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Conto canino

                         Mr. Bones

                                                                                                    Paul Auster

Eram três horas da tarde e o ar estava repleto do som de cortadores de grama, jatos de irrigação de jardim e passarinhos. Longe, em um viaduto invisível ao norte, um cego enxame de veículos pulsava sob a paisagem do subúrbio. Um rádio tocava e uma voz de mulher começou a cantar. Mais perto, alguém soltou uma gargalhada. Parecia o riso de uma criança pequena e, quando Mr. Bones alcançou o fim do bosque em que tinha perambulado durante meia hora, enfiou o focinho entre os ramos e constatou que de fato era esse o caso. Um menino louro, de dois ou três anos, estava sentado no chão cerca de três metros à sua frente, arrancando tufos de grama e lançando-os para cima. Toda vez que um punhado de folhas pousava em sua cabeça, ele deflagrava uma nova sequência de risinhos, batia palmas e se sacudia para cima e para baixo, como se tivesse descoberto a brincadeira mais formidável do mundo. A uns dez metros do garoto, uma menina de óculos andava de um lado a outro com uma boneca nos braços, cantarolando mansamente para o bebê de brinquedo, como se tentasse fazê-lo dormir. Era dificil dizer que idade tinha a menina. Algo entre sete e nove anos, calculou Mr. Bones, mas também podia não ter ainda sete anos, ou haver feito dez anos pouco antes; para não dizer que até podia ter pouco menos de seis, ou então estar prestes a fazer onze anos de idade. À esquerda da menina, uma mulher de bermuda e frente-única brancas se agachava junto a um canteiro de flores vermelhas e amarelas, cuidadosamente escavando ervas daninhas com uma colher de jardinagem. Estava de costas para Mr. Bones e, como usava um chapéu de palha com aba muito larga, seu rosto inteiro estava oculto para ele. Mr. Bones se limitava a observar a curva de sua coluna, as sardas nos braços esguios, a mancha de um joelho branco, mas mesmo com um só desses poucos elementos para se guiar ele podia ter certeza de que ela não era velha, não tinha mais do que vinte e sete ou vinte e oito anos, o que provavelmente queria dizer que era a mãe das duas crianças. Receoso de avançar, Mr. Bones permaneceu onde estava, observou a cena de seu diminuto esconderijo na orla do bosque. Não tinha meios de saber se aquela família era pró-cães ou anticães, não tinha como saber se o tratariam com bondade ou o poriam para correr de suas terras. Mas uma coisa era certa. Ele tinha ido parar em um gramado muito bonito. Enquanto Mr. Bones ficou ali parado olhando para aquela faixa de veludo verde, tratada com extremo capricho, que se estendia diante dele, compreendeu que não era preciso ter muita imaginação para saber como seria gostoso rolar naquela grama e sentir os cheiros que vinham dela.

Antes de poder chegar a uma conclusão quanto ao que fazer em seguida, alguém decidiu por ele. O menino atirou mais dois punhados de grama para cima e, dessa vez, em lugar de cair direto em cima dele como ocorrera antes, uma pequena brisa soprou naquele exato instante e carregou as folhas de grama na direção do bosque. O menino virou a cabeça para observar o vôo das partículas verdes e, enquanto seus olhos varriam o espaço entre os dois, Mr. Bones pôde notar como a expressão de seu rosto mudou de isenção científica e fria para absoluta surpresa. O cão fora descoberto. O menino se levantou de um salto e se atirou na direção dele, guinchando de felicidade, enquanto se bamboleava para a frente em sua inchada fralda de plástico e, naqueles exato instante, com todo o seu futuro repentinamente posto em jogo, Mr. Bones resolveu que era o momento pelo qual esperava. Não só não recuou pari dentro do bosque nem fugiu às pressas, como também, no seu ânimo mais seguro de si e mai.s calmo, adiantou-se cautelosamente sobre o gramado e deixou o menino lançar os braços em tomo dele. "Au-au!", gritou o homenzinho, apertando-o com toda a sua força. "Au-au bonzinho. Meu au-au gozado!"

