Mario Benedetti
Iuri Muller
Para los de abajo en tabla, el estadio siempre es el enemigo: miles y miles de voces que los acosan, los persiguen, los hunden, porque generalmente el que juega aquí, el permanente locatario, es uno de los Grandes, y los de abajo sólo van al estadio cuando les toca enfrentarlos, y en esas ocasiones apenas si acarrean, en el mejor de los casos, algunos cientos de fanáticos del barrio, que, aunque se desgañitan y agitan como locos su única y gastada bandera, em realidade no cuentan, es imposible que tapen, desde su islote de alaridos, el gran rugido de la hinchada mayor. (Mario Benedetti, “El Césped”)

Foto: Eduardo Longoni
- No sé si el fútbol se va a recuperar, no tengo demasiadas esperanzas, pero Uruguay se recuperará.
A resposta acima pertence ao escritor uruguaio Mario Benedetti (1920-2009) e aparece em uma entrevista para o jornal argentino Página 12, em 2006. O futebol entrou na conversa não por iniciativa do jornalista, e sim pela vontade do próprio escritor. Pouco antes, foi convidado a responder sobre quais acontecimentos da sua vida (Benedetti já contava então com 86 anos) teriam sido inesquecíveis: “toda mi relación con Luz (sua esposa, falecida poucos meses antes da entrevista), desde la infancia. Y conocer a Fidel, también es inolvidable. Y el Maracaná. El fútbol fue muy importante, nos dio alegría. Y si ahora se puede recuperar la alegría, no es por el fútbol, es por la política. La gente tiene esperanzas en Tabaré Vázquez y son fundadas”.
Passaram-se cinco anos e, do panorama uruguaio observado pelo autor de “A Trégua”, muito mudou. Em 2006, Tabaré Vázquez, o primeiro presidente fora dos partidos Nacional e Colorado eleito pelos uruguaios, apenas iniciava o seu mandato. A Frente Amplia, depois de décadas de oposição, se tornava protagonista da política uruguaia – com o apoio de muitos dos intelectuais do Uruguai, como foi o caso de Mario Benedetti. Há cinco anos, o futebol da República Oriental também vivia outra realidade. A seleção nacional nem participou da Copa do Mundo da Alemanha e os clubes sofriam para passar da primeira fase da Libertadores da América.
Mario Benedetti foi um confesso torcedor do Nacional e da Celeste, mas sensível a ponto de lembrar tanto do sofrimento do goleiro brasileiro Barbosa como da festa vivida em solo uruguaio, ao destacar dois pontos sobre o que foi o Maracanazzo. A recente evolução do futebol oriental não pôde ser vista pelo escritor nascido em Paso de los Toros – foi em 2009, ano do seu falecimento, que o Nacional alcançou a semifinal da Libertadores depois de de 21 anos; feito que desencadearia outras grandes campanhas, como o quarto lugar do Uruguai na Copa do Mundo, a classificação da Celeste à Olimpíada depois de 84 anos, a presença do Peñarol na última final continental e, principalmente, o recente título da Copa América. A Frente Amplia, por sua vez, alcançou o segundo mandato com José Mujica.
Goleiro nos jogos da infância – “por vocación, o tal vez porque era asmático” –, Benedetti lembrava ter sido literalmente quase arrastado pela multidão da sua própria torcida na saída de um clássico no Estádio Centenário, quando ainda ia ao estádio na companhia do pai. Mais do que apreciar o futebol e se fazer presente nas arquibancadas, Benedetti mostrou entender do assunto justamente quando transformou os acontecimentos de cada domingo em literatura. O conto “Puntero Izquierdo”, de 1954, é tido como um dos primeiros relatos em língua espanhola que abordam o futebol como tema central. E ao preencher suas páginas com acontecimentos de uma partida, Benedetti não camuflou ou idealizou o jogo – em “Puntero Izquierdo”, a narrativa se passa nos arrabaldes de Montevidéu, onde qualquer coisa pode acontecer nos potreros e no tempo em que os jogadores ainda tinham ligação com as fábricas em que trabalhavam.
Com a típica linguagem que ouvimos no futebol amador, o disputado nos bairros, Mario Benedetti conta como o suborno, a violência e a ingenuidade de um ponteiro esquerdo acabam por decidir uma partida que decidiria o acesso nas divisões inferiores. Por fim herói da sua parcialidade e gravemente agredido pelos que haviam negociado o resultado, o ponteiro ainda acaba demitido do seu emprego, já que o patrão descarta esperar pela recuperação. O conto, publicado em “Montevideanos”, talvez o primeiro sucesso de público e crítica da sua produção, se mistura com os demais textos do livro, relatos irônicos de personagens do cotidiano da capital uruguaia.
Escrito em 1990, 36 anos depois de “Puntero Izquierdo”, “Él césped” apresenta o futebol profissional de Montevidéu e os aspectos que diferenciam a capital de qualquer outra metrópole futebolística do mundo: a cidade sempre abrigou quase a totalidade das equipes da primeira divisão, conta com dezenas de pequenos estádios espalhados pelos seus bairros e, muito pela sua atmosfera provinciana, os jogadores acabam tendo um contato diferenciado entre si. Em “Él césped”, Benedetti narra situações menores, quase imperceptíveis para os olhares desatentos, mas que fazem parte do dia a dia do futebol – o vento que espalha os restos de cada partida em um estádio já vazio, os valores que levam as pequenas torcidas a desafiarem os grandes no Estádio Centenário, a sombra dos nomes de um passado vitorioso (Obdulio Varela, José Nazassi, Atílio García) sobre um futebol já decadente.
Em outros contos da sua larga obra, Benedetti fez do futebol um elemento para compor a história, criar uma anedota ou aproximar dois personagens. No conto “Fim de semana”, é a paixão pelo Nacional que inicia a aceitação do filho pela nova mulher de seu pai; em “Cambalache”, um jogador de “um certo time do Rio da Prata”, em excursão pela Europa, canta o tango de Carlos Gardel que dá o título ao conto e não o hino do seu país. No romance “Andamios”, de passagens autobiográficas, um uruguaio exilado na Europa admite que seja normal começar a torcer por qualquer equipe em que atue um uruguaio (seja o Zaragoza, o Albacete, o Tenerife), já que ninguém informa como anda o Peñarol, o Nacional, o Wanderers ou o Rampla Juniors. Em mais de 50 anos de literatura, Mario Benedetti contou, em poemas, ensaios, contos e romances, não um Uruguai heroico, das façanhas e dos caudilhos, mas o dos montevideanos de carne e osso, os dos bares, cafés e estádios de futebol.
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Iuri Müller é escritor colunista do site www.sul21.com.br
Fonte:
www.sul21.com.br
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