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Cinema
Carlos Fuentes

"É quase só lembrança a esta altura, John, porque o cinema que alguém vê quando criança ou quando jovem é o que mais fica no espírito. Quando eu era pequeno, ia ao cinema e dizia: "Vou ver este filme hoje e nunca mais. Vai desaparecer". Vi Capitão Sangue, com Errol Flynn e Olivia de Havilland, e não o verei mais. Mas hoje se obtém qualquer filme numa locadora, você vê todos os filmes do mundo ao lado da sua casa. Isso não era possível quando eu era menino ou adolescente. Então, desenvolvi uma grande memória para os filmes que via. Marcava os filmes, qualificava, tinha livretos de cinema. Isso me marcou muito, o cinema dos anos 1930, 1940, o cinema que amo e que ficou em mim. Hoje não sou tão ligado ao cinema, sobretudo porque houve uma degeneração do cinema, sobretudo o norte-americano, que é pura sensação, espetáculo, explosões, perseguições. Não há mais personagens, argumentos; às vezes não há nada. Isso não fica na alma, não fica na memória e pode produzir uma sensação momentânea e nada mais. Tenho que buscar o cinema do passado, o cinema europeu, o cinema japonês para achar o que me interessa mais. Acho que começa a haver uma reação no cinema norte-americano contra esse excesso de espetacularidade, que tira a gente de casa, de suas TVs para ir à sala maravilhosa e escura, de mãos dadas com a mulher amada, todas as coisas que faziam o encanto do cinema. Há pouco, o Los Angeles Times fez uma pesquisa entre 50 escritores perguntando quais consideravam os três melhores filmes do cinema norte-americano. Entrevistaram escritores da América Latina, a mim, inclusive, e eu respondi com três filmes. Veja o que você acha como cineasta. Em primeiro lugar, Cantando na chuva, Singing in the rain, de Gene Kelly, porque é o filme supremo da alegria, do otimismo norte-americano. Se os franceses podem dizer cartesianamente: "Penso, logo existo", um filme como Cantando na chuva, diz: "Danço e canto, logo existo". Mas há a contrapartida, que é Cidadão Kane, de [Orson] Welles, que é o filme da perda, da corrupção da alegria e do sonho norte-americano, um filme muito amargo. E depois, Taxi driver, de Scorsese, que abre a perspectiva de um inferno urbano que não entendo, de um mundo de autodestruição, droga, crimes. E de uma crise da civilização urbana, que Scorsese exemplifica com um filme como Taxi driver, mas que é um fato universal. A crise da civilização urbana é um fato universal. Existe em Nova York, Los Angeles, Cidade do México, Rio de Janeiro, Londres, Nápoles, está em todo o mundo. Há uma enorme decadência de todos os valores, o aparecimento de problemas, à primeira vista insolúveis, de gente sem teto, de doentes, de crimes, de drogas, de vício, da decadência dos serviços, das infra-estruturas, da educação, da saúde. Isso está acontecendo em todo o mundo. E me falta, do testemunho que pode dar-me Scorsese, ver as rotas da esperança. Não uma esperança adoçada, um otimismo forçado, como o de Frank Capra nos filmes com James Stewart, por exemplo. Estou esperando ver um cinema mais crítico na atualidade... Perdemos contato e sofremos problemas comparáveis. O cinema brasileiro, que tanto admiramos, como o de Glauber Rocha [, Nelson Pereira dos Santos, também perdemos. Acho que acontece a mesma coisa. Há poucos recursos para o cinema novo no Brasil e no México. Porém, há importantes cineastas jovens no México, entre eles Arturo Ripstein, que fez vários filmes extraordinários, o último se chama Rojo carmesí, tomara que seja mostrado aqui. Jaime Umberto Hermosillo, ... Há uma série de ótimos diretores no México, mas falta dinheiro, recursos, falta apoio. A situação é similar no cinema brasileiro e no mexicano... Eu posso dizer a você que dedico minha vida, basicamente, a escrever ficção, é o que me ocupa centralmente. O mais são subúrbios da minha cidade, que é a da ficção. Às vezes, nem chegam a subúrbios, já são avenidas, são ruelas perdidas, campos sem arar. O centro é escrever romances, o jornalismo me interessa muito, como exercício de prosa e também como participação na vida pública, como ato cidadão me importa muito. Como autor de argumento cinematográfico sou péssimo. Amo o cinema, mas sou incapaz. Buñuel [Luis Buñuel (1900-1983), espanhol naturalizado mexicano, um dos representantes do surrealismo no cinema] me dizia: "Como invejo, Carlos, sua capacidade de expressar-se literariamente. Eu sou péssimo. Estou em Paris e escrevo uma carta a minha mãe e digo: ‘Querida mamãe, escrevo-lhe para dizer que estou lhe escrevendo porque queria escrever-lhe, por isso lhe escrevo’. [risos] Assinado: Luis Buñuel’. E eu dizia: "Caramba, Buñuel, pois eu invejo sua imaginação visual. Quisera ter essa imaginação". Quando García Márquez e eu nos juntamos para adaptar O galo de ouro, de Rulfo, passamos horas dizendo: "Ouça, Gabo, esta fazenda que estamos descrevendo tem uma cerca. Que adjetivo colocamos na cerca?". Passamos duas horas pensando em um bom adjetivo. E, logo, ele me dizia: "Esta vírgula aqui está mal posta". E discutimos a vírgula por duas horas. [risos] Vejam que tipo de adaptadores cinematográficos éramos. No caso de Gringo velho, comprado pela Columbia [Pictures Television], que teve como diretor o argentino Luis Puenzo, dois dos atores, Gregory Peck e Jimmy Smith, foram a Buenos Aires e me disseram: "Vimos a versão integral de Gringo velho. Dura três horas e é uma maravilha, porque reúne todos os elementos visuais e imaginativos da vida de Ambrose Bierce [(1842-1913), crítico, contista, editor e jornalista americano cujo estilo era bastante satírico] sua relação com a Revolução Mexicana e a Guerra Civil dos Estados Unidos, os contos que escreveu sobre a guerra civil, como soldado de Pancho Villa [um dos principais comandantes do movimento] na Revolução Mexicana, porque queria acabar com sua vida. Nada dava certo em sua vida, era um homem amargurado, tinha perdido seus filhos, estava separado de sua mulher, sua filha o detestava e queria desaparecer, mas disse: “Não posso me suicidar, tenho uma consciência cristã, mas ser gringo no México é eutanásia". [risos] Cruzou a fronteira, uniu-se às forças de Villa e desapareceu para sempre. Parece que o filme completo mostrava isso muito bem. Mas houve uma mudança de diretores, como acontece nos estúdios de Hollywood e na Columbia, a nova direção disse: "É muito longo, um filme épico e literário de três horas não passa". E o reduziram a 1 hora e 20 minutos e a um romance entre Jane Fonda e um general revolucionário mexicano. E o filme foi detonado. Oxalá se pudesse recuperar a versão integral. Portanto, minhas experiências como espectador de cinema são excelentes, mas minhas experiências como participante do cinema são todas péssimas.

Fonte: Programa Roda Viva, da TV Cultura, 06/10/1997

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