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Conto canino

 

O cão Achado

  José Saramago

Vou a um negócio de homens, desta vez tens de ficar em casa, disse Cipriano Algor ao cão, que correra para ele quando o viu aproximar-se da furgoneta. É claro que o Achado não necessitava que o mandassem subir, bastava que lhe deixassem aberta a porta do carro o tempo suficiente para perceber que não o expulsariam depois, mas a causa real da sobressaltada corrida, por muito estranho que possa parecer, foi ter ele suposto, em sua ansiedade de cão, que o iam deixar sozinho. Marta, que saíra para o terreiro conversando com o pai e o acompanhava à furgoneta, tinha na mão o sobrescrito com os desenhos e a proposta, e embora o cão Achado não tenha idéias claras sobre o que são e para que servem sobrescritos, propostas e desenhos, conhece da vida, em todo o caso, que as pessoas que se dispõem a entrar em carros costumam levar consigo coisas que, em, geral, mesmo antes de para eles subirem, atiram para o banco de trás. Instruído por estas experiências, percebe-se que a memória do Achado o tenha levado a pensar que Marta iria acompanhar o pai nesta nova saída da furgoneta. Apesar de estar aqui há poucos dias, não tem dúvidas de que a casa dos donos é a sua casa, mas o seu sentido de propriedade, por incipiente, ainda não o autoriza a dizer, olhando em redor, tudo isto é meu. Aliás, um cão, seja qual for o tamanho, a raça e o carácter, jamais se atreveria a pronunciar palavras tão brutalmente possessivas, diria, quando muito, tudo isto é nosso, e ainda assim, revertendo ao caso particular destes oleiros e dos seus bens móveis e imóveis, o cão Achado nem daqui a dez anos será capaz de ver-se a si mesmo como terceiro proprietário. O máximo a que talvez consiga chegar quando for cão velho é ao obscuro e vago sentimento de participar em algo arriscadamente complexo e, por assim dizer, de escorregadias significações, um todo feito de partes em que cada uma é, ao mesmo tempo, a parte que é e o todo de que faz parte. Idéias aventurosas como esta, que o cérebro humano, grosso modo, é mais ou menos capaz de conceber, mas que logo tem uma enorme dificuldade em trocar por miúdos, são o pão nosso de cada dia nas diferentes nações caninas, quer de um ponto vista meramente teórico quer no que se refere às suas consequências práticas. Não se pense, contudo, que o espírito dos cães é como uma nuvem bonançosa que levemente passa, uma alvorada primaveral de suave luz, um tanque de jardim com cisnes brancos vogando, se o fosse não teria o Achado começado, de repente, a ganir lastimeiro, E eu, e eu, dizia ele. Para responder a tal desgarramento de alma aflita, não tinha achado Cipriano Algor, apreensivo como ia pela responsabilidade da missão que o levava ao Centro, melhores palavras que desta vez ficas em casa, o que valeu ao angustiado animal foi ter visto Marta dar dois passos atrás depois de ter entregado o sobrescrito ao pai, assim ficou o Achado ciente de que não o iriam deixar sem companhia, na verdade, mesmo constituindo cada parte, de per si, o todo a que pertence, como cremos que já deixámos demonstrado por a + b, duas partes, desde que estejam unidas, fazem muita diferença no total. Marta acenou ao pai um cansado gesto de adeus e voltou para casa. O cão não a seguiu logo, ficou à espera de que a furgoneta, depois de descer a ladeira para a estrada, desaparecesse por trás da primeira casa da povoação. Quando daí a pouco entrou na cozinha, viu que a dona estava sentada na mesma cadeira em que tinha trabalhado durante estes dias. Passava os dedos pelos olhos uma , e outra vez como se precisasse de aliviá-los de uma sombra ou de uma dor. Decerto por estar no tenro verdor da mocidade, Achado não teve ainda tempo de adquirir opiniões formadas, claras e definitivas sobre a necessidade e o significado das lágrimas no ser humano, no entanto, considerando que esses humores líquidos persistem em manifestar-se no estranho caldo de sentimento, razão e crueldade de que o dito ser humano é feito, pensou que talvez não fosse desacerto grave chegar-se à chorosa dona e pousar-lhe docemente a cabeça nos joelhos. Um cão mais idoso, e por essa razão, supondo que a idade está obrigada a suportar culpas duplicadas, mais cínico do que o cinismo que não pode evitar ter, comentaria com sarcasmo o afectuoso gesto, mas isso deveria ser porque o vazio da velhice o teria feito esquecer-se de que, em assuntos do coração e do sentir, sempre o demasiado foi melhor que o diminuído. Comovida, Marta passou-lhe devagar a mão pela cabeça, acariciando-o, e, como ele não se retirava e continuava a olhá-la fixamente, pegou num carvão e começou a riscar no papel os primeiros traços de um esboço. Ao princípio, as lágrimas impediam-na de ver bem, mas, pouco a pouco, ao mesmo tempo que a mão ganhava segurança, os olhos foram aclarando, e a cabeça do cão, como se emergisse do fundo de uma água turva, apareceu-lhe na sua inteira beleza e força, no seu mistério e na sua interrogação. A partir deste dia, Marta vai querer tanto ao cão Achado como sabemos que já lhe quer Cipriano.

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Extraído de: SARAMAGO, José. A Caverna. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.85-87.

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