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Dicionário de Filosofia de Mario Ferreira dos Santos
Substância

Substância (do latim sub stare, substantia, quod sub stat) nos dá a idéia de suporte, o que está abaixo, o que é estável, a base do que é real.
    Aristóteles distinguia a substância primeira de a substância segunda (substantia prima, substantia secunda, para os escolásticos) ousia prote e ousia deutera, em grego                                                                             O  mesmo conceito é aceito pela escolástica. Muitas outras definições foram propostas, como por exemplo, a de Descartes: «a substância é a coisa que existe de tal forma, que ela não tem necessidade senão de si mesma para existir», ou a de Spinoza: “Entendo por substância o que existe em si e é concebido por si; quer dizer, o que, cujo conceito não tem necessidade do conceito de outra coisa, do qual deva ser formado». Vê-se que Spinoza faz uma síntese da concepção de substância de Aristóteles com a de Descartes. O que existe em si é aristotélico, e o que não precisa de outra coisa para existir, é de Descartes.
    Na filosofia moderna, outros modos de compreender a substância surgiram. Leibnitz, ao mesmo tempo que repele o panteismo de Spinoza, repele o aparente estaticismo da concepção aristotélica. Só a mônada, e apenas ela, é a substância. Portanto, o que é próprio da substância é a vis, a conatio, a força leibnitziana, dinâmica e de expansão, que não deve ser confundida com a força estática e de empuxe dos gregos.
    Leibnitz opõe-se à critica destrutiva dos empiristas, como a de Hume e a de Locke. Leibnitz define a substância como o ens pareditum vi agendi, o ente dotado da força de atuar, o que ultrapassa o estaticismo da razão dos racionalistas.
    Locke aceita a substância, mas afirma a sua incognoscibilidade. Dela nada se sabe, e o de que nada se sabe é substância. “Nada mais é que uma forma especial da vinculação das qualidades. Supomos que há uma substância, porque não imaginamos as qualidades sem sujeito no qual são inerentes”.
    A impossibilidade de apreendê-la, que levou empiristas e alguns positivistas a negá-la, encontrou em Kant uma tentativa de solução. A substância é captável apenas por meios transcendentais. Substância e acidente são categorias de relação que correspondem aos juízos categóricos. No processo posterior da filosofia, ora se procura salvá-la, ora destruí-Ia. Predomina, no entanto, a tentativa de dinamizá-la, retirando-a do estaticismo (na verdade, aparente) em que estava.
    A substância é o primeiro gênero do ser, e é um ente de per si. E o que permanece. É importante o conceito de permanência no de substância, pois, na filosofia moderna, por influência de Wolf, afirmou-se que o aristotelismo predicava a imutabilidade da substância, o que permitiu as críticas de Kant a esse conceito. Kant desconhecia a obra aristotélica, e fundou-se nas afirmativas de seu mestre, Wolf.
    A substância é o que permanece, e não o que se perpetua numa imutabilidade, pois Aristóteles admite uma mutação substancial.
    CRÍTICA DA SUBSTANCIA NA ONTOLOGIA - Eis um dos temas que maiores preocupações têm provocado aos filósofos pela problemática que apresenta, cujas soluções têm dado origem a muitos erros, de conseqüências várias.
    Se se passam os olhos pela Filosofia, verifica-se que este termo foi tomado em vários sentidos:
    1) como essência das coisas;
    2) como o que não é acidental, como substância transcendental;
    3) como a entidade não acidental das coisas;
    4) como o que é incomunicável nas coisas;
    5) como o composto das causas emergentes (intrínsecas) da coisa: forma e matéria, na linguagem aristotélica.
    6) Como o que perdura durante as modificações acidentais.
    O termo substância, em seu sentido etimológico, não só decorre de substare, mas também de subsistere. Tomando o termo sistere, e dele sistentia, sistência, no sentido do que se afirma, se dá, pela prefixação, temos: sub-sistência, ex-sistência, ad-sistência (assistência) , per-sistência, in-sistência, re-sistência etc. Neste caso, substância é a sistência que jaz sob os acidentes, portanto algo que não é fenomênico, porque só o acidental o é, ou melhor o fenomênico é apenas o acidental, tomando aquele termo no sentido, na amplitude e função que se realiza no homem: para este, o fenomênico é o que é sensível, o que seus sentidos captam, mas também o que está apto a ser verificado por seus efeitos, enquanto é, em sua origem, algo acidental, algo que acontece.
     Considerando-se assim, a substância é o que perdura, sendo si mesmo, o que tem constância (no tempo, por exemplo), sem ser fenomênica imediatamente, mas que se pode verificar como algo que se dá separado no espaço e no tempo de outros seres como portador de acidentes.
     Compreende-se desde logo que o conceito de substância implica:
    1) certa independência em relação a outros entes;
    2) algo que é em si e por si (ensidade e perseidade);
    3) algo que é distinto do que sucede em algo e por algo;
    4) algo que é portador de acidentes, ao qual acontecem algumas coisas fenomênicas ou não.
    Assim se tem concebido em linhas gerais a substância, o que permite, então, tentar-se uma definição de caráter filosófico:
    A substância é algo, cuja quididade consiste em não ser em outro (aspecto negativo), e ser por si estante, sistente per se e até existente per se (aspecto positivo) Ou seja o que é por si e não em outro.
    É mister desde logo clarear as expressões: em-si e não-em-outro.
    Em si quer dizer o que não é por acidente, o que não acontece em outro.
    Não-por-outro o ser por si, que pode identificar-se a si mesmo (consigo mesmo) e que se opõe ao ser-em-outro.
    Clareemos, pois, esses conceitos: a substância tem uma unidade de essência, e não é um ente de outro, mas de si, e considerando-se como acima fizemos, o aspecto negativo e o positivo se coordenam, de modo que o negativo decorre necessariamente do aspecto positivo, o que dá a positividade desejada. Quando se diz que não é outro, diz-se que é um subjeto em si, e não apenas uma nota ou aspecto acidental de outro ser. A substância é o sujeito da sustentação dos acidentes, que dela dependem, é o sujeito de inesão, o que recebe uma forma.
   É a substância razão suficiente do ser. Para muitos escolásticos não é da essência da substância ser portadora de acidentes, pois o ser infinito (Deus) é uma substância sem acidentes, uma “substância pleníssima e perfeitíssima”. Contudo, em Filosofia Concreta mostramos a inconveniência de considerar assim, poís o ser infinito não é uma substância no sentido que intencionalmente se dá a esse termo, cujo conceito implica sempre o de ser portador de acidentes, já que a discussão em torno da separabilidade real de substância e acidente é tema ontológico, que não nos caberia tratar aqui.
    Para Descartes, “como substância só se pode entender a coisa que existe, que não precisa de nenhuma outra para existir”. É a substância única, nessas condições, é Deus, Na verdade, só Deus é propriamente uma substância, enquanto as outras, dos seres finitos, são apenas análogas àquelas, e nunca unívoca àquela.
    Spinoza diz: “entendo por substância o que é em si e é por si concebido; ou seja, o cujo conceito não necessita do conceito de outra coisa para ser formado”. A substância não é formada por outro ser, pois este seria a substância. Conseqüentemente, a substância, verdadeiramente, não se distingue uma de outra, o que leva a afirmar que a substância é necessàriamente infinita, o que o lançou decisivamente no panteísmo.
    Para Leibnitz, é o “ser capaz de ação”, a matéria capaz de agir e de resistir.
    Rosmini afirma que é energia pela qual os entes existem em ato.
    Para Wolf, é o ser perdurável e modificável, sujeito das determinações intrínsecas, constante e até variável. É o que contém em si o princípio das mutações.
    Para os escolásticos, há uma substância transcendental, que é a entidade que transcende a todos os predicamentos, a entidade não acidental, que é suficiente e existente per se. Só nesse sentido se pode dizer que Deus é substância. Mas deve-se acrescentar o atributo de incriada, para distingui-la da substância criada. Por sua vez, dividem a substância em completa e incompleta. A primeira é a que é concebida como substância integra, enquanto a segunda é concebida como composta.
    Aristóteles subdivide a substância em primeira (que é a matéria) e segunda (que é a forma), cuja composição constitui o synolon, a unidade substancial. «A substância é o que se diz de qualquer subjeto, ou dele se predica, não estando, contudo, num subjeto,»
    Para os escolásticos, as propriedades da substância são as seguintes:
    1) Não está num subjeto de inesão, nem de informação, nem de sustentação; é um ser completo de ordem substancial; enquanto completo, não pode ser parte de outra substância; enquanto substancial, não pode ser subjeto de inesão.
    2) Predica-se univocamente de seus inferiores.
    3) Significa algo aqui.
    4) Não tem contrário.
    5) Não é sujeito a mais ou menos, o que é da própria razão formal da substância.
    6) Pode receber em si os contrários, mas sucessivamente.
    Problemática - Dois problemas fundamentais surgem em torno deste tema:
    1) Se há substância? É a pergunta an sit? (se é?) 2) Em que consiste? É a pergunta quid sit? (o que é?).