 

A menina veio logo depois, correndo através do gramado com a boneca nos braços e chamando a mulher que estava mais atrás. "Olhe só, mamãe", disse ela. "Olhe só o que o Tigre achou". Mesmo enquanto o menino o abraçava, uma onda de alarme atravessou o corpo de Mr. Bones. Onde estava esse tigre de que ela falava - e como um tigre poderia rondar por aqui, onde viviam pessoas? Uma vez, Willy o levara a um zoológico e Mr. Bones conhecia aqueles grandes gatos listrados das selvas. Eram maiores até do que os leões e, se um dia você desse de cara com uma daquelas belezinhas de dentes afiados, podia dar adeus ao futuro. Um tigre deixaria você em pedaços em uns vinte segundos e os bocados de seu corpo que ele por acaso não tivesse vontade de comer serviriam de banquete para os abutres e os vermes.

No entanto Mr. Bones não fugiu. Continuou a deixar seu novo amigo agarrado a ele, com toda a paciência agüentando o impacto da força fenomenal daquele filhote de gente, e torcia para que seus ouvidos o tivessem enganado, que ele tivesse entendido mal o que a menina dissera. A fralda meio frouxa estava encharcada de urina e, misturado com o cheiro forte de amônia, ele pôde detectar vestígios de cenoura, banana e leite. Em seguida a menina se agachou ao lado deles, espiou bem a cara de Mr. Bones com seus magníficos olhos azuis e de repente o mistério se esclareceu. "Tigre", disse ela para o menino. "Solte ele. Você vai sufocar o bichinho".

"Meu amigo", disse Tigre, apertando ainda mais seu abraço, e embora Mr. Bones tivesse ficado contente de descobrir que não estava prestes a ser devorado por uma fera selvagem, a pressão em volta de sua garganta estava agora se tomando forte o bastante para fazê-Io se contorcer. O menino podia não ser um tigre de verdade, mas isso não significava que não fosse perigoso. Ao seu jeito diminuto, ele tinha mais de animal do que Mr. Bones.

Felizmente a mulher chegou naquele instante e segurou o braço do menino, afastando-o de Mr. Bones antes que algo pior acontecesse. "Cuidado, Tigre", disse ela. "A gente não sabe se ele é um cachorro bom ou mau".

"Ah, ele é bom, sim", disse a menina, batendo docemente com a mão em cima da cabeça de Mr. Bones. "É só olhar nos olhos dele que a gente vê logo. Ele é bom de verdade, mãe. Acho até que é o cachorro mais bonzinho que já vi".

'Mr. Bones ficou espantado com aquela afirmação extraordinária da menina, e só para demonstrar como ele era gente boa, que era mesmo um cachorro que não guardava rancor, pôs-se a lamber a cara de Tigre em um grande frenesi de afeto babado. O minúsculo rapazinho soltou uma gargalhada e, embora o impacto da língua de Mr. Bones o fizesse, por fim, perder o equilíbrio, o bagunceiro Tigre achou aquilo a coisa mais gozada que já lhe havia acontecido e continuou a rir debaixo da enxurrada de beijos do cachorro, mesmo depois de tombar no chão, em cima da sua bunda ensopada.

"Bem, pelo menos ele é amigável", disse a mulher para a filha, como se estivesse fendo uma concessão importante. "Mas que sujeira horrível. Acho que nunca vi uma criatura mais imunda, emporcalhada e maltratada do que essa".

"Não tem nada de errado com ele que um pouco de água e sabão não possa resolver", retrucou a menina. "Olhe só para ele, mãe. Não é só bonzinho, também é esperto". A mulher riu. "Como é que você pode saber disso, Alice? Ele não fez nada a não ser lamber a cara do seu irmão".

 

Alice se pôs de cócoras diante de Mr. Bones e apoiou o queixo nas mãos em concha. "Mostre para a gente como você é esperto, meu garoto", disse ela. "Faça um truque ou alguma coisa, está bem? Você sabe, alguma coisa como rolar no chão, ou ficar de pé nas patas de trás. Mostre para mamãe que eu tenho razão".

Aquelas eram tarefas nem um pouco dificeis para um cão do seu gabarito e Mr. Bones imediatamente tratou de demonstrar o que era capaz de fazer. Primeiro rolou sobre a grama ­não uma vez, mas três -, depois arqueou as costas, ergueu as patas da frente e lentamente ficou de pé sobre as patas traseiras. Fazia anos que não tentava essa acrobacia mas, embora suas juntas doessem e ele cambaleasse mais do que gostaria, conseguiu se manter na posição durante três ou quatro segundos.

"Está vendo só, mamãe? O que foi que eu disse? exclamou Alice. "É o cachorro mais inteligente do mundo".

