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Romance inédito

Primavera dos mortos

Jorge Fernando dos Santos

Parte 3

Capítulo 23 - Leôncio Duarte

SÓ DEPOIS do casamento é que fiquei sabendo o motivo pelo qual Gláucia Maria jamais respondera às minhas cartas. Coronel Arlindo havia interceptado todas elas, evitando que a filha caçula alimentasse qualquer esperança a meu respeito.

Na nossa primeira noite, depois da festança na fazenda, Zizinha confessou que nem desconfiara das intenções do pai. E disse também que jamais ousaria desobedecê-lo, por mais absurda fosse sua vontade.

Forçado pelas circunstâncias, deixei que a vida corresse de rédeas soltas. Zizinha e eu moramos na fazenda por uns tempos. Não demorou muito, ela ficou prenha e isso me deixou feliz, pois sempre sonhei ter filhos. No entanto, a felicidade durou pouco, pois Hilário nasceu doente.

Um médico de São Roque disse que isso aconteceu porque o parto foi demorado. Faltou oxigênio no cérebro e por pouco o menino não ficava também paralítico. Ou talvez até nem sobrevivesse. Cheguei a pensar que teria sido melhor, Deus que me perdoe!

Zizinha nunca mais engravidou. Também não gostava de se deitar comigo. Gostava mesmo era de rezar e cuidar de dona Helena, que foi morar conosco depois que o marido enlouqueceu.

Gláucia Maria estava cada vez mais bonita e também mais distante. Desde o dia em que Zizinha e eu nos casamos, ela não me dirigiu a palavra. Seu silêncio me torturava e sequer obtive resposta quando a cumprimentei nas poucas vezes em que nos vimos.

Continuou morando na casa de janelas azuis, em companhia do pai. Acho que, devido ao temperamento resignado, somente ela tinha paciência para cuidar do velho, que conversava sozinho, urinava nas calças e raramente tinha noção das coisas à sua volta. Era como se vivesse num mundo à parte, habitado por fantasmas que só ele conseguia enxergar e ouvir.

Teve um domingo no qual Zizinha e eu fomos visitá-los. Depois do almoço, o coronel caminhou com certa dificuldade em direção ao quarto e ela o ajudou, conduzindo-o até à cama.

Aproveitei a chance de ficar a sós na mesa com Gláucia Maria e pedi que me servisse limonada. Quando me estendeu o copo, segurei-lhe a mão e disse, não consigo viver sem você.

Ela ficou com as faces coradas e perguntou baixinho se eu havia enlouquecido.

Sim, respondi, estou louco de saudade e desejo.

Ela continuou cochichando, temerosa que Zizinha e o pai nos ouvissem lá do quarto.

Também tenho saudades suas, mas agora é tarde demais pra nós dois.

Nunca é tarde para o amor, retruquei.

Fala baixo, Leôncio, não quero magoar minha irmã.

Nessa hora aconteceu o inesperado. Zizinha veio do quarto e declarou que não ficaria magoada.

Com as faces quase em chamas, Gláucia Maria perguntou o que ela queria dizer.

Meu casamento só existe no papel, Zizinha explicou. Todo mundo sabe que tudo não passou de um capricho do nosso pai. Quando engravidei, cheguei a pensar que as coisas se ajeitariam. Mas, ao dar à luz uma criança doente, descobri o quanto havia sido tola em sonhar acordada.

Sei o quanto Leôncio ama você, minha irmã, e posso imaginar o quanto você também o ama, acrescentou. Não quero ser uma pedra no caminho de ninguém. Só não me separo porque sou católica e o divórcio é pecado aos olhos da Igreja. A única coisa que peço é que não deixem ninguém saber. Não suportaria ver nossa família mais falada do que tem sido até agora.

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Próximo capítulo: 24 - Padre Wenceslau - 14/12/2008

 

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