    Nenhum filósofo pode negar a realidade do que é acidental, porque são fenômenos, ou seja, são captáveis pela nossa sensibilidade, têm uma base empírica. Contudo, a substância é algo meta-empirico, acima da empíria comum.
    Ante essa problemática, as principais respostas foram as seguintes, que passamos a sintetizar, para depois analisar e discutir.
   Entre os que afirmaram a realidade da substância, além dos que examinamos, como Aristóteles, os escolásticos, os racionalistas, como Descartes, Spinoza, Leibnitz, embora falseando o seu sentido, como vimos, examinemos agora a posição dos que negam a sua não existência (os negativistas) .
    Os empiristas e sensistas negam a existência da substância, por não ser ela objeto de empiria, e não ser captada pelos sentidos, já que a fonte do conhecimento (posição de Locke) são os sentidos, e estes não nos dão o conhecimento da substância. O que se entende por substância é a representação da unidade das diversas percepções, realizada pela atividade intelectual, que unifica as percepções simples, e lhe impõe, depois, o nome de substância. Em suma: a substância é o resultado de uma operação mental, que consiste em dar a representação da unidade das percepções. Nossa mente não pode admitir que certos aspectos e propriedades existam sem um ser subsistente que os conserve. Assim, conceitos como força e energia pertencem à noção de substância.
    Já vimos que Berkeley também nega a existência da substância das coisas, pois a única realidade destas, consiste em serem percebidas (esse est percipi). Só a alma e Deus constituem, para ele, seres reais. Os acidentes não têm um substractum.
    O empirista Hume afirma que a substância não é captada nem pela experiência interna, nem pela externa, mas “a idéia da substância nada mais é que a coleção das idéias simples que, pelo influxo da imaginação, foram unidas..,”
    Em suma, a substância é algo desconhecido, que julgamos existir.
    Kant, influido por Hume, reduziu a substância a uma categoria a priori, conceito não empírico, mas condicionado pela experiência, cujo valor objetivo é desconhecido ao homem. Na verdade, diz ele, o que se entende por substância é a permanência no tempo.
   Fichte nega simplesmente a substância, salvo a do ego fichtiano. Não há substância permanente, sustentadora de acidentes
   Os positivistas negam a substância para afirmá-la apenas como um conceito útil.
    Alguns cientistas modernos negam-na, já que toda natureza físico-química está em constante mutação, como nos mostram os atuais conhecimentos da atomística.
    Não se poderia discutir o em que consiste a substância, sem que primeiramente se analise os fundamentos da sua existência. A questão an sit (se existe) deve preceder a quid sit (em que consiste, o que é).
    Os que defendem a objetividade da substância argumentam do seguinte modo:
    Realmente, existe um mundo exterior ao homem. Ademais, nas coisas existe alguma coisa realmente objetiva. A primeira premissa é demonstrada pela refutação do idealismo. A segunda premissa recebe a seguinte demonstração: Há coisas realmente existentes. Ou elas existem em si mesmas, ou existem em outras. Se existem em si: eis a substância delas. Se existem em outras, estas existem em si ou em outras, e se interrogarmos mais, há de haver uma que exista em si, já que o processo in infinitum repugna. E repugna por que? Pela seguinte razão: o subsequente é subordinado ao precedente. Se este faltar, falta o segundo. Ora, numa série, se o antecedente é a razão do conseqüente, e se, por sua vez, tem sua razão noutro antecedente, se nenhum da série tem a razão, como a tem a série? Se faltar o primeiro que dê a razão à série, toda série deixa de ter razão de ser. E se não fosse assim, então toda a série teria uma substância, seria a sua substância, a sua razão de ser, seria per se. Por tais razões, é impossível aceitar a tese negativa.
    Por outro lado, afirmam que não temos experiência interna da substância. Mas nosso eu, como o sentimos, o concebemos? Como nada ou como alguma. Coisa? Qual é o argumento que pode negar a experiência interna do ou, da nossa pessoa? Se alguns literatos sistemáticos negam-no, fundam-se em que?
   No estado de morbidez em que vivem, na confusão de suas idéias nos desfalecimentos da sua mente e da sua desintegração psíquica ameaçada. Mas os lampejos de racionalidade, nos quais conseguem antever que são alguma coisa, já são suficientes para mostrar-lhes a objetividade de ai mesmos, por mais que a si mesmos neguem. Há, em nós, raciocínios, volições etc... embora transeuntes, sentimos como um mesmo (ego) através de todas essas mutações, e esse ego distingue-se realmente de tais momentos, pois não é uma determinação de tais estados. E captamos tudo isso imediatamente, sem necessidade de inferências, percebemo-nos como autômatos, e não como meras ficções de um outro ser.
    A experiência externa junto com o raciocínio, também nos demonstra a objetividade da substância. Percebemos os acidentes, o que acontece a alguma coisa, como algo que pode ou não acontecer, como sujeito de inhesão de tais aspectos.
    E por que surgem tantos erros em torno desta? Pelas razões seguintes: no mundo cronotópico, há coisas que devêm, que estão em constante mutação. Contudo, também conhecemos coisas que não sofrem mutações, como a multiplicação de 7 por 4, que dá, deu e dará sempre, e de todo sempre, 28. Mas ninguém dirá que 7 ou 4 e 28 são substâncias. Muitos julgaram que a essência da substância fosse a permanência. E que entenderam por tal? Entenderam a imutabilidade. Mas acaso tais conceitos são idênticos? Esta casa permanece aqui, a Terra permanece a girar em torno do Sol, o Sol permanece a brilhar no espaço. Para que tais coisas se dêem, é mister que esta casa, a Terra e o Sol sejam imutáveis? Por não haver imutabilidade absoluta não há permanência? Contudo, não é a permanência a essência da substância. porque então o 3, que permanece sempre e de todo sempre 3, seria uma substância. A substância permanece, mas nem tudo que permanece é substância, porque um acidente também permanece, sem ser substância. O que se pode e se deve entender por substância é o ser sujeito de inesão, o que pode existir independentemente como tal. Esta casa existe como um sujeito de inesão de seus acidentes. Como estes não se dão amparados no nada, porque não têm um existir independente, pois, do contrário, seriam substância, e são algo que acontecem com alguma coisa, esta deve permanecer, enquanto eles se dão, pois, do contrário, sustentados em que se dariam? A permanência no tempo de uma substância pode se dar numa fração mínima de tempo, instantânea, não importa, como acontece com certos entes sub-atômicos.
   Se um acidente tem em si sua razão de ser, é ele substância. Ora, os adversários da substância não afirmarão que aquele tenha razão de ser em si mesmo. Então onde estará sua razão de ser? Sustentada pelo nada? Sustentada por alguma coisa que seja seu sujeito de inesão? Então afirmará a substância.
    Todas as razões apresentadas padecem de fraqueza. O fato de não ser a substância objeto sensível, não implica a sua não-realidade. Seria mister provar, e o exigiríamos apoditicamente, que só pode ter realidade o que é objeto sensível. E .onde encontrariam a razão suficiente de tal afirmativa os sensistas? A substância é por nós captada numa experiência conjugada com a razão. Nós vemos esta casa, mas, na verdade, não vemos a casa, como não vê a casa um cão. A casa é algo que já implica uma esquemática mental. O que vemos são os acidentes, que tal casa mostra. Para dizermos que isto é uma caixa de fósforos, que aquilo é uma árvore, que esse animal é um cão, já penetram ai conceitos, esquemas eidético-noéticos diversos, uma operação mental superior. Os sentidos podem ser a fonte de nossos conhecimentos, ou melhor estes principiam ali, mas são estruturados, segundo a esquemática fundamental da nossa mente sem dúvida, que capta, nas coisas, o que estas têm de essencial, o que nelas permanece sendo o que elas são.
    Imobilidade e imutabilidade não são da essência da substância. Nem permanência se identifica com aquele conceito. Os erros, que surgem sobre a substância nascem dessas confusões originando outros.
    Alguns proclamaram, como uma sentença definitiva, que o movimento vibratório e o ondulatório demonstrou de vez a invalidade do conceito de substância, que os medievalistas haviam construído. Convém não esquecer que o vibratório e o ondulatório são de alguma coisa que vibra ou ondula, e não do nada.
    A SUBSTANCIA NA LÓGICA: Pode-se tomar a substância em sentido lato, e como tal significa a essência, e em sentido restrito como o fundamento que sustenta em si mesmo, como portadora de acidentes, como fundamento dos acidentes, o que subestá.
    Uma substância pode ser completa ou incompleta. A primeira é a simples, a segunda é a composta.
    Divide-se, ainda, a substância em primeira e segunda. A primeira é a que está no sujeito; a segunda, a que se diz do sujeito. Assim, na divisão aristotélica, a matéria é a substância primeira (ousia prote, substantia prima), e a forma, a substância segunda (ousia deutera, substantia secunda). A primeira é individualizante, a segunda é universalizante.