A mulher, pela primeira vez, agachou-se na altura de Mr. Bones, olhou-o nos olhos e, embora estivesse de óculos escuros e com o chapéu de palha na cabeça, ele pôde ver que era extremamente bonita, com mechas de cabelo louro que desciam em caracóis pela nuca e uma boca farta, expressiva. Alguma coisa estremeceu dentro de Mr. Bones quando ela lhe falou com sua entonação lenta e arrastada dos sulistas e, quando a mulher se pôs a dar tapinhas na sua cabeça com a mão direita, Mr. Bones teve a nítida sensação de que seu coração ia estourar em mil pedaços.

"Você entende o que estou dizendo, não é, cachorrinho?", perguntou ela. "Você é especial, não é? E está cansado, foi maltratado e precisa de alguma coisa para pôr dentro da barriga. É isso, velho amigo, não é? Está perdido e sozinho, e cada pedacinho de você está exausto".

Teria existido algum dia um vira-lata mais sortudo do que Mr. Bones naquela tarde? Sem mais discussão, e sem mais nenhuma necessidade de despertar a simpatia deles ou provar como era uma boa alma, o extenuado animal foi conduzido do quintal para os sagrados aposentos do lar da família. Lá, em uma radiosa cozinha branca, cercada de armários recém ­pintados, lustrosos utensílios de metal e um aspecto de opulência que Mr. Bones jamais pensara que pudesse existir no mundo, ele comeu até se fartar, regalando-se com sobras de rosbife, uma tigela de macarrão com queijo, duas latas de atum e três salsichas cruas, sem falar que também lambeu até o fundo duas tigelas e meia de água, enquanto comia. Bem que quis se conter e lhes mostrar que era um cão de apetites moderados, que não traria problemas para quem cuidasse dele, mas assim que puseram a comida na sua frente, a fome foi simplesmente avassaladora e ele esqueceu o juramento que fizera.

Nada disso pareceu incomodar seus anfitriões. Eram gente de bom coração e  sabiam reconhecer um cão faminto quando viam um e, se Mr. Bones estava esfomeado daquele jeito, eles por sua vez se sentiram absolutamente felizes de lhe dar de comer até que ficasse saciado. Mr. Bones comia em um transe de contentamento, alheio a tudo exceto à comida que ia para sua boca e deslizava pela garganta. Quando a refeição enfim terminou e ele ergueu os olhos em volta para conferir o que as pessoas estavam fazendo, viu que a mulher tinha tirado os óculos escuros e o chapéu. Quando ela se curvou sobre ele para tirar a tigela do chão, Mr. Bones captou um relance de seus olhos cinza-azulados e percebeu que era mesmo uma beleza fora do comum, uma dessas mulheres que faziam parar a respiração dos homens assim que apareciam.

 

"E aí, cachorrinho", disse ela, correndo a palma da mão no topo da cabeça de Mr. Bones.

"Está se sentindo melhor?"

 

Mr.Bones emitiu um pequeno arroto de satisfação e depois começou a lamber a mão dela. Tigre, de quem ele se esquecera totalmente a essa altura, veio correndo de repente na sua direção. Atraído pelo som do arroto, que achou muito engraçado, o menino se debruçou bem na cara de Mr. Bones e também soltou um arroto de mentira, do que achou mais graça ainda. Dava a impressão de que a qualquer minuto ia pintar outra truculenta cena de briga de bar mas, antes que a situação fugisse ao controle, sua mãe o arrebatou nos braços e se pôs de pé. Voltou-se para Alice, que estava recostada na pia da cozinha e examinava atentamente Mr. Bones com seus olhos sérios e perscrutadores.

"O que vamos fazer com ele, filha?", perguntou a mulher.

"Acho melhor ficarmos com ele em casa", respondeu Alice.

"Não podemos fazer isso. Na certa ele pertence a alguém. Se ficarmos com ele, seria como um roubo".

"Acho que ele não tem nem um amigo no mundo. Olhe só para ele. Deve ter andado um milhão de quilômetros. Se não ficarmos com ele, vai acabar morrendo. Quer ficar com isso na consciência, mãe?"

A menina tinha mesmo o dom para a coisa, não há dúvida. Sabia exatamente o que dizer e quando dizer e, enquanto Mr. Bones estava ali parado ouvindo as duas conversarem, perguntou-se se Willy não teria subestimado o poder de algumas crianças. Alice podia não ser a chefe da casa, e podia não ter a última palavra, mas suas frases acertavam a verdade em cheio e isso forçosamente tinha de produzir um efeito, mover as coisas em uma direção e não em outra.

