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Direto da fonte

 

Ano 88      23 de Julho de 2006        nº 28.061

                           

E S C R E V E R ?

por Irinêo Netto

Coleção de entrevistas dá origem à uma série de livros sobre os mistérios da criação literária

Os franceses cismam em questionar os motivos de tudo. Para celebrar o centenário do cinema, o documentário Lumière & Cia. (1996) perguntou a 40 cineastas "Por que você filma". As respostas eram diversas. Wim Wenders, por exemplo rebateu apenas com "Porque (ponto)". David Linch disse que não precisaria mais filmar se soubesse a resposta.

       Em meados dos aos 80, jornalistas do Libération organizaram o livro Por que você escreve?, inédito no Brasil, com mais de 400 respostas de autores do mundo todo. Quando pôs as mãos nesse livro, José Domingos de Brito já se considerava um colecionador de entrevistas dadas por escritores e somava uma centena delas. Ao ler o livro francês, viu-se numa encruzilhada porque sua idéia já havia sido "bem executada e editada em livro". E se questionou se continuaria ou não com sua coleção. Brito disse sim e, a partir dela, planejou uma série de publicações chamada Mistérios da Criação Literária. Os dois primeiros volumes acabam de sair: Por que escrevo? e Como escrevo? (Editora Novera, 224 e 232 págs., R$ 39 cada).

       Na verdade, Por que escrevo? é uma 2ª edição ampliada. A anterior foi publicada pela Escrituras em 1999 (com sorte, ainda se pode encontrá-la em algumas livrarias), mas Brito não conseguiu dar sequência à idéia original. "Esta edição foi feita sem o apoio da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. O livro agora adquiriu autonomia", explica. Pela Novera, lança os dois primeiros volumes em uma leva. Os outros quatro deverão abordar as relações da literatura com cinema (a sair este ano), jornallismo, política e religião. Ao final da série, o panorama criado pela seleção de depoimentos pode não desvendar os mistérios da escrita, mas deve ao menos defini-los de maneira mais clara.

    Bibliotecário sênior do Parlamento Latino-Americano, o pernambucano Brito tem hoje mais de 3 mil entrevistas, acumuladas em 25 de seus 56 anos de vida. Ao fuçar sua coleção, percebeu que algumas perguntas e temas são recorrentes em conversas com escritores. Uma das fontes mais caras ao projeto é a revista The Paris Review, cujas entrevistas foram editadas no Brasil em forma de livro, primeiro como Escritores em ação (Paz e Terra) e depois como Os Escritores (Companhia das Letras). "A melhor coletânea de entrevistas até hoje realizada", segundo Brito.

       A grande diferença entre as edições de Por que escrevo? é o número de títulos na bibliografia comentada - foi de dez para 28, começando em 1851 (Sobre o ofício de escritor, de Arthur Schopenhauer) e terminando em 2004 (Negociando com os mortos, de Margaret Atwood). Os depoimentos também aumentaram - de 96 para 113, uma diferença de 17 autores (confira algumas frases nas margens desta página). Entre eles: o paranaense Dalton Trevisan - que diz escrever "com ternura" -, Blaise Cendrars, Carlos Heitor Cony, George Orwell, Gore Vidal, Gunther Grass, Julio Cortázar, Lya Luft e Máximo Gorki.

       Pela Escrituras, a obra tinha um visual mais sóbrio. A Novera a deixou mais enfeitada, usando uma fonte que imita a escrita à mão e emoldurando os números das páginas com o desenho de uma gota de tinta. Outras alterações foram mais sutis. Antes, o autor dividiu os testemunhos em "Memória Literária" e "Literatura Viva" para separar autores mortos e vivos. Agora, todos aparecem juntos debaixo do subtítulo "Depoimentos".

       As coletâneas pedem leitura aleatória, reforçada pelo chamado "indice de orelha" ou "indice de consulta simultânea", criado por Gilberto Monteiro Lehfeld, ex-colega de Brito no Centro de Documentação da Companhia de Engenharia de Tráfego, em São Paulo. Impresso no verso da orelha do livro, não é preciso deixar a página em que se está para consultá-lo.

       Emfim, não há apenas uma resposta possível para as questões propostas nos livros. Pode haver várias ou nenhuma. Assim como acontece com outros mistérios da vida, talvez seja melhor deixar a criação literária com os seus. Tem-se a impressão de que os escritores se sentem mais confortáveis em responder como trabalham. Explicar por que escrevem os deixa na defensiva. Brito acredita que a resposta se insinua na permanência da palavra escrita. Ela seria um meio de se sobreviver à morte.

Ernest Hemingway

"Escrevo até chegar a um momento em que, ainda não tendo perdido o gás, posso antecipar o que vem em seguida; paro e tento sobreviver até o dia seguinte, para voltar à carga".

Adolfo Bioy Casares

Tenho a impressão de que escrever é quase um presente que nos deu algo que não sabemos o que é".

Saul Below

"Penso que um escritor está na rota certa quando a porta de suas intuições natas é aberta".

Umberto Eco

"Geralmente eu faço uma coisa estranha que consiste em traçar palavras numa página".

Alain Robbe-Grillet

Eu escrevo romances há 35 anos. E nunca soube porquê".

Ariano Suassuna

"A literatura foi o caminho que eu encontrei para enfrentar essa bela tarefa de viver".

Dalton Trevisan

"Hoje (2004), escrevo quando dá vontade, com ternura. Às vezes, fico semanas sem pegar na caneta. É claro que com o passar do tempo vou ficando angustiado. Preocupado. Será que morri".

Graciliano Ramos

"Sei lá!"

Lya Luft

"Escrever para mim é indagar".

Juan Rulfo

"Escrevo para combater a solidão".

Gabriel Garcia Márquez

"Para que meus amigos me amem mais".

      

- Gazeta do Povo, 30/01/2000 - Valêncio Xavier
- Gazeta do Povo, 29/07/2008 - Marcio R. Santos