    A substância convém, pois ser por si ou subsistir, e subestar aos accidentes. Ser por si significa independência no ser (in essendo), embora não absoluta. Significa, pois, independência do sujeito da inesão e independência do conhecimento intrínseco substancial. A substância, que é sujeito, chama-se, na Lógica, substância predicamental.
    A substância transcendental pode ser finita (criada) ou infinita (incriada), e segundo a razão da completação, pode ser completa ou incompleta. A completa pode ser simples ou composta, simples como homem; composta, como filósofo. A substância incompleta ora o é em razão da espécie apenas (como a alma humana), ou em razão da espécie e da substancialidade, como a matéria prima e a forma substancial recebida na matéria.
    Acidentalmente, a substância predicamental divide-se em razão do modo de ser (universalidade e singularidade), e substância primeira e segunda. A substância primeira é o individuo, e a segunda é substância universal.
    Em sua essência, divide-se em composta (composta de partes essenciais), e simples (não composta de partes essenciais).
    Propriedades da substância. Anota Aristóteles as seguintes propriedades:
    1) não está num subjectum, não inere em outro. Esta propriedade convém tanto à substância primeira como à segunda. A substância primeira é o subjectum lógico da segunda, e esta se predica da primeira, que não é sujeito fisico ou de inesão.
    2) Significar ou ser um algo qualquer, quer dizer algo por si subsistente e substantivamente expresso, diferente dos acidentes, que apenas significam adjetivamente.
    3) Não ser sujeito a mais e menos; quer dizer que a essência substancial não pode tornar-se mais intensa ou menos intensa, como, por exemplo, o calor. Contudo, uma substância pode ser mais nobre do que outra.
    4) Não ter contrários. Dizem-se contrários aqueles que, no mesmo sujeito, se repelem, como a substância não está no sujeito não pode expelir alguma coisa do sujeito. A razão das qualidades contrárias não impede que as substâncias lutem entre si.
    5) Ser suscetível de contrários. Como a substância é sujeito da inesão dos acidentes, pode permitir acidentes contrários.
    6) A substância segunda pode ser predicada univocamente da primeira, porque aquela está contida nesta.
    ANALISE DA SUBSTÂNCIA E O ACCIDENTE NA LÓGICA E NA ONTOLOGIA ARISTOTÉLICA - Sustenta Santo Agostinho in Cathegorias c. 5, que os gregos chamavam, substância hipokeimenon (o que permanece keimenon, em baixo hipo); portanto o que subestá e subsiste, tomados, aqui, ambos termos, ora numa significação idêntica, ora em significações diversas. Estar debaixo equivale a estar sob outras coisas como suporte e fundamento ou sujeito delas. E isso pode suceder realmente, como se dá com a substância, que está sob os acidentes, já segundo a razão, como a substância primeira está sob a segunda (matéria que está sob a forma) que toma, em certas ocasiões, o nome de sujeito de inesão ou de predicação, e este último não é suficiente sem o anterior, para a razão de substância, porque também o acidente singular pode estar sob o universal da predicação, como salienta Suarez nas Disputationes Metaphysicae XXXIII, sec. 1,1. E acrescenta que convém entender o primeiro no sentido de estar sob os acidentes de maneira principal, ou seja ut quod, porque também pode um acidente estar sob outro ut quo e não ut quod, já que o mesmo necessita estar sustentado por outro (o acidente está como pelo qual, enquanto a substância está como o qual). Tudo isto estava já subentendido por Aristóteles com a negação “não estar em um sujeito”, pois a substância está sob os acidentes de tal maneira que não necessita um suporte semelhante. Também o conceito de estar debaixo significa que uma coisa é em si mesma tão sólida e consistente, que pode sustentar outra. Portanto, com esta interpretação, no verbo estar debaixo (subestar, substare), e no nome substância, que daquele se deriva, são indicadas duas razões ou propriedades: uma é absoluta. a saber, o existir em si e por si (inseitas e perseitas), propriedade que, atendendo à sua simplicidade, nós expressamos mediante a negação de existir em um sujeito; a outra é quase relativa e consiste em ser suporte dos acidentes.
    Esta parece ser justamente a primeira etimologia do nome substância, pois é partindo dos acidentes que chegamos à conceituação de substância e concebemos esta como algo que está sub. Contudo, como salienta Suarez, na disputa citada, a segunda condição tem prioridade absoluta, e é inclusive de si suficiente para a razão de substância, prescindindo da posterior. Só nesse sentido se pode dizer que Deus é substância, já que existe de modo eminente em si e por si (inseitas e perseitas), embora não esteja sob acidentes. Neste caso teríamos, então, que estabelecer uma divisão em substância criada, a que está sob os acidentes, e a incriada, a que apenas tem inseitas e perseitas, o que exige uma diferença, pois não bastaria apenas dizer que tem tais razões ou propriedades, mas, negativamente, acrescentar que não é suporte de acidentes. Se é ou não possível dar-se uma substância criada que não seja portadora de acidentes, que fosse apenas in se e per se, é tema controverso.
    Impõe-se uma ressalva quanto verbo substare, ou ao verbo subsistere, que, nesta matéria têm o sentido de permanecer no ser.
    COMENTÁRIOS SOBRE A DIVISAO DOS ACIDENTES - Esta divisão aristotélica em nove predicamentos acidentais é matéria que pertence também à Lógica sem dúvida, embora pertença principalmente à Ontologia (Metafísica Geral).
    Não só os antigos como os modernos ofereceram novas classificações, distintas da aristotélica, uns por julgarem-na insuficientes, outros por julgarem-na falsa. Na verdade, os argumentos apresentados não são valiosos nem convincentes, senão para aqueles que não se dedicaram a um estudo mais cuidadoso da matéria.
    Examinando esta matéria, Francisco Suarez, em sua Disputationes Metaphysicae, XXXII apresenta os seguintes problemas:
    A divisão do ente em substância e acidente é uma divisão ontológica, estabelecida por Aristóteles.
    Contudo, essa divisão apresenta algumas dificuldades que a filosofia posterior tentou resolver.
    Assim temos: 1) enquanto se refere ao ente finito, dependente, contingente; ou seja, o ente criatural na concepção cristã, a divisão não oferece grandes dificuldades, mas passa a oferecê-las ao tratar-se do ente infinito, independente, necessário, ao qual não se pode atribuir acidência, no sentido que Aristóteles considera como acepção deste termo. E a razão é simples: tal divisão implicaria estar - contido no dividente o que não está contido no ente dividido.
    2) E ainda alegam alguns autores que tal divisão não poderia, pelas mesmas razões, ser atribuída ao ente criatural, pois ter-se-ia primeiramente que dividir o ente em substância e acidente, e a substância, posteriormente, incriada e criada, já que, a razão de substância incriada convém com a incriada, não só na razão de ente, mas, também, na razão de substância. Logo, de nenhuma maneira poder-se-ia atribuir ao ente criado tal divisão.
    3) Por outro lado, há outras divisões do ente, que são igualmente universais e que distribuem igualmente o mesmo ente; portanto, não há nenhuma razão para preferir essa divisão às outras. E tal se dá porque o ente pode dividir-se em absoluto e relativo, e essa divisão é adequada ao ente, já que é impossível pensar em um ente que não esteja contido num desses dois membros. E decorre dai que essa é uma divisão próxima e imediata do mesmo ente, pois, do contrário, os membros dividentes não poderiam dividi-lo adequadamente,
    4) Por outro lado, o ente criado divide-se em ato e potência, e esta divisão também é adequada e imediata. Ainda se pode dividir o ente em completo e incompleto, já que se dão alguns entes íntegros e totais, como os suportes substanciais, que podem ser chamados, com razão, entes completos. Outras divisões são ainda apresentadas, nas mesmas condições, sem aumentar, contudo, a razão da dúvida que se oferece.
    5) Parece, ainda, que essa divisão é inadequada, porque existe algo que participa da razão de ente sem ser substância nem acidente. Temos o modo de uma coisa que não é substância da coisa nem tampouco acidente, já que não inere, mas apenas modifica, por certa identidade, a coisa da qual é modo.
    Assim, a dependência de uma coisa, como a criatura, é algo da coisa, e neste sentido está contida sob o ente, pois é alguma coisa e não nada; mas não é acidente, já que não está num sujeito nem procede de um sujeito, tendo, contudo, prioridade natural sobre qualquer sujeito, por proceder do nada. Também não é substância, pois distingue-se ex natura rei (para Suarez) da substância que se produz mediante ela.
    6) As dificuldades ainda acrescem devido a algumas propriedades da substância ou do ente, as quais, sendo consideradas em suas razões formais, não são consideradas como substâncias, mas como propriedades da substância. E tampouco são acidentes, já que não se distinguem da substância, nem real nem modalmente, mas apenas formalmente, por precisão intelectual, distinção que é de razão. Diz-se que é uma propriedade da substância ser apta para estar sob os acidentes, mas essa propriedade não acrescenta nenhum acidente à substância, nem explica a própria razão de substância.
    7) As propriedades do ente em comum não podem ser acidentes nem substâncias, por serem comuns a uns e outras, e, contudo, são entes, pois, do contrário, seriam nada.