"Dê uma olhada na coleira dele, meu anjo", pediu a mulher. "Talvez tenha um nome, um endereço, alguma coisa".

 

Mr. Bones sabia muito bem que não tinha nada ali, uma vez que Willy nunca havia ligado para coisas como licenças, registros e elegantes chapinhas de metal com o nome gravado. Alice se ajoelhou a seu lado e começou a rodar a coleira em volta do seu pescoço, em busca de sinais de sua identidade ou de seu dono e, como Mr. Bones já sabia qual seria a resposta, aproveitou o momento para desfrutar o calor do hálito da menina, enquanto o ar roçava por trás da sua orelha direita.

"Não mãe", disse ela, afinal. "É só uma coleira bem velha e surrada".

Pela primeira vez no curto tempo em que a conhecia, o cachorro viu a mulher hesitar, e uma certa confusão e tristeza se infiltrou em seus olhos.

"Por mim está bem, Alice", disse ela. "Mas não posso dar o sinal verde antes de falar com seu pai. Você sabe como ele detesta surpresas. Vamos esperar até que ele venha para casa, de noite, e aí todos juntos vamos tomar uma decisão. Está certo?"

"Está bem", respondeu Alice, um pouco murcha ante essa resposta inconclusiva. ''Mas são três contra um, mesmo que ele diga não. E o certo é o certo, não é? A gente tem de ficar com ele, mãe. Vou ficar de joelhos e rezar para Jesus o resto do dia, se isso fizer papai concordar".

 

"Não precisa fazer isso", disse a mulher. "Se quiser mesmo ajudar, vá abrir a porta e deixe o cachorro ir para fora, para que ele possa fazer suas necessidades. E depois vamos ver se a gente consegue limpá-Io.É o único jeito de a coisa dar certo. Ele tem de causar uma boa impressão logo de saída".

 

Abriram a porta para Mr. Bones, e foi bem na hora. Depois de três dias de privações, de comer não mais do que um dedinho de restos e de lixo, de fuçar os cantos à cata de qualquer comida indigesta que pudesse encontrar, a fartura nutritiva da refeição que acabara de consumir atingiu seu estômago com a força de um trauma e, com seus sucos digestivos de novo a todo vapor, trabalhando em turnos dobrados e até triplicados para assimilar o ataque recente, era tudo o que podia fazer para não emporcalhar o chão da cozinha e ser banido para um exílio perpétuo. Correu para fora, para trás de uma moita, tentando manter-se fora de vista, mas Alice o seguiu até lá e, para sua eterna vergonha e constrangimento, ficou ali para testemunhar a terrível explosão de um líquido repugnante que rugiu através de seu ralo de esgoto e respingou as folhas embaixo dele. Alice soltou um gemido de nojo quando isso aconteceu e ele se sentiu tão mortificado de desagradá-la que, por um momento ou dois, teve vontade de murchar e morrer. Mas Alice não era uma pessoa comum e, muito embora a essa altura ele já compreendesse isso inteiramente, Mr. Bones nunca imaginaria ser possível que a menina falasse o que falou logo depois. "Pobre cachorrinho", sussurrou Alice, com sua voz desconsolada e cheia de pena. "Você está todo doente, não é?". Foi essa a declaração completa - só duas frases curtas -, mas quando Mr. Bones ouviu Alice pronunciar aquelas palavras, compreendeu que Willy G. Natal não era o único bípede no mundo em que se podia confiar. Ficou claro que existiam outros, e alguns eram bem pequenos.

