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Conto Canino

 

Madrugada

Orígenes Lessa

Dobrei a esquina do hotel, cansado e com sono. Caminhara o dia inteiro, tomando contato com a cidade, olhando vitrinas, examinando tipos, lendo tabuletas e painéis, admirando mulheres, ouvindo frases soltas, de diálogos alheios, procurando reconstituir, pela frase mal ouvida, o rumo da conversa, o drama, a intriga, o mexerico, os interesses que uniam aquela gente cheia de gestos e abraços.

Duas horas da manhã. Às sete, devia estar no aeroporto. Foi quando me lembrei de que, na pressa daquela manhã, ao sair do hotel, deixara no banheiro o meu creme dental. Examinei a rua. Nenhuma farmácia aberta. Dei meia volta, rumei por uma avenida qualquer, o passo mole e sem pressa, no silêncio da noite. Alguma haveria de plantão... Rua deserta. Dois ou três quarteirões mais além, um guarda. Ele me daria indicação. Deu. Farmácia Metrópole, em rua cujo nome não guardei.

- O senhor vai por aqui, quebra ali, segue em frente.

Dez ou doze quarteirões. A noite era minha. Lá fui. Pouco além, dois tipos cambaleavam. Palavras vazias no espaço cansado. Atravessei, cauteloso, para a calçada fronteira. E já me esquecera dos companheiros eventuais da noite sem importância, quando estremeci, ao perceber, pelas pisadinhas leves, um cachorro atrás de mim. Tenho velho horror a cães desconhecidos. Quase igual ao horror pelos cães conhecidos, ou de conhecidos, cuja lambida fria, na intimidade que lhes tenho sido obrigado a conceder, tantas vezes, me provoca uma incontrolável repugnância.

Senti um frio no estômago. Confesso que me bambeou a perna. Que desejava de mim aquele cão ainda não visto, evidentemente à minha procura? Os meus bêbados haviam dobrado uma esquina. Estávamos na rua apenas eu e aqueles passos cada vez mais próximos. Minha primeira reação foi apressar a marcha. Mas desde criança me ensinaram que correr é pior. Cachorro é como gente: cresce para quem se revela o mais fraco. Dominei-me, portanto, só eu sei com que medo. O bicho estava perto. Ia atacar-me a barriga da perna? Passou-me pela cabeça o grave da situação. Que seria de mim, atacado por um cão feroz numa via deserta, em plena madrugada, na cidade estranha? Como me arranjaria? Como reagiria? Como lutar contra o monstro, sem pedra nem pau, duas coisas tão úteis banidas pela vida urbana?

Nunca me senti tão pequeno. Efeito do uísque de má sorte, ingerido naquela boate encontrada ao acaso, tomou-me uma descontrolada sensação de desamparo. Eu estava só, na rua e no mundo. Ou melhor, a rua e o mundo estavam cheios, cheios daqueles passos cada vez mais vizinhos. Sim, vinham chegando. Não fui atacado, porém. O animal já estava ao meu lado, teque-teque, os passinhos sutis. Bem... Era um desconhecido inofensivo. Nada queria comigo. Era um cão notívago, alma boêmia como tantos homens, cão sem teto que despertara numa soleira de porta e sentira fome. Com certeza, saindo em busca de latas de lixo e comida ao relento.

Um doce alívio me tomou. Logo ele estaria dois, três, dez, muitos passinhos miúdos e leves cada vez mais à frente, cada vez mais longe... Não se prolongou, porém, a repousante sensação. O animal continuava a meu lado, acertando o passo com o meu - teque-teque, nós dois sozinhos, cada vez mais sós...  Apressei a marcha.

Lá foi ele comigo. Diminuí O bichinho também. Não o olhara ainda. Sabia que ele estava a meu lado. Os passos o diziam. O vulto. Pelo canto do olho senti que ele não me olhava também, o focinho para a frente, o caminhar tranqüilo, muito suave, na calçada larga.

- Bem. na esquina ele me deixa - pensei quase em voz alta.

Para a esquina fomos. Parei, vagamente hesitante, sem saber se era naquela ou na esquina seguinte que devia dobrar. E imediatamente vi que o bicho se detinha e me fixava.

- Não me liberto deste bicho - pensei, olhando-o, quase disposto a lutar, a enfrentá-lo com decisão.

