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Romance inédito

    

        Primavera dos mortos

 

                                                             Jorge Fernando dos Santos

 

                                                      Parte 2

                                  Capítulo 13 - Arlindo de Moura

 

             LEÔNCIO DUARTE só retornou a Morro do Calvário no dia do casório. Era um sábado chuvoso de janeiro e ele desembarcou cedo da jardineira que seguiria até São Roque, a maior cidade da região.

Fui pessoalmente recepcioná-lo na entrada do lugarejo. Fiz questão de conduzi-lo à pousada no meu Ford cabriolé, guiado por um empregado de confiança.

Ver a noiva no dia do casório, antes da cerimônia, pode dar azar, expliquei assim que ele expressou o desejo de falar com Gláucia Maria.

O tropeiro não demorou a perceber que seu casamento era o assunto do dia. Por onde o carro passava, as pessoas acenavam sorridentes.

Aí eu disse a ele que, apesar do jeito desconfiado e sisudo, os moradores de Morro do Calvário eram cordiais e hospitaleiros, principalmente com pessoas do meu convívio.

Neste lugar, quem está comigo está com Deus, avisei e, em seguida, falei que ele fizera bem em telegrafar avisando a hora de sua chegada pra que eu pudesse recebê-lo prontamente.

Acendi um cigarro de palha e, como quem procura esticar a conversa, passei a falar das gerações que haviam me antecedido, a começar pelo meu tetravô por parte de pai, que veio de São Paulo em companhia de outros bandeirantes.

Os Mouras se instalaram na região em meados do século XVIII e, desde os primórdios de Morro do Calvário, tornaram-se parte da história local, expliquei. Sempre dividimos o domínio político do lugarejo com os Benevides e os Baptistas, parentes da minha mulher, famílias também vindas de São Paulo atraídas pelo ouro.

Fiz uma pausa e, com certa cerimônia, comuniquei que Hilário já se encontrava nos campos da Itália para ajudar os aliados a combaterem as forças do Eixo. Ele havia nos mandado um telegrama de lá.

Veja você como são as coisas, comentei, eu aqui feliz da vida pelo casório de uma filha enquanto o irmão dela arrisca a vida numa guerra longe de casa. Toda noite a mãe dele reza o terço, pedindo a Deus proteção para os nossos pracinhas.

Leôncio disse que a guerra é um mal que contém todas as calamidades. Aí acrescentei que, no campo de batalha, o homem liberta a fera que esconde a sete chaves dentro de si mesmo.

É uma demência, isto sim, ele concluiu.

É mesmo, suspirei. Já ouvi falar de muita crueldade cometida nos campos das Europa.

Não precisa ir tão longe, disse ele. Também no Brasil já se cometeram muitas violências em nome da cobiça.

Lá isso é verdade, concordei. Por aqui mesmo muito sangue já foi derramado desde a  chegada  dos  bandeirantes, não é mesmo?  Consta  que os  índios  coroados  resistiram bravamente até serem dizimados. Os sobreviventes que não fugiram pra longe foram escravizados.

Dizem que minha tataravó foi pega a laço, acrescentei depois de tragar a fumaça.  Depois dos índios, a terra seria temperada com o sangue e o suor dos negros trazidos da África. Nossa igreja e os muros de pedra que ladeiam a estrada foram erguidos por bantos e jejes. O amigo pode calcular o esforço dessa gente e o tempo que levaram na empreitada.

O mundo não é nada justo, suspirou o tropeiro pouco antes de estacionarmos sobre uma poça d’água, em frente à Pousada São Jorge.

 

Aqui estamos, avisei e, enquanto o chofer pegava a bagagem no porta-malas, aconselhei-o a descansar. A cerimônia estava marcada para o início da noite, no altar do Rosário. A festa seria logo depois, na fazenda, devendo varar a noite mesmo se chovessem canivetes

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