O resto da tarde transcorreu em uma onda de prazeres. Deram-lhe banho com a mangueira do jardim, encharcando seu pêlo com uma montanha de espuma branca e, enquanto as seis mãos de seus novos amigos esfregavam seu peito, suas costas e sua cabeça, ele nem conseguia lembrar como o dia tinha começado - e que coisa estranha e misteriosa que esse dia tivesse de terminar daquele jeito. Em seguida o enxaguaram e, depois que ele se sacudiu bem para secar e correu em volta do quintal durante alguns minutos, fazendo xixi em várias moitas e árvores ao longo do perímetro do terreno, a mulher sentou-se ao lado dele pelo que pareceu o tempo mais demorado do mundo, à procura de carrapatos em seu corpo. Ela explicou para Alice que o pai a ensinara a fazer isso na Carolina do Norte, quando era pequena, e que o único método garantido era usar as unhas e apertar com força as criaturas pela ponta de suas cabeças. Com os carrapatos presos desse jeito, não se podia simplesmente jogá-los no chão, nem se podia esmagá-los sob os pés. Era preciso queimá-los e, embora a mãe não estivesse de jeito nenhum incentivando Alice a brincar com fósforos, será que ela poderia fazer o favor de ir até a cozinha e pegar a caixa de fósforos Ohio Blue Tips na gaveta de cima, à direita do fogão? Alice fez o que lhe foi pedido e, nos momentos que se seguiram, ela e a mãe vasculharam juntas os pêlos de Mr. Bones, arrancaram uma série de carrapatos inchados de. sangue e incineraram os bandidos em pequenas chamas de calor brilhante e fosforescente. Como não ficar grato por isso? Como não se regozijar por ver esse flagelo agônico de coceiras e feridas retirado de seu corpo? Mr.Bones se sentia tão aliviado com o que estavam fazendo por ele que até deixou passar sem protestos o comentário seguinte de Alice. Ele sabia que o insulto era involuntário, mas isso não quer dizer que não tivesse ficado magoado.

"Não quero deixar você otimista demais", disse a mulher para a menina, "mas talvez não fosse má idéia dar um nome para esse cachorro antes de seu pai chegar do trabalho. Vai ajudar a criar a impressão de que eh~ faz parte da família e pode nos dar uma vantagem psicológica. Entende o que estou dizendo, meu bem?"

"Já sei qual é o nome dele", respondeu Alice. "Eu soube na mesma hora que vi". A menina fez uma pausa para reagrupar seus pensamentos. "Lembra aquele livro que você lia para mim quando eu era pequena? O vermelho com desenhos e todas aquelas histórias de bichos? Tinha um cachorro que era igualzinho a este aqui. Ele salvou um bebê de um prédio em chamas e sabia contar até dez. Lembra, mãe? Eu adorava aquele cachorro. Quando vi o Tigre abraçar este cachorro perto das moitas agora há pouco, foi como um sonho que virou realidade" .

"E qual era o nome dele?"

"Chispinha. O nome dele era Chispinha, o cachorro".

"Tudo bem, então. Vamos chamá-Io de Chispinha, também".

Quando Mr. Bones ouviu a mulher concordar com essa escolha absurda, sentiu-se melindrado. Já fora bastante ruim tentar se habituar ao nome Cal, mas isso era levar as coisas longe demais. Ele tinha sofrido bastante para ainda por cima ser castigado com esse apelido infantilóide e meloso, esse diminutivo forçado, inspirado em algum livreto cheio de ilustrações para pirralhos que estão aprendendo a andar e, mesmo que vivesse ainda um tempo equivalente ao que já vivera, sabia que um cão com seu temperamento melancólico jamais se adaptaria a um nome desses, que iria encolher-se todo sempre que o ouvisse, pelo resto de seus dias.

Antes, porém, que Mr. Bones pudesse se aborrecer de verdade, estourou uma confusão em outra parte do quintal. Nos últimos dez minutos, enquanto Alice e sua mãe catavam parasitas encravados no seu pêlo, Mr. Bones observava Tigre se entreter chutando uma bola de praia no gramado. Toda vez que a bola rolava para longe, ele corria na sua direção a toda velocidade, igual a um jogador de futebol alucinado em perseguição a uma bola duas vezes maior do que ele. O menino era incansável, mas isso não queria dizer que não pudesse tropeçar e dar topadas e, quando o acidente inevitável enfim aconteceu, soltou um berro de dor alto o bastante para expulsar o sol do céu e fazer as nuvens desabarem sobre a Terra. A mulher abandonou seus minuciosos afazeres para cuidar do menino e, enquanto ela o levava para dentro de casa, Alice voltou-se para Mr. Bones e disse: "Esse é o Tigre. Noventa por cento do tempo, ou ele está rindo ou está chorando, e quando não está fazendo nem uma coisa nem outra, você pode ter certeza de que alguma coisa esquisita vai acontecer. Você logo vai se acostumar, Chispinha. Ele só tem dois anos e meio e a gente não pode esperar muito de menininhos. Seu nome verdadeiro é Terry, mas todo mundo o chama de Tigre porque é um tremendo brigão. Meu nome é Alice. Alice Elizabeth Jones. Tenho oito anos e nove meses e acabei de começar a quarta série. Nasci com uns furinhos no coração e quase morri umas duas vezes quando era pequena, menor até do que o Tigre, hoje. Não me lembro de nada disso mas mamãe conta que sobrevivi porque tenho um anjo que mora dentro de mim e esse anjo vai me proteger a vida toda. O nome de mamãe é Polly Jones. Ela se chamava Polly Danforth mas depois casou com papai e mudou o nome para Jones. Meu pai é Richard Jones. Todo mundo o chama de Dick, e a maioria das pessoas diz que eu pareço mais com ele do que com minha mãe. Ele é piloto de avião. Voa da Califórnia para o Texas, para Nova York e para tudo quanto é lugar. Uma vez, antes de Tigre nascer, mamãe e eu fomos a Chicago com ele. Agora estamos morando nesta casa grande. Mudamos para cá faz poucos meses, então é mesmo uma sorte você ter aparecido 'logo agora, Chispinha. A gente tem muito espaço de folga, aqui, e estamos todos bem instalados, e se papai disser que a gente pode ficar com você, então tudo vai ficar perfeito aqui em casa".

