreitas na sacristia e colocou no fundo do hostiário algumas balas do seu Parabelum.

No momento da eucaristia, sem suspeitar da diabólica trama do pistoleiro, que chegaria ao desplante de também se comungar naquela manhã de céu nublado, padre Herculano abençoou a própria morte.

Três disparos à queima-roupa – em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo – foram suficientes para que o sacerdote partisse ao encontro do seu Deus, em plena praça da matriz.

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