    Ante, pois, essas razões, afirmam muitos que esses dois membros (substância-acidente) não dividem suficientemente o ente.
    SOLUÇÃO OFERECIDA POR SUAREZ - Inicia mostrando que é evidente que substância e acidente se manifestam, pois a água (substância) ora é quente, ora é fria (acidentes). Tais acidentes não fazem a substância perder coisa alguma. E se há quem afirme que há acidentes de acidentes, terá de admitir, contudo, que esses se detêm em alguma substância, já que não se pode proceder in infinitum, nem se pode deter em um acidente que não esteja inerente em alguma substância, pois, do contrário, não seria mais acidente, mas substância. E este ser será fundamental e radicalmente sujeito do acidente. Pretende, pois, demonstrar que a divisão do ente em substância e acidente é uma divisão congruente, E, comentando e analisando as razões contrárias apresentadas, oferece as suas em favor da tese aristotélica, que passaremos a compendiar.
   É evidente que a divisão do ente em ente em si e ente em outro é adequada, pois um ente ou é em si ou é em outro. Essa divisão robustece a aristotélica, pois a substância é o ente em si e o acidente o ente em outro. A justificação desta divisão é feita por ele longamente em suas famosas Disputationes Metaphysicas, e teremos ocasião de apresentar as razões que apresenta:
    Admitindo-se, para argumentar por ora, que cada um se toma, enquanto inclui a negação imediata do outro (a demonstração virá depois), conclui-se que o que não se acha em outro à maneira de acidente, ou seja inerindo ou afetando fora da essência das coisas, diz-se que existe por si, e é substância. Ao invés, tudo o que não é por si, mas adere a algo, existe em outro, chama-se acidente,
    O modo de existir por si é a negação do outro.
    As respostas às aporias oferecidas são as seguintes:
    a) não se dando no ser infinita, necessário e independente (que na filosofia cristã é Deus) nenhum acidente, todo acidente é criatural. Portanto, todo acidente é ente criado. Note-se, porém, que Aristóteles não considera como substância apenas o ente por si (per se), mas o que pode estar sob os acidentes, o que tem aptidão para estar sob os acidentes, o que é matéria de dúvida para muitos, não, porém, para Suarez.
    O modo de existir por si é o que constitui essencialmente, a substância criada, mas esta não o alcança com a máxima perfeição. Já o mesmo não se dá com a substância incriada, que possui a razão completa de substância em, virtude de sua essência. A substância criada não realiza plenamente a razão perfeita de substância, ou não subsiste perfeitamente, nem de maneira completamente absoluta, mas, sim, em ordem a compor um todo, como a matéria prima. A natureza substancial criada, como se verá, não é ato subsistente essencialmente, mas atitudinalmente. Portanto, como se vê nesta divisão, como é ela agora estabelecida, não se inclui a substância incriada.
    b) Na verdade, outras divisões anteriores a essas poderiam ser propostas, pois a substância poderia ser dividida em vivente e inanimada, a primeira em racional ou irracional, a racional em simples ou puramente intelectual e em composta ou discursiva, e por último a simples em criada ou incriada.
    Vê-se, pois que se podem multiplicar in infinitum essas divisões, jâ que as conveniências e diferenças das coisas podem ser concebidas por nós de ilimitadas maneiras por referência às diversas ações ou propriedades.
    Como há maiores distinções entre o ente criado e o incriado do que as entre os entes criados, Suarez propõe que a divisão primeira deve ser em ente a se (incriado) e o ente ab alio (criado), o primeiro por provir de si mesmo, e o segundo por provir de outro; o primeiro, por ter em si mesmo a sua razão e princípio de ser; o segundo, por tê-las em outro, do qual recebe o ser.
    Deste modo Deus, que é o ser a se, está fora de todo gênero ou de todo predicado. Por isso, embora de certo modo convenha na razão de substância com alguns entes criados, não convém de maneira unívoca, mas análoga, como fàcilmente pode concluir-se desde que se estudem as características que distinguem o ser a se do ser ab alio, como ele procede na sua famosa disputa XXXI.
   c) Sem dúvida podem ser excogitadas outras divisões do ente comum, além da entre substância e acidente. Mas esta supera as anteriormente indicadas, como a entre completo e incompleto, já que o que é incompleto num gênero pode ser ente mais perfeito que o que é completo em outro gênero, e o que num gênero completo, segundo a razão própria desse gênero, é absolutamente incompleto na razão ou no âmbito do ente, enquanto a divisão de Aristóteles apresenta maior adequação.
    d) Entre os acidentes há muitos que são apenas modos dos entes, como a figura, que é modo da quantidade e que, contudo, não participa da razão da quantidade, mas da qualidade, o “onde” (ubi) e outras que mais adiante serão examinados.
    Esses modos dos entes se reduzem aos gêneros das coisas de que são modos e com as que têm identidade real, de sorte que o modo da substância se reduz à substância e é substância ao menos incompleta, enquanto o modo do acidente é acidente, e ruduz-se àquele gênero de acidentes em que se encontra o próprio acidente ao qual pertence tal modo. Mas essa opinião, alega Suarez, não é universalmente verdadeira, porque às vezes sucede que o modo da coisa participa da razão de substância ou acidente que se dá na coisa da qual é modo. Tal afirmativa nem sempre é verdadeira, como vimos com a figura, que é modo da quantidade, mas que pertence à categoria da qualidade. O onde, que é um modo da quantidade, é, contudo, um predicamento especial.
    A DISTINÇÃO ENTRE SUBSTANCIA E ACIDENTE - Para uns, como Soncinas, VII Metaph., q. 36, seguido por muitos outros, a separação entre eles é real própria, como a que se verifica entre realidades mutuamente separáveis.
    Outros afirmam que não pertence à razão de acidente o distinguir-se da substância ex natura rei (pela natureza da coisa), ou seja, real ou modalmente, bastando apenas uma distinção de razão com fundamento in re, com fundamento na coisa, na realidade, Assim, na matéria prima, distinguem-se a potência receptiva e a substância da matéria, já que a razão de potência denota uma razão formal diversa, embora, na realidade, não se distinga da entidade em que se acha.
    Para outros, a substância é faculdade operativa próxima, quer por virtude natural, quer por virtude obediencial, virtude que não se distingue realmente da própria substância, e, contudo, é formalmente um acidente pertencente à qualidade, enquanto que a faculdade operativa nada mais é que uma potência, como salienta Suarez na disputa acima citada. Por outro lado, para que dois predicamentos de acidentes se distingam não é mister uma distinção real entre eles, bastando apenas uma distinção de razão formal em virtude do entendimento, como se vê entre ação e paixão (afeção), o que é suficiente para distinguir o acidente de a substância, pois a razão é igual, já que não se necessita de uma distinção maior que a predicamental.
    Outros afirmam que é mister uma distinção real, pelo menos modal. E a razão é que essa distinção não é apenas estabelecida pela nossa mente, mas deve dar-se na realidade, pois, do contrário, não seria um ente real, mas de razão. Contudo, onde não há distinção na realidade não pode manter-se nesta a verdadeira razão de acidente. Portanto, para a verdadeira razão de acidente é preciso que exista, na realidade, alguma distinção real entre ele e a substância. E prova-se por estas razões: se na realidade não há nenhuma distinção, não há nada que advenha realmente a outro, já que uma coisa não pode advir a si mesma, visto não poder-se pensar nada que, em relação a uma coisa, seja mais essencial que ela mesma. Portanto, sem distinção real não pode conceber-se a verdadeira razão de acidente real, já que pertence à razão de acidente advir a alguma coisa. Mas ainda podem apresentar-se outros argumentos. Pertence à razão de acidente alguma inhesão real, atual ou atitudinal. Mas uma coisa não pode ter, em relação a si mesma, verdadeira e real inhesão, mas omnímoda identidade real. Portanto, não é possível entender a verdadeira razão de acidente sem alguma distinção real. Ademais, quando a mente concebe sob diversos modos ou conceitos uma mesma substância, não forma nenhum conceito distinto e adequado da essência de tal substância. Como conseqüência, qualquer desses conceitos é inadequado à substância, segundo a sua razão substancial e essencial, e também a razão formal concebida na substância, enquanto se distingue dela unicamente de maneira conceitual, nunca tem verdadeira razão de acidente. E esses argumentos são corroborados por estes outros: se uma substância qualquer se concebe, distinta e adequadamente, tal como é em si, será concebida com um só conceito e segundo uma só razão formal adequada e essencial a ele, já que nenhuma razão formal pode ser mais essencial que aquela que é adequada à entidade da coisa e não se distingue dela na realidade. Portanto, nenhuma forma ou modo pode ter, na realidade, verdadeira razão de acidente se não se distingue real ou modalmente ex natura rei da substância. Fundado em textos de Tomás de Aquino, atribui Suarez essa doutrina ao aquinatense, pelo menos como probabilíssima.