Ela tentava fazer Mr.Bones sentir que era bem-vindo, mas o efeito final daquela desconexa apresentação da família foi deixar o cachorro em pânico e virar seu estômago pelo avesso. Seu futuro estava nas mãos de uma pessoa a quem nunca vira e, após ouvir os vários comentários emitidos até então sobre essa pessoa, parecia improvável que a decisão fosse favorável ao cachorro. A força dessa aflição fez Mr. Bones correr de novo para trás da moita e, pela segunda vez em uma hora, seus intestinos o traíram. Tremendo de forma incontrolável enquanto a merda jorrava em cima da terra, ele suplicou ao deus do mundo canino que protegesse o seu pobre corpo doente. Ele entrara na terra prometida, fora cair em um mundo de gramados verdejantes, mulheres bondosas e comida farta, mas se tudo degringolasse e ele viesse a ser expulso daquele lugar, tudo o que pedia é que suas desgraças não se prolongassem além do que conseguia suportar.

Na hora em que o Volvo de Dick estacionou na entrada, Polly já havia dado o jantar dos filhos - hambúrgueres, batatas assadas e ervilhas congeladas, e uma parte disso foi parar na boca de Mr. Bones - e os quatro estavam de novo lá fora, no quintal, regando o jardim, enquanto o final da tarde se convertia no início da noite e o céu se enchia com os primeiros toques de manchas escuras. Mr. Bones entreouvira Polly contar para Alice que o vôo de Nova Orleans devia chegar a Dulles às quatro e quarenta e cinco e se o avião não atrasasse e o tráfego aéreo não estivesse muito intenso, o pai dela estaria em casa às sete horas. Com alguns minutos a mais ou a menos, foi justamente nesse horário que Dick Iones chegou. Tinha ficado fora por três dias e, quando os filhos escutaram o barulho do carro se aproximando, os dois correram aos gritos pelo quintal e sumiram atrás do canto da casa. PolIy não fez nenhum movimento para ir atrás deles. Com toda a calma, continuou a regar suas plantas e flores e Mr. Bones ficou firme a seu lado, disposto a não deixar que ela sumisse de sua vista. Ele sabia que agora toda esperança chegara ao fim, mas se alguém podia salvá-Io do que estava prestes a acontecer, era ela.

Momentos depois, o chefe da casa veio caminhando para o quintal com Tigre num braço e Alice agarrada ao outro e, como vestia o uniforme de piloto (calça azul-escura, camisa azul­clara enfeitada com dragonas e emblemas), Mr. Bones confundiu-o com um policial. Foi uma associação automática e, com o pavor de uma vida inteira embutido nessa reação, ele não pôde deixar de se retrair quando Dick se aproximou, embora pudesse ver com os próprios olhos que o homem ria e parecia verdadeiramente feliz de estar de novo com os filhos. Antes que Mr. Bones pudesse pôr em ordem essa barafunda de dúvidas e impressões conflitantes, foi arrastado de roldão para o drama que se desenrolava naquele momento e, a partir de então, tudo pareceu acontecer ao mesmo tempo. Alice começou a falar com o pai a respeito do cachorro assim que ele pôs os pés para fora do carro, e ainda falava do mesmo assunto quando o pai entrou no quintal e cumprimentou a esposa (um beijo rápido na bochecha) e, quanto mais ela o assediava e se desmanchava em elogios a respeito da criatura maravilhosa que tinham encontrado, mais agitado ficava seu irmãozinho. Gritando "Chispinha" com toda a força dos pulmões, Tigre libertou-se do abraço do pai, correu para Mr. Bones e atirou os braços em volta do seu pescoço. Para não ficar atrás do seu minúsculo irmão, Alice também veio participar da cena, com uma grande e histriônica demonstração de afeto pelo cão, enquanto o atacava com repetidos abraços e beijos melodramáticos e, com as duas crianças de repente o massacrando desse jeito e recobrando suas orelhas com as mãos, o peito e a cara, Mr. Bones perdeu três quartos do que os adultos falavam. A única coisa que ouviu com alguma clareza foi a primeira declaração de Dick: "Então este é o famoso cachorro, hein? Para mim, parece um coitado de um vira-lata".