Mas o bicho desviou os olhos.

É traiçoeiro e covarde - pensei. - Se não tomo cuidado, ele me assalta.

E de novo o medo me alcançou. O animal devia estar com fome. Talvez estivesse desesperado. Não podia penetrar-lhe as intenções, é claro. Se ele ao menos me olhasse, poderia formar alguma idéia. Mas ele olhava, com uma curiosidade despreocupada, para outro lado.

Dei dois passos à frente, ele fez menção de marchar. Fiz meia volta à esquerda e atravessei a rua. O animal vacilou, ficou um instante parado.

- Desistiu - disse comigo.

E estuguei o passo. Mas ainda não alcançara o outro lado, já o tinha junto a mim, as patinhas sutis, em ritmo cadenciados pipocando no chão.

- Ele há de parar em algum poste. Nesse momento, fujo.

Mas os postes sucediam-se e caso raro entre os cães, ele continuava indiferente. Não farejava, não hesitava, não parava, parecia farto dos cheiros caninos que em todas as árvores, postes, quinas e esquinas tanto excitam os seus irmãos de toda a terra.

Assim foi que continuamos, às vezes mais rápido, outras vezes mais lento, metros, metros e metros, ao longo de calçadas, cruzando ruas, quadras, quadras, quadras. O medo maior havia passado. Já caminháramos juntos vários quarteirões, e ele não dera indício maior de hostilidade. Provavelmente nada teria contra mim. Não era de briga. Mas a sua presença me transmitia um indizível desconforto. Marchávamos quarteirões sobre quarteirões sem que houvesse outro alguém nas ruas de iluminação visivelmente racionada. E aquela sensação de continuar sozinho ao sabor dos caprichos de uma dentada de rafeiro sem dono, sem ninguém para quem apelar, sem porta aberta onde buscar refúgio, punha-me um aperto na alma, impossível de negar.

Com que alívio, num dobrar de esquina, avistei o letreiro luminoso que anunciava a farmácia. Luz vinha do interior. Estava aberta. Lá encontraria outros seres humanos, ouviria voz humana, dividiria com os outros a atenção do animal. Talvez se perdesse por entre os balcões ou por entre as pernas de outros possíveis clientes. Talvez se interessasse por eles. Talvez se assustasse com as luzes da casa e arrepiasse carreira. Ou talvez, pelo menos, estivesse distraído à minha saída, permitindo-me a fuga.

Entrei. Creme dental. Por que não uma escova nova? Quanto custava a loção de barba anunciada naquele cartaz com um homem sorridente que afinal descobrira o segredo de conquistar o olhar e o coração de todas as mulheres? Era caro? Não era? Eu queria, na verdade, encher tempo. Havia que descorçoar o meu estranho companheiro de madrugada que felizmente ficara lá fora. Após alguns minutos, já pago o creme dental e uma latinha de talco, voltei-me para a porta. Não o vi. Desaparecera, afinal! Boa-noite, satisfeito, e ganhei a rua. Mal dei os primeiros passos, porém, vi que era acompanhado outra vez.

- Você não pirou, seu cachorro?

O cachorro me olhou pela primeira vez, com olhos tão doces e interrogativos, que me comovi. Pareceu-me ver o desespero da sua incompreensão, menos pelas palavras que pela aspereza do tom. Parei. E foi numa tentativa de reconciliação, envergonhado comigo mesmo, que sorri para o meu misterioso acompanhante:

- Como é, compadre... você não tem casa?

Naturalmente ele não entendeu as palavras, mas sentiu que o tom era outro. Havia agora uma tranqüilidade amiga nos seus olhos bons. Recomecei a caminhada, pleque-pleque ele seguia, sereno, humilde, cabisbaixo. Resolvi fazer experiências. Dobrava esquinas, cruzava as ruas, ia de uma para outra calçada. Sempre que mudava de rumo ele estava a meu lado, não atrás, não à frente, silencioso e calmo, sem mostrar surpresa, jeito cansado de resignação e doçura.

Voltei a falar-lhe várias vezes. Sempre que falava, detinha-me. Ele se detinha também e me encarava com uma curiosidade muda e mansa. Não havia sofrimento na sua impossibilidade de responder. Nem esforço. Era um pobre cão de rua na madrugada sem homens nem carros nem barulhos.