    Finalmente, outros filósofos afirmam que se deve empregar uma distinção, porque uma coisa é falar do acidente real e físico (aquele que se dá nesta coisa), e outra falar do acidente lógico ou predicamental. O primeiro exige uma distinção ex natura rei pelas razões já expostas. No segundo sentido denomina-se acidente o que, segundo o nosso modo de predicar e conceber, predica-se, acidental e contingentemente, atendendo a alguma razão especial que baste para estabelecer uma ordenação predicamental. Ora,este último acidente nem sempre requer uma distinção atual na realidade, segundo essa opinião.
    Nas análises que se fará em torno dos predicamentos mais adiante, verificar-se-á que há fundamento para esta doutrina, como a mais segura, pois se é exigível a distinção real, quando se trata dos acidentes ônticamente considerados na coisa, já tal não é exigível quando são tomados apenas predicamentalmente. É mister, pois, distinguir o acidente enquanto predicável, enquanto predicamento, e enquanto físico (ônticamente na coisa),. como fizemos nos comentários ao Isagoge de Porfirio.
    A distinção predicamental não exige a distinção real necessàriamente, pois pode haver casos em que tal não se dá, em que não são realmente distintos da substância, quando, na realidade, não são atualmente distintos. Com essa distinção, que é também aceita por Suarez, resolve-se fàcilmente as dificuldades apostas pelas diversas posições, embora não sejam verdadeiros todos os exemplos que elas oferecem. Com a análise dos predicamentos, distinguindo o acidente predicável do predicamental e do físico (ôntico), como se procederá mais adiante, essas dificuldades desaparecem, ou melhor são resolvidas.
    É ANÁLOGA A DIVISÁO ENTRE SUBSTÂNCIA E ACCIDENTE? - No livro IV c. 2, da Metafísica, Aristóteles afirma que ente não se diz equivocamente da substância e do acidente. Pelo menos não há diversidade aqui entre os autores. O ente comum não poderia ser objeto da Metafísica se fosse ele equivoco. J!': verdade que Porfirio afirma, no capitulo sobre a espécie, que entepredica-se equivocamente dos dez primeiros gêneros. Scot nega tal afirmativa em Aristóteles, e despreza a autoridade de Porfirio. Mas convém esclarecer: nos autures antigos incluíam-se os análogos entre os equívocos, como se vê no próprio Aristóteles, em Santo Agostinho, o que também salienta Suarez em seus comentários ao Organon de Aristóteles.
    Defendem muitos que o ente é unívoco em relação à substância e ao acidente e argumentam da seguinte maneira: se substância e acidente não conviessem formalmente em nenhum conceito, não poderíamos formar nenhum conceito da substância em virtude do acidente, já que este conceito não seria próprio, como resulta evidente, nem comum, se não se admite tal conceito comum. Mas se há algum conceito comum, deve ser o conceito de ente. Ademais, o ente criado pode ser objeto de ciência, e a partir dele pode elaborar-se uma proposição universal e uma contradição, coisas que são indicio evidente de um só conceito comum formal e objetivo. Portanto, para tais autores, o conceito de ente criado é unívoco, porque se diz da substância e do acidente, segundo o mesmo nome e a mesma razão, no qual consiste a definição dos unívocos.
    Contudo, a opinião mais comum defende que o ente é análogo em relação à substância c ao acidente. Mantém esta doutrina Tomás de Aquino, Averróis, Alexandre, Porfírio, Alberto Magno, Ammonius e também a aprova Suarez, embora divirja este da maneira como muitos tomistas defendem essa posição, cujos argumentos repele para oferecer outros. E combate-os, porque pretendem excluir a unidade do conceito objetivo de ente. Ente se diz imediatamente da substância e de todos os acidentes, o qual é contraditório com o nome unívoco, pois tal termo significa de maneira imediata uma única razão precisiva e abstrata e comum às coisas das que se predica univocamente. Por outro lado, se o acidente fosse ente unívoco não se definiria mediante a substância, em oposição ao que ensinou Aristóteles no VI da Metafísica, c. E é isso patente, porque as coisas que convêm univocamente em alguma razão, convém na mesma definição, pelo qual uma delas pode ser definida mediante a outra. Outra razão é que se o ente fosse unívoco em relação à substância e aos acidentes, poderia incluir-se nas definições, pois é sempre legitimo incluir na definição de todas as razões comuns e nas que podem resolver-se os gêneros mais próximos, porque, em lugar do nome posto na definição, é legitimo consignar sua definição, segundo o testemunha Aristóteles nos II dos Tópicos, c. 2.
    O ente não é gênero nem diferença, pois o ente, unido aos outros predicados, não lhes acrescenta nada, como o afirma Aristóteles no IV da Metafísica, c. 2, pela qual constituiria uma falácia supérflua o unir o ente aos outros termos das definições. Como quarta razão, acrescenta Suarez, que se o ente fesse unívoco seria gênero, já que seria universal, porque seria um em muitos e de muitos, bem como não poderia ser outro universal que o gênero, como fàcilmente se põe de manifesto, recorrendo os outros, e porque se predicaria de muitos objetos especificamente diferentes. Por outro lado, os predicamentos não teriam uma diversidade primária, nem se dariam dez gêneros supremos das coisas, nem poderiam dar-se diferentes que contraíssem o gênero, já que isso pertence à razão de gênero, como se viu no Isagoge. E em favor da tese, argumenta Aristóteles, no III Metafísica, c. 10, que a univocidade ai é impossível, porque o gênero se encontra fora da razão de diferença, enquanto que o ente não pode estar fora da razão de coisa alguma.
    Contudo, essas razões todas merecem reparas de Suarez, que, com a sua argúcia incomparável, passa a examiná-las. Deve-se notar de antemão que Suarez aceita a tese. Apenas discorda de algumas razões por julgá-las fracas. Assim, a primeira razão, ao mesmo tempo que se apõe à univocidade do ente, ofende, contudo, também a unidade de seu conceito. E justifica: se o ente tem um só conceito, é necessário que o signifique de maneira imediata, a não ser que, por ventura, trate-se de um meio realmente prescindido dos inferiores, ou, pelo menos, que possa ser prescindido conceitualmente, de tal maneira que possua diferenças contrativas, nas quais não esteja incluído, de igual modo que o conceito de ente não está prescindido dos inferiores, embora,em absoluto, seja um meio conceptualmente distinto da substância e do acidente. E se o médio é considerado no primeiro sentido, que é restrito, fàcilmente se negará que pertença à razão de termo unívoco o significar, de modo imediato, alguma natureza abstraída dessa maneira, e prescindida de seus inferiores; pois é suficiente que signifique uma razão comum, que se encontre por igual nos inferiores, seja qualquer o modo que tenha de ser comum, pois da razão de univocidade não se pode inferir nenhuma outra coisa, e esse modo de abstração e precisão, como se verá mais adiante, não é necessário para a univocidade.
    É verdade que na definição de acidente, enquanto ente, não entra a substância, mas enquanto acidente a definição a exige. O ente, enquanto ente. tem sua razão na qual não inclui a substância, mas o acidente, considerado precisamente enquanto ente, só está constituído pela razão foi o acidente, enquanto em sua razão formal de acidente, exige a substância para ser definido, porque é ente de ente. As coisas, que convêm univocamente, têm a mesma definição, e tais termos não têm a mesma definição.
    A terceira razão se opõe não só à univocidade do ente, mas, também, à unidade de seu conceito e, sobretudo, não se opõe a nenhuma delas. Na verdade, a substância é um ente por si e o acidente ente em outro (in alio). Seria, neste caso, legítimo dizer-se, em vez de substância, ente por si (per se), e em vez de acidente ente em outro ? Cada um dos nove gêneros supremos são descritos como um acidente que afeta, de certa maneira determinada, a substância. Neste caso, porque não se poderia definir o acidente como o ente que afeta a substância de maneira determinada? Também se pode definir não só pelo gênero próximo e a diferença especifica, mas, também, pelo gênero remoto e todas as diferenças intermédias, e. pelo mesmo motivo, em lugar do gênero supremo, poderá consignar-se o predicado transcendental com o modo determinante. E não se incorreria em falácia, como o quer fazer crer a terceira opinião, como tampouco se incorre em falácia ao dizer que a substância é ente por si, mas apenas explica-se mais distintamente o que a substância expressa de maneira mais confusa, e embora 00 ente esteja incluído no mesmo modo por si em todas as diferenças inferiores, não obstante para que não haja falácia, basta que se dê diversidade na maneira de significar e de conceber, por modo de determinável e determinante.
    Em suma, alega Suarez, não se põe ante nas definições não por ser análogo, mas por ser um conceito transcendental.
    Por isso se deve dizer que quando Aristóteles nega que o ente se ponha nas definições, refere-se às definições próprias, que constam de gênero e diferença, e, neste sentido próprio. ter-se-ia de dizer, também, que os gêneros supremos não podem definir-se, e que, portanto. os transcendentais não pertencem às definições das coisas. Quando se define qualquer coisa dá-se por suposto que é ente, pois a questão essencial supõe a questão existencial. Por isso é supérfluo usar ente nas definições. Por isso conclui Suarez que quem quisesse pôr em lugar da substância (ou também do acidente, proporcionalmente) aquela descrição, que seria também um misto de definição, seria, quem o fizesse, apenas mais prolixo, contudo não estaria formulando falsidade, nem incorreria em absurdo, como pretende a argumento, até quando o ente fosse análogo.