Depois disso, só pôde tentar adivinhar o que acontecia, na verdade. Bones viu Polly torcer o bico da mangueira, o que fez cessar o jorro de água, e então ela disse algo para Dick. A maior parte foi inaudível, mas pelas poucas palavras e expressões que Mr. Bones conseguiu captar, entendeu que ela defendia sua causa: "apareceu no quintal esta tarde", "inteligente", "as crianças acham ... ", e então, depois que Dick falou alguma coisa para ela, "não tenho a mínima idéia, talvez tenha fugido do circo". Parecia bastante animador, mas bem na hora em que ele conseguiu libertar sua orelha do aperto de Tigre a fim de escutar um pouco mais, Polly largou a mangueira no chão e andou com Dick rumo à casa. Pararam perto da porta dos fundos e continuaram a conversa ali. Mr. Bones tinha certeza de que coisas importantes estavam sendo resolvidas, mas embora os lábios se movessem, não conseguia mais ouvir o que diziam.

Pôde ver, porém, que Dick olhava para ele, gesticulava em sua direção· de vez em quando, com um vago movimento de varrer para longe com a mão, enquanto prosseguia a troca de idéias com Polly, e Mr. Bones, que estava ficando um pouco chateado com a espalhafatosa demonstração de amor que Tigre e Alice haviam iniciado, perguntou-se se nao seria uma boa idéia tomar ele mesmo uma iniciativa e fazer algo em seu próprio favor. Em vez de ficar ali à toa enquanto seu futuro pendia na balança, por que não tentar impressionar Dick com alguma façanha canina arrojada, alguma elegante gracinha de cachorro, que fizesse virar a maré a seu favor? Era verdade que Mr. Bones estava exausto, e era verdade que sua barriga ainda doía e suas pernas sentiam-se diabolicamente fracas, mas não deixou nada disso o impedir de saltar e disparar para o extremo oposto do quintal. Dando um grito esganiçado de surpresa, Tigre e Alice correram na direção dele, e na hora em que iam pegá-lo, pulou de novo para longe dos dois, disparando de repente na direção de onde tinha vindo. Outra vez foram atrás de Mr. Bones e mais uma vez ele os esperou até que quase o tivessem nas mãos, para só então escapar de um salto. Ele não dava essas arrancadas fazia séculos, e embora soubesse que estava forçando demais e que depois teria de pagar o preço desse empenho todo, continuou a fazê-lo, orgulhoso de se torturar pelo bem de uma causa nobre. Após três ou quatro corridas através do gramado, parou no meio do quintal e brincou com eles de dribles e esquivas - a versão canina da brincadeira de pegar -, e ainda que mal conseguisse respirar, não quis parar até que as crianças se dessem por venci das e tombassem no chão, de cansaço, à sua frente.

Enquanto isso, o sol começava a se pôr. O céu estava riscado por faixas de nuvens rosadas e o ar se tomara mais frio. Agora que o corre-corre havia terminado, parecia que Dick e Polly estavam prontos para anunciar seu veredicto. Enquanto Mr. Bones jazia arfante sobre a grama ao lado das duas crianças, viu os adultos darem as costas para a casa e começarem a andar de volta para o quintal e, embora não estivesse nem um pouco claro para ele se o seu desvairado acesso de vitalidade produzira algum efeito na decisão final, Mr. Bones se animou com o pequeno sorriso satisfeito que vincava as margens do rosto de Polly.