Como se chamaria? Fiel? Sultão? Peri? Lord? Leão? Jo1i? Chamei vários nomes e nenhum teve sentido. Era cão sem dono e sem nome, apesar de não dar impressão de desnutrido, que ele saberia seguramente se defender na batalha pelos ossos da rua.

Mas não estaria com fome?

Assaltou-me de novo aquela idéia. Aquela marcha silenciosa ao lado do homem desconhecido talvez não significasse outra coisa.

- Está com fome, velhinho?

Seus olhos doces nada disseram, mas ainda assim convenci-me de que era esse o problema. Tive remorso da minha insensibilidade. Fiel, Lord ou Sultão, com ou sem dono, ele tinha fome. Por isso caminhava pela noite adentro. Por isso aderia ao primeiro passante. E alonguei os olhos a ver se descobria algum bar ou botequim. Alguns quarteirões adiante, numa rua transversal, havia feixes de luz sobre a calcada. Para lá rumei, certo de que o meu amigo me acompanharia. Os passinhos se amiudaram em meu seguimento. Era um bar de última classe. Um mulato dormia, a cabeça caída sobre a mesa de ferro.

- Tem queijo?

Atirei-o ao cachorro. O animal olhou-o com indiferença.

- Mortadela?

O meu companheiro não se mostrou interessado.

Vi um pernil de porco. Pedi um pedaço. O português do balcão me achava muito mais bêbado que o seu bebedor solitário e adormecido. Mas satisfez a encomenda.

Abaixei-me, chamei o cão, ele se aproximou agitando a cauda, estendi-lhe, sem o jogar no chão, o naco cheiroso e tentador. O cachorro, os olhos onde nadava uma doçura ainda mais contagiosa, contemplou longamente a oferta inesperada e voltou-se para a rua, como a dizer que não tinha fome.

- Quanto é?

Paguei a despesa e saí, meu amigo a meu lado, teque-teque na calçada.

- É amigo desinteressado - pensei. - Talvez esteja aqui para me proteger. Sentiu, talvez, que estou correndo algum perigo.

E um receio novo me encheu o coração. Dois quarteirões adiante ouviam-se os passos de um noctâmbulo apressado, atravessando a rua. Nisso, avistei as luzes do hotel. Senti a necessidade de correr para ele, de fugir novamente. Atravessei a rua e, pela primeira vez, o meu cão ficou do outro lado, pensativo. Tomou-me um medo supersticioso.

- Como é! Você não vem?

Sem hesitação e sem festa, como num gesto de rotina, ele baixou a cabeça e veio ao meu encontro, continuou a marchar comigo.

Meu coração se alegrou: Você está aqui para me proteger, não é, velhinho? Ele continuou caminhando, de cabeça humilde. Estávamos na porta do hotel.

- Quer entrar?

Ele me contemplou com o jeito triste de quem sabia ser inútil o convite. A larga porta iluminada não fora feita para os cães de rua. Examinei o meu relógio de pulso. Três da manhã. Dentro de quatro horas deveria estar no aeroporto.

- Então adeus, camarada ...

Curvei-me, acariciei-lhe a cabeça, ele fez um movimento macio de agrado e de gratidão.

Dois ou três minutos depois eu estava no meu apartamento do segundo andar. Cheguei-me à janela. O cachorro continuava na calçada, solitário e sereno, olhando talvez com tristeza as luzes do hotel imponente.

Nisso, vem da esquina, do outro lado, um vulto de homem. Os passos ressoam. O vulto cambaleia na noite. O animal voltou os olhos, ficou a contemplá-lo, por alguns segundos. O homem caminhava pela calçada fronteira, passava agora sob as luzes fortes, continuava, incerto e só. Foi quando o meu companheiro se movimentou. Cruzou a rua, teque-teque, foi chegando, acertou o passo com o desconhecido. Vi-os caminhando lado a lado, mais um quarteirão. Na segunda esquina o homem dobrou. Meu amigo também.

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Fonte: Perez, Renard. Escritores Brasileiros Contemporâneos, v. I .Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. (Conto publicado no livro LESSA, Orígenes. Balbino, Homem do Mar, Editora José Olympio: Rio de Janeiro, 1960, págs. 124-131).

 

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