    Quanto à quarta razão, nega Suarez a conseqüência, pois, embora fosse o ente unívoco, poderia não ser gênero, já que não expressa um só conceito totalmente prescindido das diferenças. mas incluído nelas, pelo qual não realiza uma verdadeira composição metafísica. da qual o gênero viesse a ser como uma parte potencial. Esta a razão porque muitos opinam que o acidente é unívoco sem ser gênero, e, de maneira semelhante, que o movimento se predica univocamente da ação e da paixão (afecção) e que o mesmo ente é unívoco em relação a algumas coisas, embora não o seja em relação a todas, o que será examinado mais adiante.
    QUAL A ESPÉCIE DE ANALOGIA QUE SE DEVE AFIRMAR? - A analogia, que se dá, não pode ser de proporcionalidade, mas de atribuição.
Aristóteles afirma que a analogia que se dá é a de atribuição. Tal afirmativa é freqüente em sua obra (como I de Ética c. 6, IV da Metafísica c. 2, VIII c. 4, XI c. 3, XII c. 4), tese também aceita por Tomás de Aquino, embora na Summa contra Gentiles I, c. 34 afirme que é uma analogia de proporção, tese em geral aceita pelos tomistas.
    É mister, antes de prosseguir, para bem entender o pensamento suareziano, e evitar certas criticas mal fundadas que lhe endereçaram alguns tomistas neste ponto, distinguir as duas maneiras de analogia de atribuição. Onde há analogia, há analogados. É um conceito didático de certo modo. Mas o logos analogante pode estar intrinsecamente em um dos analogados e nos outros por denominação extrinseca, e na segunda, pode estar intrinsecamente em todos os analogados, guardando estes certa ordem ou relação entre si.
    Ora, a denominação extrínseca não põe nada real na coisa denominada. Conseqüentemente, o acidente não pode ser determinado por denominação extrínseca tomada da substância, mas, sim, por entidade intrínseca, segundo a qual tem o seu próprio ser. Por outro lado, ente expressa imediatamente um só conceito objetivo, cuja razão formal encontra-se intrinsecamente em todos os entes, e em virtude dela ficam compreendidos sob a significação ou analogia do ente. Portanto, esta analogia contém uma intrínseca relação ou inclusão da razão formal de ente, tanto no acidente como na substância. Deste modo conclui-se que esta analogia não pode consistir senão em que essa mesma razão formal de ente não desça de maneira completamente legal e indiferente ao acidente e à substância, mas com certa ordem e relação que exige por si mesma; ou seja, que se dê primeiro de maneira absoluta na substância, e depois no acidente, por relação à substância.
    Ante tais argumentos, vê-se que este é também o pensamento de Scot, porque demonstra que o ente expressa a substância• e o acidente, mediante um mesmo conceito formal e objetivo. E desde o momento que se compreenda que a univocidade atribuída por Scot ao ente é a de quarto grau, a menor portanto, apenas a que é unívoca no nome e na razão lógica, as criticas que se façam, ao Doctor Subtilis são improcedentes.
    Segundo a nossa posição na Filosofia Concreta, o ente pode ser tomado logicamente ou ontologicamente, ou onticamente, ou seja, segundo o esquema mental que dele formamos, que é o lógico, no que é ele como algo que há em sua razão ontológica, ou como é a entitas na coisa em sua singularidade, em sua onticidade. Ente é, assim, unívoco logicamente, análogo ontologicamente e equivoco onticamente, já que cada singularidade, enquanto tal, é sempre outra que outra que si mesma. Esta temática é por nós estudada, esclarecida e demonstrada em “Temática e Problemática da Filosofia Concreta”.
    Não haveria uma unicidade de primeiro, nem de segundo, nem de terceiro graus, segundo a classificação escotista tão pouco compreendida por seus adversários, que não o estudaram, porque a não aceitação de univocidade funda-se na diferença entre esta unidade do conceito de ente e a unidade do gênero; pois o gênero, embora desigualmente' perfeito nas espécies, por razão da desigualdade de diferenças, razão pela qual se costuma dizer que fisicamente, ou segundo a realidade, é equivoco ou análogo, não obstante, considerado em si mesmo, não só se torna abstração dessa desigualdade, mas também de toda ordem de um a respeito do outro, já que não desce a uma espécie mediante outra, ou por relação a outra, pelo qual, metafisicamente, tem perfeita univocidade, o que não ocorre igualmente com o ente pela razão contrária.
    Por isso argumenta Suarez que a desigualdade do gênero, tal como existe nas espécies, provém unicamente das diferenças contrativas, que formal e precisivamente não incluem o próprio do gênero, e só consiste nos diversos graus de perfeição. Por outro lado, os modos, pelos quais o ente criado se determina ao ser da substância ou do acidente incluem, intrinsecamente, o mesmo ente, e por isso se diz que o ente, de certo modo, possui, por si mesmo a desigualdade que tem na substância e no acidente, desigualdade que tampouco consiste em uma diversidade qualquer na perfeição. mas uma participação tão diversa, que, na substância, encontra-se absoluta e simplesmente, enquanto, no acidente, acha-se apenas de maneira diminuída e por relação à substância.
    Dizem alguns autores, fundando-se em Aristóteles, que o acidente não é ente, mas apenas um ens-entis, um ente do ente. Ora, tal argumento é improcedente, porque ao se dizer que o acidente não é ente não se diz que não é uma entitas.                                                                                    SE O CONCEITO DE ACCIDENTE é um UM CONCEITO COMUM - A divisão do ser (ente) em substância e acidente é uma divisão adequada para Aristóteles, como o foi, depois, entre os escolásticos para o ente criado.
    Pergunta-se: se ente não é gênero para os predicamentos, o conceito de acidente pode ser tomado como gênero para os nove acidentes de Aristóteles? A leitura de certas passagens da obra do estagirita leva a admitir que ele, de algum modo vacilava ante esse problema.
    Os que admitem, que acidente tem um conceito comum são os mesmos que admitem que ente tem um conceito comum.
    Ora, não é possível resolver-se um problema dessa espécie, sem se clarear devidamente o que há em torno da analogia e da univocidade do acidente, pois sem se resolver esta questão não se poderá resolver a outra.
    Do mesmo modo que se pode tomar o conceito de ente logicamente, ou ontologicamente ou onticamente, pode-se tomar também o conceito de acidente. Ou seja, pode-se tomar acidente predicàvelmente (como um predicável), enquanto se diz que é algo, ou predicamentalmente (como predicamento), enquanto se diz que é verdadeiro que todo acidente sobrevém a algo, não se diz verdadeiramente que tudo acidente sobrevém a algo seja acidente. E, finalmente, pode-se tomar o acidente como algo que se dá objetivamente na coisa, nesta coisa. Temos, assim, o acidente tomado logicamente como predicável, ontologicamente como predicamento, e onticamente como acidente físico nesta coisa.
    Essas distinções nos obrigam, pois, a empreender outros caminhos para pesquisar em que sentido, e onde há um conceito comum para acidente.
    Propõem alguns que a razão comum do acidente consiste na inesão, em estar inerido em outro (in alio, na inaliedade). Ora, como vimos, não é necessàriamente acidente o que sobrevém a outro, embora o acidente seja o que sobrevém a outro. Conseqüentemente, não se pode afirmar que a inesão seja a razão comum do acidente, embora todo acidente seja inerente em outro. Uma forma substancial inere numa matéria, para Aristóteles, sem ser acidente (só a forma qualitativa, como a de um artefato, é que é acidental, e é uma espécie de acidente da qualidade, como se verá mais adiante).
    A inesão atual pertence, sem dúvida, à essência do acidente. É a tese dos que afirmam a inseparabilidade, portanto, do acidente à substância, tema de máxima importância, e que é objeto de prolongados e aprofundados estudos na teologia católica, em face dos problemas que surgem na eucaristia, que, necessàriamente tem de postular a distinção real entre a substância e o acidente.
    Na verdade, a inesão é extrínseca, pois há acidentes que não inerem intrinsecamente, mas extrinsecamente, como o lugar circunstante não inere no ser localizado.
    Aristóteles, em várias passagens de sua obra, afirma que "acidente tem em comum o ser ente do ente (ens entis), como se vê no livro IV da Metafisica, logo no inicio, e nos livros VII e IX da mesma obra, também no inicio, e nas diversas ocasiões em que trata da razão comum de acidente ou da sua divisão em nove gêneros.