"Papai diz que Chispinha pode ficar", disse ela, e enquanto Alice pulava do chão e abraçava o pai, e Polly se abaixava e tomava nos braços o semi-adormecido Tigre, começava um novo capítulo na vida de Mr. Bones.

Antes, porém, que eles pudessem abrir a champanha e comemorar, Dick fez questão de meter a colher com alguns pontos adicionais - a notinha em letras miúdas no rodapé no contrato, digamos assim. Não é que não quisesse ver todo mundo feliz, disse Dick, mas por enquanto deviam entender que estavam com o cão em casa apenas em "fase de experiência" e, a menos que certas condições fossem satisfeitas, o acordo seria rompido. Primeiro: em nenhuma circunstância o cachorro deveria entrar em casa. Segundo: teria de ser levado ao veterinário para um exame completo. Se não estivesse com uma saúde razoável, teria de ir embora.Terceiro: tão logo fosse possível, marcariam um encontro com um tratador de cães profissional. O animal precisava aparar os pêlos, passar xampu e cuidar das unhas, bem como se submeter a uma completa varredura de carrapatos, piolhos e pulgas. Quarto: teria de ser castrado. E quinto: Alice ficaria responsável por alimentá-lo e mudar a água de sua tigela ­sem nenhum aumento na mesada pela prestação desses serviços.

Mr. Bones não tinha a menor idéia do que significava a palavra "castrado", mas compreendeu tudo o mais e, no conjunto, não pareceu tão mau assim, exceto talvez o primeiro ponto, não ter permissão para entrar em casa, pois ele não conseguia entender como um cão poderia tornar-se parte da vida doméstica de uma família se não tinha o direito de entrar na casa dessa família. Alice devia estar refletindo sobre a mesma coisa pois, tão logo o pai chegou ao último item da lista, ela o interrompeu com uma pergunta: "O que vai aconteder quando chegar o inverno?", indagou. " A gente não pode deixar ele aqui fora no frio, não é papai?".

"Claro que não", disse Dick. "Vamos deixá-lo na garagem e, se lá ainda estiver frio, vamos deixar que entre e fique no porão. eu só não quero que espalhe pêlos por todos os móveis, só isso. Mas vamos deixar tudo confortável para ele, aqui fora, não se preocupe. Vamos arranjar uma casa de cachorro de primeira clase, e vou erguer um cercado, amarrando uma tela de arame entre aquelas duas árvores ali adiante. Vai ter espaço de sobra para dar suas piruetas lá dentro e, depois que se acostumar, vai viver feliz feito um passarinho. Não tenha pena dele, Alice. Não é uma pessoa, é um cão, e cães não fazem perguntas. Eles se viram com o que tem". Com esta afirmação categórica, Dick pôs a mão na cabeça de Mr. Bones e lhe deu um apetão firme e viril, como para provar que não era um sujeito tão difícil afinal de contas. "Não está bem assim, meu chapa?", disse ele. "Você não vai reclamar, vai? Sabe que teve uma tremenda sorte de vir parar aqui e a última coisa que você vai querer, agora, é fazer a canoa virar".

Era mesmo um sujeito de muito expediente, aquele Dick, e embora o dia seguinte fosse domingo - o que significava que tanto o tratador quanto o veterinário não trabalhavam -, ele levantou cedo, foi até o depósito de madeiras na camionete de Poly e passou a manhã e a tarde inteiras montando uma casa de cachorro pré-fabricada (modelo de luxe, que incluia instruções para montar) e improvisando um cercado no quintal. Claramente pertencia a essa categoria de homens que se sentiam mais felizes arrastando escadas e martelando pregos em tábuas do que batendo papo com a esposa e os filhos. dick era um homem de ação, um soldado em guerra contra o ócio, e enquanto Mr. Bones o observava trabalhando para valer com sua bermuda cáqui e via o suor brilhando na sua testa, não podia deixar de interpretar toda essa atividade como um bom sinal. Significava que aquela história de "fase de experiência" de ontem não tinha sido mais do que um blefe. Dick havia desembolsado mais de duzentos dólares por aquele equipamento e ferramentas novas. Tinha dado duro no calor a maior parte do dia e não ia deixar seu trabalho nem seu dinheiro serem derperdiçados. A essa altura, ele já havia, por assim dizer, entrado na água e, até onde Mr. Bones podia entender, a questão dai para a frente era nadar ou afundar.

Fonte: AUSTER, Paul. Timbuktu. São Paulo: Companhuia das Letras, 2000, pp. 98-112.

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