    O acidente, que tem por si entidade própria realmente distinta da substância (como é o pensamento escolástico), possui, por sua entidade intrínseca, como expõe Suarez, inesão atitudinal na substância (É, pois, apto a inerir uma substância). Em defesa desta tese, Suarez prossegue argumentando do seguinte modo: é certo que o acidente é por si mesmo apto para informar a substância de um modo tal que inira nela, e seja por ela sustentada. Ora, tal só poderia convir atualmente a tal entidade a não ser que se suponha nela uma aptidão ou capacidade para esse modo. Mas essa aptidão não pode ser algo realmente distinto de tal entidade, como se percebe pelas razões, pelas quais se demonstra que a capacidade da matéria não se distingue da matéria, nem a aptidão de informar se distingue da forma substancial. É um ponto em que todos os escolásticos estão de acordo, porque seria supérfluo fingir tal distinção, sem nenhum fundamento ou inicio, e porque, em outro caso, seguir-se-ia do mesmo modo até o infinito. A aptidão para modificar a substância convém de modo essencial e primário, e também em virtude do fim primário dessa entidade, e é uma mesma coisa com ela, o que leva a concluir que pertence à sua essência. A entidade acidental tende por natureza a modificar a substância. Para Suarez, o acidente é um modo do ente e inclui essencialmente não só a aptidão, mas, também, a atual modificação ou união com a coisa da qual é modo. Embora pertença à razão de acidente como tal ser de algum modo uma modificação da substância, contudo não pertence à sua razão ser uma modificação imediata da substância, mas também nisso prescinde da relação imediata ou mediata da substância. Realmente, tal tem fundamento, prossegue Suarez, porque há alguns acidentes que afetam imediata• mente a substância mediante outros acidentes, como os atos imanentes e os hábitos que não afetam a substância, a não ser por meio das potências e pelas qualidades corpóreas, através da quantidade. Ademais, nenhum acidente é possível, no que se refere pelo menos às naturezas reais, e que seja acidente de modo próprio e completo, que não diga relação, em último termo, à substância como a sujeito primeiro e fim principal seu, já que, ainda quando um deles radique ali por meio de outro, todos, contudo, tendem a completar e adornar a substância, ou a servir-lhe de algum,a maneira.
    Aristóteles, no livro VII da Metafísica c. 1 e 4, texto 12 e c. 5, texto 19, afirma que a substância tem prioridade sobre o acidente (distinção, portanto, de ordem). Também afirma que o acidente não pode ter uma definição perfeita, porque inclui algo que está fora do sujeito. É uma entidade imperfeita, já que é um ente do ente (ens entis, uma modificação do ente). Portanto, a sua definição implica uma relação ao sujeito. Suarez anota que alguns apresentam aqui uma objeção, que se refere à quantidade, à abstração matemática, pela qual parece que a quantidade se concebe e define sem nenhuma ordem do sujeito. Mas é mister não esquecer que o matemático prescinde do sujeito sensível, do sujeito modificado por qualidades sensíveis, não prescinde, porém, absolutamente, do sujeito, porque considera a quantidade como uma realidade material e corpórea e, por conseguinte existente na matéria ou na substância, e, por isso, é que se diz que prescinde da matéria sensível, não porém, da inteligível. Esta doutrina é também de Tomás de Aquino e de Alberto Magno, e funda-se na obra Aristotélica. Acrescenta Suarez que o matemático não considera expressamente a relação ao sujeito, mas de modo muito implícito, porque não considera a essência da quantidade, mas apenas as propriedades, proporções e figuras que surgem da extensão da quantidade, e, para estas, não importa que se considere a quantidade como uma forma inerente num sujeito, ou que se considere o mesmo enquanto extenso no qual estão as superfícies e as linhas. A mesma quantidade é quanta e extensa em si. Portanto pode abstrair-se e considerar-se segundo as modificações que lhe convêm, sob esse aspecto. O matemático, como salienta Aristóteles no livro VIII da Metafísica, não prescinde da matéria inteligível.
    COMPARAÇÃO ENTRE O ACCIDEN'l'E E A SUBSTÂNCIA - No livro VII da Metafísica, Aristóteles afirma, no c. 1, que a substância é anterior ao acidente por sua razão, pelo conhecimento, pelo tempo e pela natureza.
    No referente às coisas finitas, que são a coisas criadas para a escolástica, a prioridade ontológica é indubitável, não porém, a gnosiológica, nem a cronológica, nem a cosmológica, pois não se dá a substância com anterioridade temporal ao acidente, nem captamos a substância a não ser partindo do acidente. Em face disso, a afirmativa aristotélica mereceu comentários vastíssimos e uma longa especulação, cuja síntese procuraremos fazer, reduzindo-a tanto quanto possível.
    A explicação mais consentânea para Alexandre de Afrodisia, e aceita também por Suarez, é que a anterioridade temporal, por exemplo, funda-se na separabilidade, já que o que é separável de outro pode existir sem ele, enquanto dele depende. E essa é a doutrina de Aristóteles, porque este, logo que afirma a anterioridade temporal da substância, acrescenta: porque nenhuma das outras categorias ê separável, mas apenas desta. Pode a substância nunca dar-se sem acidentes, mas tal não é necessário que se dê, mas é apenas contingente, porque julgam os defensores desta tese que a substância é apenas receptiva atitudinalmente dos acidentes, o que provoca muita controvérsia, que teremos ocasião de examinar nos comentários à Metafísica, por pertencerem mais ao âmbito dessa ciência que própria.mente ao que se refere à Lógica.
    Quanto ao aspecto gnosiológíco, afirma Aristóteles a prioridade por parte da substância. Esta prioridade é mais noética, pois afirma ele que o acidente não pode definir-se senão pela substância, enquanto esta, por sua essência, não inclui nem os acidentes nem a relação aos acidentes; não necessita por isso deles para ser definida exatamente.
    Afirma-se, assim, que o conhecimento do acidente, enquanto acidente, exige a prioridade do conhecimento da substância, já que aquele não é possível compreender-se sem este. Contudo, esse conhecimento é confuso para Aristóteles, e o entendemos assim: o ser humano só percebe que algo é acidental ao perceber que há o substancial, portador desse acidente. Portanto, para ter ele a noção de acidente, é exigível a prioridade da noção de substância. Não se trata do conhecimento sensível deste fenômeno, mas tal conhecimento, que é aqui meramente intuitivo por ser sensível, não é ainda conhecimento da acidentalidade, já que esta implica, necessàriamente, a noção de substância para poder ser engendrada.
    A prioridade de natureza justifica-se por depender o acidente da substância.
    Não se conhece perfeitamente uma realidade, conhecendo apenas a sua essência. É mister conhecer, também, suas propriedades, caso contrário o conhecimento precisivo, que se tenha, não abrange toda a realidade. Ora, as propriedades são acidentes e, portanto,é mister conhecer os acidentes, e o conhecimento mais perfeito da substância será aquele que inclua também os acidentes que lhe são proporcionados. Contudo, noeticamente, impõe-se distinguir a intuição sensível dos acidentes, que são captados enquanto algo que se dá, não, porém, ainda com a razão de inesão. Esta se dá noeticamente a posteriori, ao notar-se que há um sujeito de inesão de tais fatos concretos e, nesse instante, é que tais fatos são noeticamente concebidos como acidentes de um sujeito no qual inerem. É neste sentido que Aristóteles fala na prioridade cognoscitiva da substância ao acidente.
     A DIVISÃO DO ACIDENTE EM NOVE GÊNEROS SUPREMOS (SUMMA GENERA) Não cabe ao lógico, nem ao dialético, enquanto tais, preocuparem-se com a natureza e a essência dos predicamentos de Aristóteles, já que este só os estudou, sob este ângulo, na Metafísica. Para o lógico (como para o dialético), o que interessa é a sua aplicação na arte diretiva das operações do entendimento, a fim de que seu exercício seja o mais rigoroso e o mais racional. Interessa-se a Lógica por sua ordenação e por sua aplicação técnica. Não se discute, no Organon, seu fundamento nas coisas, mas apenas são eles tratados como meios hábeis de classificação, para coordenar os conceitos. O predicamento, em sentido lógico, é apenas uma disposição conveniente sob um gênero supremo dos gêneros e espécies, até chegar ao individuo, e essa disposição é a oferecida pelo dialético com o intuito de estabelecer definições, predicações e demonstrações.
    E é tomado nesse sentido que a classificação nos nove predicamentos é considerada. Esta a razão por que muitos disseram que se trata mais de nomes que de coisas, e isso se deve por que o dialético tem mais de considerar as coisas enquanto assinaladas pelos nomes, do que, propriamente, quanto ao que elas são, que é tarefa do metafísíco.
    Este já procede de outro modo, porque lhe interessa, primacialmente, não o nome, mas a significação apontada pelo nome, ou seja: a essência própria da coisa. Contudo, não se deve considerar que essas duas posições possam dar-se estanquemente, separadamente. :A harmônica combinação de ambas permite uma visão mais profunda da matéria, e evitaria os defeitos do logicismo, tão exagerados pelo racionalismo e pelo idealismo, posteriormente.
    Uma pergunta, que desde logo surge, é a seguinte: é a divisão proposta por Aristóteles em nove acidentes adequada e completa, ou há lugar para maior ou menor divisão, ou, ainda, para outras divisões que não as propostas pelo Estagirita? Englobam-se, aqui, várias perguntas, sem dúvida, e muitíssimos problemas, sobre os quais versaram inúmeras opiniões, longas controvérsias, especulações demoradas e amplas. Cabe-nos apenas dar uma visão sinótica e também sintética, tanto quanto possível, da matéria em questão, pois, para abordarem-se as questões, ter-se-ia de fazer obra volumosa, dadas as imensas contribuições oferecidas sobre o assunto que estão objetivamente numa literatura volumosissiml1 e totalmente superior às possibilidades humanas de compulsá-la.
    Sem dúvida pecaremos, aqui, por deficiência, mas tudo envidaremos para tornar claro e sucinto, tanto quanto permitam as nossas forças, o que constitui um longo acervo, que s6 de leve nos foi possível manusear. Contudo, lançaremos mão das contribuições alheias, citando, porém, sua autoria, já que, por nossas próprias forças, seria impossível embrenharmo-nos por uma tão vasta literatura, quase totalmente alheia às nossas possibilidades de compulsá-la, dada a deficiência flagrante de nossas bibliotecas.
    No entanto, para que a nossa providência seja a mais completa possível, nos cingiremos à análise dos principais comentaristas, que felizmente temos às mãos.
    Em primeiro lugar, devemos salientar que foram propostas outras divisões, que foram julgadas deveriam preceder à de Arist6teles, como a de que os acidentes, assim como a substância, deveriam ser divididos previamente em completos e incompletos, sendo considerados como. primeiros os integras, e como segundos os parciais. Se essa divisão é adequada à substância, também deverá ser adequada ao acidente, dizem. Outras divisões, seguindo paralelamente às da substância, foram propostas, como acidentes primeiros e acidentes segundos, ou, ainda, em absolutos e relativos, sendo absolutos a quantidade e a qualidade, e relativos todos os outros restantes, e relativo ainda subdividido em relativo segundo o ser (secumdum esse) e relativo segundo a predicação (secundum dici), também chamado relativo transcendental. Também se dividiram os acidentes em permanentes e transeuntes, acidentes que modificam intrinsecamente, e os que modificam extrinsecamente a substância, etc.
    Sem. dúvida, alguns acidentes revelam ter entre si maior conveniência que com outros, e algumas dessas classificações têm a seu favor muitas razões a serem consideradas, como vemos com a classificação entre acidentes absolutos e relativos, segundo o esquema que reproduzimos nestes comentários.
    Não iremos discutir essas classificações, senão na proporção que interessam elas ao estudo da Lógica.
    A divisão entre absolutos e relativos pertence mais à razão de ente que à razão própria de acidente.
    A justificação da divisão aristotélica encontra razões apresentadas por vários filósofos antigos e modernos, que passaremos a compendiar apenas quanto às que apresentam maior suficiência.
    Santo Agostinho, no seu livro Predicamenta, c. 8, divide essas categorias em três classes: três estão dentro da substância: a quantidade, a qualidade e o sitio; três fora dela: onde, quando e hábito; e três parte fora e parte dentro: relação, ação, paixão (pathos = afeção). Contudo, tem de se argumentar que muitas qualidades estão parte dentro e parte fora, e muitas vezes a afeção não está de modo algum imanente e, ademais, não se justifica que a medida do predicamento da qualidade e da duração constituam predicamentos, e não a medida da intensidade ou da perfeição. Também não se vê porque o vestido (hábito) não tenha razão de medida, como a tem o lugar, etc. Outros autores procuraram justificar essa classificação, como Ockham, Avicena, sem maior felicidade. Na verdade. Aristóteles não procurou justificar a sua divisão. Deu-a como algo certo e definitivo. Outros autores afirmam que essa classificação é feita segundo o nosso modo de conceber, embora com fundamento nas coisas. Essa é a posição de Soncinas, de Henrique Henriques, Tomás de Aquino, Alexandre de Hales, os quais afirmam que não é necessário que tal divisão seja atualmente distinta na realidade, bastando apenas que a divisão seja racional, com fundamento suficiente nas coisas.
    Ora, tudo quanto é diferente difere ou pelo gênero ou pela espécie. O que é diferente, é diferente por algo, portanto o é pelo gênero ou pela espécie. Ora, esses acidentes são gêneros supremos, são conceitos simples, não constam de gênero e diferença. Neste caso, então, qual seria a razão da diferença? A diferença aqui só pode ser, portanto, o diferir não em gênero, já que os acidentes são gêneros supremos, e não pertencem a um gênero superior, no qual diferissem como espécie, mas diferir no gênero, não convir no gênero.
UMA PROPOSIÇÃO JUSTIFICATIV A - Partindo-se do esquema abaixo, que reproduzimos, da autoria de Nostrates, podemos apresentar os argumentos a seguir:
Todo ente é ou
1) Substância...........Substância
2) Acidente
A) absoluto segundo a
1)matéria.............quantidade
2) forma..............quantidade
B) relativo, segundo a relação
1) de adveniência intrínseca
.......................... relação
2) de adveniência extrínseca:
a) segundo causalidade
................... ação-afeção
b) segundo a medida
.... ubi (onde) - quando
c) segundo a ordem
...................... situs-habitus
    Neste caso, podemos argumentar assim: uma substância qualquer, finita, contingente, criada, é uma unidade, mas compõe-na uma dualidade de estrutura: uma estrutura fisica (hilética), que é a matéria, e uma estrutura eidética, que é a forma.
   Sua estrutura hilética é, conseqüentemente, material, portanto quantitativa; sua forma é conseqüentemente qualitativa. Essa oposição é constitutiva (ens et ens) não contrária, mas, para alguns, apenas correlativa, porque, para estes, a matéria seria matéria da forma, e a forma, a forma da matéria. Essa correlação é, contudo, não mútua necessàriamente, porque seria possível admitir-se a forma independentemente da matéria, e a matéria independentemente da forma, o que é tema de divergências.
    Se o ser é finito, necessariamente é composto. E sua composição é estrutural e conseqüentemente apresenta o de que é constituído (matéria) e o pelo qual é o que é e não outra coisa (forma), Estas se apresentam em sua constituição como quantidade e qualidade, com suas espécies.
    Essas estruturas mantêm entre si relações intrínsecas; mas como em todo composto de matéria e forma (substância primeira e substância segunda) mantém relações extrínsecas. Quando essas relações revelam interatuações, revelam, também, que há algo que as sofre. Enquanto atua, é mister que haja o que sofre a atuação. Esta reciprocidade é inevitável: ação – afeção. Essa relação é a causalidade, enquanto o todo (to synolon, o composto hilemórfico, de matéria e forma), ele é medido no espaço (ubi) e no tempo (quando), relações que lhe advém extrinsecamente. Quanto a sua ordenação extrínseca, tem relações de situs e de habitus.
    Quando mais adiante examinemos cada categoria, esta classificação se tornará mais clara. Por ora, ela se justifica quanto às relações extrínsecas, pois uma substância se relaciona quanto à causalidade, e, por ser um ser finito e dependente, é um ente que provém do outro e atua de certo modo, é apto à medida, porque é um ente cronotópico (tempo-espacial ), e conserva uma ordem em sua extrínsecidade, que lhe é dado pelo situs e pelo habitus.
    COMENTÁRIOS SOBRE A SUBSTÂNCIA - A substância não é aqui tomada como quididade ou essência da coisa, mas, sim, como o ente per se, como o ente que se opõe ao acidente, que é inerente a algo. A substância como in ordine a se, como em ordem para si mesma, subsistente, como algo que não se sustenta em outro, que é sistente em si mesma, e, ademais, que é substante. Assim, subsistir e subestar são as propriedades deste primeiro predicamento. São estes os dois primeiros atos em que consiste a substância.
    É a substância o que sustenta os acidentes. Positivamente, significa o que sendo, exclui a dependência de outro, e, negativamente, é a negação da dependência, e a comunicação em relação a outro.
    A substância é tomada como o ente per se existente. Enquanto o acidente é o ente que é em outro, a substância é em si mesma.
Esta característica da substância é que se chama perseidade, que não é consistente apenas numa razão negativa, mas positiva.
    Ora, o ser per se é mais nobre que o ser in alio, em outro.
    O ser um em outro é o ser inerente em outro. Mas essa negação que cabe à substância é uma positividade, por que é inerente em si mesma. A substância convém o não ser em outro, o que a distingue perfeitamente do ser que é em outro, como o acidente.
    Pergunta-se: se a divisão aristotélica entre substância primeira e segunda encontra um forte fundamento.
    A classificação aristotélica tem validez, porque, inegàvelmente, uma coisa é a substância tomada enquanto estrutura hilética de uma coisa, e outra enquanto estrutura eidética; ou seja, uma enquanto estrutura material, e outra, enquanto estrutura formal, pois uma mesma matéria poderia, enquanto é substância de uma coisa, apresentar-se formalmente de outros modos, como o barro, que ora pode ser substância primeira do tijolo ou de uma escultura.
    A substância primeira subestá, sub-jaz à segunda.
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